Palavras sorteadas - Quarta - Infância escrita por Ruviana Chagas


Capítulo 2
Parte 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/715693/chapter/2

Nos anos seguintes não mais encontrei o local. Nem a clareira, nem um sinal de pedras perfiladas. O mato havia mudado. Anos de secas e chuvas. Questionei-me que ninguém mais encontrasse aquele lugar. Então passei a acreditar que era ilusão, um sonho de criança que com o tempo fica nublado, embaçado, fraco, longínquo – mesmo que nunca se apagasse.

Assim, deixei de procurar. Também, não mais passava as férias na casa da minha avó.

Vinte anos depois, sem esperar, aquela lembrança, a ilusão, o sonho, começou a formigar na minha mente. O tempo passa e a gente sente saudade de quando era criança, de ter aquela mente pura e deslumbrada pela fantasia de coisas pequenas.

Vivo em meio ao concreto e veias saltadas. Não há descanso. Foi quando uma súbita vontade me veio: de parar, virar e seguir pelo outro caminho.

Segui para a casa da minha avó. Ela agora era muita mais velha, baixinha e franzina. A pele fina, macia e cheia de rugas. O rosto com aquela aura de tempo passado e vivido, meigo e complacente. O mesmo café cozido e coado, o mesmo doce do açúcar. A mesma rede na varanda. A casa não era mais a de taipa com tijolo e cal, melhorara com a ajuda dos filhos que foram para a capital. Dormi na varanda olhando o céu com estrelas, longe da cidade.

No dia seguinte, cedo já andava no mato. Tentei lembrar e refazer meus passos. Mas dava em lugar nenhum. Os outros dias eram decepcionantes. As férias aproximavam-se do fim e mais queria encontrar. Talvez por ansiedade, ou porque não quisesse mais voltar ali. Andei então por horas e mais dias. Sempre com uma vara levantada, esperando bater em algo invisível.

As férias acabaram. Voltei para a casa da vó decepcionado, frustrado. Ela aconchegou-me também com semblante triste, pensei que soubesse da minha procura, no entanto, ela, por outro lado, assustou-se ao perceber que eu não sabia que havia sido demitido.

Voltei para casa desconsolado. Me senti abandonado. Sozinho. Concreto e veias saltadas. Uma poeira constante em meus pulmões que cimentavam e enrijeciam minha alma.  Um dia talvez, ou não mais voltaria.

Mas um dia voltei. Um entre tantos outros quaisquer. Sorteado. Como o momento da morte. Minha vó faleceu e voltamos para o enterro. Terminado tudo, fiquei mais uns dias. Cuidei da casa, ajudei nas roupas e mobílias. Andei pela mata. Várias vezes, sempre me sentindo traído e imaginando que o lugar estivesse me olhando na minha angústia, mas sem dizer nada. Um dia, talvez, eu encontrasse.

Um vento passou, fechei os olhos, e deixei escorrer uma lágrima. Não a contive, pois teria apenas as árvores como testemunhas. Abri os olhos e um feixe de luz me encandeou por um segundo.

Um dia, em meio a tantos outros, eu encontrei, quando criança, aquela estrela reluzindo cores e entrei nela.

No alto, os pássaros pousavam sobre uma estrutura invisível que afastava as folhas na copa. A singela fresta deixava passar raios de luz, entre essas uma delas encandeou-me naquele segundo. Corri. Meus olhos encheram-se das lágrimas que reprimia. Como da primeira vez. Lá estava. O palácio de cristal da minha infância. Do sonho embaçado.

Será que via, certo? Não podia mais me iludir...

O lugar não mais era de vidro translúcido. Era visível e tangível à consciência e estava recoberta de poeira. Corri a mão e tirei um pouco: pedra, grossa, pesada e porosa. Quis e não me contive a abraçá-la. Circundei-a olhando, enfim, todos os seus detalhes. Tanto amor. A porta pesada de madeira grossa, rangeu e aquele som me mostrou o meu tempo vivido. O corredor estava um pouco escuro. Entrei deslizando os dedos pelas paredes, sentindo a textura.

O centro, iluminado. No alto pude conhecer a torre que iluminava, era rodeada de um vitral colorido. Estreita, mas pontuda, deixava passar a luz necessária para ver o interior. As mesmas estantes de uma madeira antiga, os mesmos livros, agora, amarelados e um pouco carcomido. O tempo.

Sentei-me no tapete felpudo verde cintilante. Havia pegado o livro e agora me debruçava, como antes, folheando as maravilhas, revendo as imagens e os desenhos e lendo enfim os textos de caligrafia antiga.

x                                             x                                             x

Havia um relógio na posição oposta a porta. Marcava o cinco e meia, hora de criança ir para casa. Deitei-me e virei para cima. Senti-me sucumbir novamente àquele espetáculo esplêndido de luzes e cores. Nunca mais deixaria aquele lugar sozinho.

 

 

Palavras sorteadas: Floresta, vidro e poeira.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Palavras sorteadas - Quarta - Infância" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.