Como cães e gatos escrita por kelly pimentel


Capítulo 39
Juliana




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Bárbara e Manuela me olham, respectivamente, com uma expressão de indignação e surpresa, compartilham ainda uma boa dose de recriminação. Bárbara parte do banheiro como uma tempestade, sei que o meu apelo não teve efeito, ela vai contar tudo ao meu pai e ele vai surtar, era a última coisa que eu precisava no meio dessa história de passar um mês fora do país.

—Quando você fez isso? – Manuela me pergunta. – Esquece, venha precisamos voltar para mesa antes que a Bárbara envenene o papai. Aprecio o fato de Manuela estar ao meu lado e ela tem toda razão, então me recomponho o máximo que posso e sigo para a mesa. Encontro meu pai de pé com uma expressão que acumula a fúria de cem homens.

—Isso é verdade?

—Claro que é verdade! – Bárbara diz irritada. – Agora eu sou uma mentirosa.

—Não seria a primeira vez. – Joana argumenta. Bárbara a encara.

—Eu pedi para você não contar nada. – Digo olhando para Bárbara. – Você é minha irmã, deveria ficar do meu lado.

—Como você ficou do meu lado defendendo a Joana?

—Ah, claro... então é por isso? – Pergunto. Sinto um frio invadir o meu estômago, estou tremendo de raiva.  – A Joana é minha irmã. E tem sido mais minha irmã nas últimas semanas do que você foi nos últimos anos.

—Já chega! – Meu pai diz irritado. – Eu não acredito que você fez uma tatuagem sem me consultar, você que vive me dizendo que já é adulta, que é responsável.

—Por isso mesmo, eu sou adulta e responsável por mim mesma. Eu posso fazer quantas tatuagens bem entender.

—Me deixe ver isso! – Seu Ricardo afirma avançando na minha direção. Recuo defensivamente.

—Não! É o meu corpo. Você não pode me fazer te mostrar coisa alguma.

—Juliana, não me importa o quanto você acha que é adulta. Enquanto morar na MINHA casa, enquanto viver do MEU dinheiro, você vai sim fazer o que eu quiser. E o que eu quero agora é ver essa tatuagem.

—Pai, de que adianta isso agora? – Manu pergunta tentando acalmar as coisas. Joana fica de pé e coloca sua mão levemente no ombro de Seu Ricardo na tentativa de acalmá-lo.

—É enorme. Do meio das costas até o ombro. – Bárbara afirma. –Amanhã mesmo, não me importa o quanto doa ou custe, você vai começar a remover isso.

Olho para Bárbara e perco os sentidos. Pego o copo de vidro cheio de água que está na mesa e o atiro contra ela. Ouço os gritos da minha irmã, um pouco de sangue escorre, não me importo. Aproveito a confusão e saio correndo pelo restaurante. Lembro que estou com as chaves do carro e avanço pelo estacionamento, ligo o mais rápido que posso e saio do local. Pego o telefone e ligo para Lucas. Não conto nada, apenas pergunto onde ele está e digo que estou indo encontrá-lo. Preciso estar com ele agora, é isso que a minha mente está me dizendo.

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Meu pai avança para amparar Bárbara, Joana faz o mesmo. Gesto o que eu anexo na minha pasta mental chamada “razões pelas quais Joana é uma pessoa melhor que Bárbara”, observo enquanto o sangue escorre pelo rosto da minha irmã, não é muito sangue, mas é o suficiente para me colocar num estado de letargia. Não faço nada, não consigo fazer nada. Apenas assisto a cena como se estivesse petrificada. Algumas pessoas se aproximam preocupada, funcionários, outros clientes das mesas mais próximas, tudo parece surreal demais.

—Precisamos te levar no hospital. – Meu pai diz.

Joana começa a se aproximar de mim, mas algo a interrompe. Ela olha ao redor curiosa, se move rápido e então me encara novamente: -Onde está Juliana? – Ela pergunta com seus olhos da cor de jabuticabas claramente alarmados, são eles que me tiram do meu estado letárgico. Olho ao redor como se os meus olhos pudessem vem algo que os dela não puderem, claro que não havia nada de diferente, mas a racionalização ficou em segundo plano. Juliana não estava ali.

—Minhas chaves estão com ela! – Meu pai fala alarmado.

