A chuva caía mansa pelo asfalto trincado e enlameado, tentando limpar a imundice do rubro que cobria algumas partes das minhas roupas. Eu ainda me encontrava armado e um tanto quanto esquizofrênico. Via aqueles demônios em todos os lugares, ouvia seus gemidos abafados, pressentia seus passos, esperava pelas mãos que vinham na tentativa de me cavar…

Eu estava enlouquecendo…

Havia chegado no meu limite.

— Por Deus! — Ululei. — Tire-me deste mundo maçante! Leve minh’alma para o inferno, pois até lá é melhor que aqui! Tenha piedade, Deus! Eu já não sei o que fazer… Para onde ir! Preciso de uma luz! Eu preciso de um sinal para continuar vivo, por favor…

Ajoelhei-me, debulhando em prantos, surrando o chão molhado. Foi aí que encontrei o meu reflexo desfigurado. Eu o fitei demoradamente, fundindo minhas lágrimas com as gotas que caíam do céu e morriam naquele novo Eu. Por que era tão difícil? Por que estava tão difícil de seguir em frente? Como se nada houvesse acontecido…? Eu estava sendo testado? Teria que mostrar o quão forte eu sou? Tinha que haver um motivo, eu não poderia estar ali apenas por estar…

Inconsolado, deitei-me, fechei os olhos e abri os braços. Estava pronto para partir e acreditava que a morte seria muito bem-vinda. Estava pronto para deixar toda aquela lamúria e pagar pelos pecados que cometi… Eu apenas queria paz… Desejava-lhe incondicionalmente.

— Não pode ficar aí… assim… folgadão e esturricado no meio do nada! Está empacando o caminho dos mortos! — Cutucaram-me com um galho.

A voz que chegou até os meus ouvidos era melodiosa e sarcástica, o cheiro daquela desconhecida, lembrava-me um adocicado perfume floral, cujo qual minha mulher amava. Eu fui guiado a um tempo nostálgico, vendo seu rosto me sorrir, suas brincadeiras, suas atitudes infantis… Lembrava-me que sempre dizia que deveria crescer e agora sentia falta de tanta imaturidade…

— Se não for um maldito zumbi, que vá embora! — Ordenei, relutante para não fitá-la, engatilhando a arma.

— E perder você servindo de comida fresca? De jeito algum! — Ironizou.

Eu ainda sentia os pingos grossos que ricocheteavam minha pele, agora estavam um pouco mais frios, embora eu não demorasse para me acostumar com eles. Fazia parte da rotina. O que de fato não entrava na minha rotina era aquela estranha, miúda, curvada por sobre mim, fazendo sombra na minha face. Durante quinze meses vivendo num mundo deturpado como aquele, não havia encontrado um ser tão desnecessário como aquela menina diante de mim.

Devido a isso, sentei-me para encarar a causadora da minha ira:

— Eu posso matá-la.

— Mas não irá! Está tentando matar a si mesmo e, desde que vi, a única coisa que soube fazer foi chorar!

Rosnei um “ah” para assustá-la, mas, sequer, mexeu-se, – o que logo me revoltou.

— O que quer de mim?

— Preciso de ajuda. — Contou, se levantando, suspirando fundo e lançando um riso gentil. — Quero encontrar uma coisa e eu não conseguiria ir até lá sozinha. Você quer morrer e eu não quero ser morta... talvez sejamos uma boa dupla. Você tem uma missão agora. O que acha?

Observei-a de cima a baixo: ela parecia bem nova, deixando sua marca juvenil estampada num corte infantil, de cabelos acastanhados e rosto sujo. Era bem mais baixa que eu, limitando-se à altura do meu peito, de corpo magricela e feições doces. Poderia ser minha filha, caso eu não houvesse manchado a minha honra. Ou… Seria a luz que pedi a Deus?