Passamos mais tempo discutindo, tempo demais. Barbara disparava palavras de fúrias contra Juliana ao mesmo tempo em que pressionava o corte no rosto (depois de um pouco de limpeza ficou claro que não fora nada demais, fisicamente falando, ela precisaria apenas uns dois ou três pontos. Com sorte, não ficaria cicatriz alguma), eu tentava defender Juliana dizendo que se Bárbara não a tivesse encurralado nada daquilo teria acontecido, também culpei meu pai, que acabou dizendo que eu provavelmente sabia da tatuagem e estava acobertando Juliana. Foi precisa a intermediação de Joana para que pudéssemos de fato começar a agir. Decidimos então chamar dois táxis. Seu Ricardo segue com Bárbara para o hospital, Joana e eu ficamos incumbidas da tarefa de encontrar Juliana e tentar colocar algum juízo em sua cabeça.

Tento ligar para Lucas, mas o telefone dele está sem sinal. Meu primeiro palpite é que Juliana tenha ido encontrá-lo. Por sorte, Joana já havia ido na casa de Lucas antes. Ela me conta que isso aconteceu quando ele fora demitido da Forma por grafitar uma das paredes da academia. Num momento de armação de Juliana, minha mente faz questão de me lembrar. Talvez eu estivesse ignorando sinais, talvez todos nós estivéssemos. Nossa sorte acabou quando chegamos à casa de Lucas e constatamos que ela não estava lá, Lucas tinha ido para uma festa, era tudo que a mãe sabia, não tinha dito nada sobre onde seria, apenas prometeu não voltar muito tarde.

—Vou tentar o telefone da Martinha, talvez ela saiba do Lucas.

—Não é estranho ligar para ela para perguntar se a sabe onde o pai do filho dela ficou de se encontrar com a melhor amiga? – Lembro a mim mesma de que Joana não sabe a verdade sobre a gravidez de Martinha. Estou ficando um pouco cansada de lidar com esse segredo, mas me mantenho firme, sei que contar isso a Joana agora não vai ajudar em nada. Além disso, não é meu segredo, não posso simplesmente contar.

—Não. Ela é amiga da Ju em primeiro lugar. – Digo na esperança de que seja convincente.

—É, você tem razão. Isso é uma emergência.

Ligo para Martinha e ela me conta que Juliana e Lucas iam para um Luau no Arpoador.

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A vantagem, e ao mesmo tempo desvantagem, de se relacionar amorosamente com alguém que você conhece há anos é que algumas coisas ficam claras instantaneamente. Eu sabia que havia algo errado quando Juliana me ligou, estava evidente no seu tom de voz. No modo cheio de prece como ela disse meu nome assim que atendi. Tudo isso foi reforçado quando Juliana me surpreendeu descendo do carro do pai. Observei do outro lado da avenida enquanto o carro estacionava, sabia que aquele era o carro do Ricardo, mas não esperava que Juliana estivesse dirigindo.

Ela atravessou a rua e veio na minha direção, se jogando no meu pescoço com um abraço pesado, um abraço intenso. Ficamos parados na calçada por um tempo, me controlei para não perguntar nada, para deixar que ela simplesmente se sentisse segura. Sabia que era disso que ela precisava.

—O que aconteceu? – Perguntei depois de um tempo.

—Eu não quero falar sobre isso agora. Quero apenas aproveitar o luau. Ficar perto de você. Pode ser?

—Claro. – Respondo.

—Posso usar seu telefone um minuto? O meu ficou sem bateria. – Me pede sorrindo. Entrego o telefone a Juliana e ela se afasta. Observo enquanto ela caminha em círculos com o aparelho no ouvido.

—Obrigada! – Diz colocando o aparelho no meu bolso. - Só queria ligar para casa. Agora, me diga, essa festa vai ser boa?

—Grandes expectativas. – Respondo sorrindo.

Caminho de mãos dadas com Juliana para a praia e a apresento a Gustavo, o responsável pela festa, e a Marina, uma das DJs da noite. Marina faz uma piada sobre como eu nunca trouxe uma namorada para festa antes e diz que é provavelmente porque eu costumo namorar com garotas de quinze anos o que fez com que ela e Juliana basicamente se tornassem melhores amigas. A noite segue animada, Juliana dança, se diverte. Gosto de vê-la alegre, seja lá o que tenha acontecido parece ter sumido de sua mente.

Estou conversando com alguns colegas quando vejo que ela e Marina estão compartilhando uma cerveja e caminho na direção delas.

—Você esqueceu que veio dirigindo? – Pergunto em seu ouvido. Não sei o quanto Juliana já bebeu, mas sei que é isso que ela faz quando algo acontece. Normalmente, algo que envolve o pai.

—Eu vou estar sóbria pela manhã. – Juliana responde me puxando para um beijo. Retribuo, mas separo nossos lábios rapidamente. Ela parece não gostar e sai caminhando por meio da considerável multidão reunida no local, me apresso em segui-la. Juliana se aproxima da orla.

—Você não vai entrar no mar essa hora. – É mais um pedido do que qualquer outra coisa. Juliana tira os sapatos e os joga na minha direção com um sorriso no rosto. – Ju, é sério, o mar aqui é muito perigoso, você sabe disso. Além disso, a água deve estar congelando.

Ela deixa a água do mar chegar aos seus pés e a chuta em minha direção. Tento me aproximar e ela repete o gesto, me molhando um pouco. Até que sua bolsa escorrega pelo ombro e eu aproveito o momento de distração e agarro Juliana afastando-a do mar.

—Você ficou maluca? – Pergunto encostando-a numa das grandes pedras do local, só percebo que estou me impondo fisicamente, mantendo-a acuada entre mim e a pedra, quando Juliana me olha de forma provocativa. Não resisto e a beijo, um beijo cheio de fúria. -É isso que você quer? - Questiono segurado firmemente o corpo dela contra o meu.

—É exatamente isso que eu quero!

Voltamos a nos beijar e troco de posição com Juliana, fico encostado na pedra com medo de que ela se machuque. Mesmo no meio da excitação que estou sentido, prometo a mim mesmo que não iremos longe demais, não na praia no meio da noite, não é um local seguro. Começo a beijar o pescoço de Juliana e então noto algo em seu ombro. Paro imediatamente e baixo um pouco seu casaco.

—Juliana, você fez tatuou o meu desenho? – Pergunto encarando-a. Juliana me olha como se parecesse não entender a minha expressão.

—Você não gostou? Eu queria fazer algo que...

—Passo a mão no rosto tentando me acalmar. Juliana, quando o seu pai souber disso ele vai achar que isso é culpa minha.

—Meu pai é problema meu, não seu.

—É aí que você se engana! É claro que isso é problema, ou você acha que é a única afetada com essa situação? – Falo exaltado. Não queria me irritar, mas Juliana, algumas vezes, faz de tudo para puxar os botões das pessoas.

—Isso tudo é preocupação com o seu emprego? – Ela questiona se afastando. – Não se preocupe, eu vou deixar as coisas mais simples para você: nós estamos terminando.

Juliana sai furiosa e eu corro atrás dela. Já estamos na calçada da avenida quando a alcanço, pois tive a genial ideia de parar para pegar sapatos.

—Juliana, espera! Dá para você parar de agir feito uma criança e conversar comigo? – Peço segurando-a pelo braço.

—Não quero conversar, me solta! Me solta! – ela grita.

—Ele está lhe incomodando moça? – Um homem pergunta para Juliana. Outras pessoas se aproximam atraídos pelos gritos de Juliana. Peço para Juliana se acalmar, mas solto seu braço. Sei que as pessoas estão agindo da forma correta, eu faria o mesmo se me deparasse com aquela cena, mas não posso deixar de me sentir frustrado. Tento explicar o que está acontecendo, mas é tarde demais, pois quando finalmente consigo Juliana já está saindo com o carro. Observo desesperado enquanto ela entra na avenida de uma vez é atingida por um outro veículo em alta velocidade. 

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Enquanto a ambulância se desloca em alta velocidade para a Emergência mais próxima, eu só consigo pensar que a última coisa que Juliana ouviu de mim foi uma acusação contra sua maturidade. Se ela não ficar bem... “Ela vai ficar bem” digo para mim mesmo interrompendo o pensamento negativo, não posso me permitir considerar essa possibilidade. Sinto como se estivessem arrancando meu coração do peito. Era tudo culpa minha, eu não deveria ter reagido da forma que reagi ao ver a tatuagem, mas Juliana estava enganada: eu não estava pensando no meu emprego, eu só temia que aquilo acabasse nos afastando, acabasse fazendo com que o pai dela tentasse nos afastar... e a ideia de não poder ver Juliana, de não poder tocá-la... passo a mão no rosto e percebo que estou chorando.  

—Você é mesmo o que dela? – Uma paramédica pergunta. A mulher tem sangue em sua roupa, o que me deixa assustado. Olho novamente para Juliana, não pode ser sangue dela, pode? Não há nenhum machucado aparente, nenhuma gota de sangue, e ainda assim ela está desacordada e um outro paramédico bombeia um tubo conectado a sua boca, ajudando-a a respirar. – Rapaz, você é o que dela? – Ela pergunta novamente, dessa vez colocando a mão no meu ombro.

—Namorado, eu sou namorado dela. – Respondo. Olho novamente para Juliana. Os equipamentos monitoram seus batimentos e cada vez que escuto o som de seu coração, cada vez que escuto num novo batimento, me encho ao mesmo tempo de desespero e esperança, desespero pela ideia de que possa ser o último, esperança de que vai ficar tudo bem. Juliana é forte, a pessoa mais teimosa que conheço, não vai se deixar abater assim, não mesmo. Digo como um mantra tentando convencer a mim mesmo.

—Ok, vou precisar que me diga qual a idade, tipo sanguíneo, se ela tem alergias. Quando entrarmos no hospital ela vai direto para o atendimento, mas você vai precisar deixar as informações dela com a recepção.

—Ela tem dezoito anos, sangue A+. Alergias? Não, eu não sei se ela tem alguma alergia. – Digo passando a mão na cabeça. – O que há de errado com ela?

—Ainda não sabemos a extensão dos danos. Apenas um exame clínico poderá dizer isso.

—Vamos precisar de um neurologista. – O homem avisa. Ela telefone para o hospital e confirma a presença do médico dessa especialidade, em seguida, me explica que teríamos que mudar de rota caso a resposta fosse negativa.

—Tem alguém da família dela que deveria ser chamado?

—Claro. – Retiro o telefone do meu bolso e tento ligar para Seu Ricardo. Então percebo que meu telefone está no modo avião. Desativo a função e recebo várias notificações de chamadas e mensagens de Manuela e Joana. Embora Manuela seja uma das pessoas mais madura que conheço sei que a minha obrigação é avisar a Ricardo, então ignoro as tentativas de contato delas e telefono para o pai de Juliana.  

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Entro no hospital e encontro meu pai e Lucas sentados lado a lado, o que acentua o contraste de suas posturas. Meu pai está claramente ansioso, a mão batendo em agonia na perna, o rosto com certa fúria. Lucas, por sua vez, está com os olhos vermelhos, o rosto encharcado. Ele segura a bolsa de Juliana como se segurasse sua vida. Joana se aproxima e coloca a mão no ombro de Lucas.

—Como ela está? – Pergunto sentando ao lado do meu pai. Sinto como se já tivesse vívido aquilo, como se aquele fosse um momento dolorosamente familiar, mas eu não estava presente quando meu pai e minha mãe sofreram o acidente, não estive no hospital, não estive no enterro dela. Não entendo de onde vem essa sensação.

 -O médico ainda não disse nada. – Ele responde me encarando. Devo ter deixado minha dor transparecer ao ouvir aquelas palavras, pois meu pai passou uma de suas mãos pelo meu ombro e depositou um beijo entre meus os cabelos. – Isso é um bom sinal Manuela, quer dizer que ela está lutando.

—O que aconteceu? – Pergunto me dirigindo a Lucas. Sinto meu pai se enrijecer e me arrependo da pergunta, mas antes que Lucas possa dizer qualquer coisa vejo Tio Caio entrar desesperado no local. Ele pergunta por Juliana na recepção e a mulher aponta para nós. Fico de pé e abraço meu tio, só quando o solto percebo que ele está acompanhado por Fábio.

—Como está a Juliana? – Ele pergunta.

—O que você está fazendo aqui? – Seu Ricardo devolve.

—Isso parece óbvio! Estou aqui para saber da Juliana.

—Ela ainda está sendo atendida. Não tivemos nenhuma notícia. – Joana conta.

—Foi você quem o avisou? – Meu pai questiona para mim. Olho para meu pai sem entender, em parte porque aquilo não faz o menor sentido no momento, qualquer problema entre ele e meu tio não é nada perto do fato de que Juliana sofreu um acidente.

—Fui eu. – Joana responde me impedindo de expressar minha indignação com a questão.

—Alguém pode me dizer o que aconteceu com a Juliana? Como é que ela se meteu num acidente de carro? Quem estava dirigindo? – Tio Caio pergunta.

—Ela mesma. – Lucas conta. – A Juliana estava chateada com algo que eu falei e saiu correndo, eu tentei evitar... – ele diz em meio as lágrimas – eu juro que tentei, mas ela fez um escândalo na rua e várias pessoas me impediram de ir atrás dela. Quando vi, a Ju já estava dentro do carro, dando ré de uma vez e o outro carro a acertou.

—Não é culpa sua. – Joana diz consolando Lucas.

—Claro que é! – Meu pai grita. – E se algo acontecer com a minha filha, eu juro por Deus que...

—É culpa dele? – Tio Caio questiona. – Foi o garoto quem deixou a sua filha dirigir com uma carteira provisória na noite do Rio? Você é um irresponsável! Foi irresponsável quando traiu minha irmã, quando deixou que ela subisse na garupa da sua moto, mesmo no estado dela... e tem sido irresponsável todo santo dia na criação das minhas sobrinhas.

Meu pai fica de pé e parte para cima de Tio Caio. O primeiro soco o acerta em cheio na boca, mas tio Caio não tenta revidar. Ele apenas se encosta no balcão e passa a mão nos lábios, conferindo o sangue que rapidamente se espalha. Um segurança do hospital se aproxima e Tio Caio trata de dizer que ele não precisa se preocupar, pois não acontecerá novamente. Bárbara, percebendo a confusão, finaliza sua ligação e se aproxima.

—Isso não é culpa do meu pai. A Juliana está descontrolada. Olha aqui o que ela fez comigo. – Ela aponta para os pequenos esparadrapos bem colocados em seu rosto. Ela me atacou, roubou o carro do nosso pai, saiu para uma festa com esse namorado irresponsável dela, que por sinal a incentivou a fazer uma tatuagem...

—O que você queria que ela fizesse depois do modo como vocês dois a trataram hoje? – Pergunto irritada.

Mas a nova discussão não tem tempo de ganhar força, pois é interrompida quando um médico se aproxima e chama por Lucas, já que ele é a pessoa que trouxe Juliana para o hospital. Lucas dá um pulo da cadeira e meu pai também avança na direção do médico tratando de deixar claro que é o responsável por Juliana.

O médico explica que Juliana chegou desacordada, sem reação verbal e pouco reação aos estímulos físicos, a mudança em sua respiração também deixava claro que ela havia sofrido um traumatismo craniano. Foi feita uma ressonância magnética que identificou um inchaço no cérebro que está impedindo minha irmã de acordar. Ela também tenha uma fratura na clavícula, mas o foco no momento é a lesão cerebral.

—Podemos transferi-la para um hospital particular? – Bárbara pergunta, sua voz tem um tom de dor.

—Não há nada que eles possam fazer lá que também não possamos fazer aqui. Até agora não é quadro cirúrgico. Estamos monitorando a pressão intracraniana, administrando anticoagulantes. Se a paciente não der sinais de melhora em algumas horas, aí sim teremos que pensar em outra estratégia. Mas a decisão é de vocês.

—Deveríamos levá-la. –Barbara insiste e tio Caio concorda, mas meu pai diz que ela vai ficar. Bárbara protesta, mas não há nada que ela possa fazer.

—Posso vê-la? – Lucas pergunta.

—Você só pode estar brincando! – Bárbara dispara.

—Pode. – Meu pai afirma. - Mas eu vou primeiro.

Meu pai segue com Tio Caio e o médico. Eu me aproximo de uma das janelas do hospital e observo a vista, estamos no sexto andar, o vento que entra pela janela tira meus cabelos do lugar. Me permito descansar um minuto, até que que sinto as mãos já familiares de Fábio me envolverem.

—Ainda bem que você está aqui. – Colocando minha mão sobre a dele. – Você acha que ela vai ficar bem? – Sei que é uma pergunta injusta. O tipo de pergunta que deixaria qualquer desconfortável.

—Eu não tenho certeza meu amor, o que eu sei é que a sua irmã é forte, jovem e teimosa, feito você.

Me viro para encarar os olhos cheios de afeto do meu namorado. Me sinto protegida, amada, sinto que ele tem razão. Sinto eu tudo vai ficar bem. Olho ao redor e vejo Bárbara e Joana conversando, é a primeira vez que elas parecem ter algum tipo de contato civilizado desde a descoberta de que Joana é nossa irmã.

 

Bárbara me encara de forma rápida, a coisa toda dura apenas alguns segundos, mas sei muito bem que ela não gostou nada de me ver de ver abraçada com Fábio. Não me importo com ela, não agora. Minha atenção está mesmo voltada para outra pessoa: Lucas. Ele está sentado novamente, na mesma posição desamparada de antes. Deixo o conforto dos braços de Fábio e me aproximo dele. Quero deixar claro que sei que não é culpa dele, mas Lucas não parece aceitar a absolvição oferecida, ele comenta comigo sobre como minha irmã estava agindo de forma estranha nas últimas semanas e mesmo assim ele não fez nada para ajudar.

—Eu poderia ter tentando fazer ela conversar, lidar com seja lá o que for que a estava incomodando, mas em vez disso eu permiti que a Juliana fosse acumulando as coisas, e eu não posso deixar de pensar que isso tem relação com a gravidez da Martinha.

—Você só está pensando nisso porque queria ter contado a verdade. Conte assim que possível e tudo vai ficar bem. – Sugiro.

—Lucas, você pode ir agora. – Meu pai afirma. Ele parece ter chorado. Tio Caio também parece abalado. Lucas levanta e segue a enfermeira. – Não há nada que possamos fazer agora além de esperar, então é melhor vocês irem para casa, não faz sentido lotar o hospital. Manuela, você vai com a Bárbara.

—Não. – Digo firme. Eu não vou com ela.

—Ricardo, a Manuela pode ficar comigo. – Joana diz. Meu pai olha para Fábio que está parado do meu lado.

—Não. Além disso, seu foco precisa ser a Forma. A Manuela vai com a Bárbara ou fica comigo, ela só tem essas duas opções.

Decido ficar. Me despeço de Tio Caio com um abraço, ele promete voltar assim que o dia amanhecer, também abraço Fábio.

—Eu te amo. – Ele diz no meu ouvido durante o abraço. Nos afastamos e eu seguro em sua mão devagar, então aproximo nossos lábios rapidamente e o beijo.

Ficamos apenas eu e meu pai na sala de espera, Lucas está com Juliana. Me sento ao lado do meu pai. Não posso deixar de pensar nas palavras de Lucas, no modo como ele descreveu o comportamento de Juliana.

—Pai, eu preciso te contar uma coisa. – Digo sem ter muita certeza. -Eu acho que tem algo de errado com a Juliana. Eu não acho que esse comportamento que ela teve hoje seja algo isolado, ela tem mudado de humor frequentemente, ela vive explodindo... não acho que ela esteja bem, talvez ela tenha depressão ou algo do tipo.

—Desde quando você notou isso? – Meu pai pergunta.

—Um tempo atrás, mas ela me disse que não era nada. A Bárbara disse que não deveria ser nada demais também. – Observo enquanto a expressão no rosto do meu pai ganha mais uma camada de dor, mas há algo além disso: é também uma camada de vergonha de si mesmo. Como se houvesse algo que ele deveria ter notado o tempo todo e não notou. – O que você não está me contando? – Pergunto.

—Manuela, a sua mãe, ela tinha... – meu pai respira fundo e me olha nos olhos. – Ela tinha um transtorno de personalidade. Ela era bipolar. E isso que você está descrevendo da Juliana...

—Você acha que ela tem a mesma coisa? – Pergunto assustada.

—Eu acho que ela pode ter. – Ele fala cabisbaixo.

—E a minha mãe tinha isso?

—Tinha, quando eu a conheci ela ainda não sabia. O primeiro ciclo de depressão foi um pouco antes da Bárbara nascer e nós não sabíamos muito bem. Sabe, anos atrás doenças mentais eram muito mais estigmatizadas, eu mesmo não entendia muito bem o que estava acontecendo, não entendia que a sua mãe precisava de ajuda, ela mesma não entendia e isso foi...

—Afastando vocês?

—Manu, eu não quero que você pense que eu traí a sua mãe por isso. Não foi. Eu traí a sua mãe porque eu me apaixonei pela Carmem no momento que coloquei meus olhos nela. Sua mãe é a vítima da história. Ela, a Bárbara, a Joana, a própria Carmem também. Mas sim, e eu a sua mãe nos afastamos por isso. Se eu fosse um pai melhor, mais atento, eu teria notado os sintomas e sua irmã não estaria aqui repetindo uma história. – Meu pai começa a chorar e eu não sei o que dizer, então apenas o abraço. É assim que ainda estamos quando ouvimos um alerta de emergência ser disparado, uma enfermeira corre alertando o número do quarto.

—É o quarto da Juliana! – Meu pai fala tenso. Seguro em sua mão e sinto meu corpo inteiro gelar. 


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