Palavras sorteadas - Quarta - Infância escrita por Ruviana Chagas


Capítulo 1
01/12/14, Quarta história - Parte 1




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Há coisas que apenas o tempo pode mostrar.

Lembro que quando tinha sete anos eu me perdi na floresta. Minha avó morava em uma cidade interiorana, em uma casa velha parte de taipa, parte de tijolo branco caiado. Eu brincava no quintal quando vi pela primeira vez um pequeno macaco com cabelo engraçado lembrando um palhaço, posteriormente vim a saber ser um sonhim. Ele me viu do alto do cajueiro seco e meio desfolhado e correu para dentro do mato. Fui atrás e me perdi.

Não fiquei com medo, no mais nem sabia o que era estar perdido. Corri pela mata. Enquanto isso as árvores pareciam crescer e se esticar ao meu redor, ficarem mais verdes e cheias até o ponto em que estava tudo numa penumbra pela sombra das copas fechadas. Andava mais e talvez nem lembrasse mais do sonhim.

Apareceu, aos poucos, uma clareira, um espaço vazio, como que capinado a muito tempo e permanecido, mas ainda encoberto pelas folhas altas das árvores, estas que deixavam passar finos raios de luz do sol. Era um espaço pequeno em que caberia apenas mais um tamanho do quintal da vó.

Não me foi estranho, claro, na época era só mais um pedaço de floresta que deu um tempo de crescer. Mas estranho foi quando dei um passo para entrar e ao invés acabei chutando algo duro, e que não via. Procurei por pedra, mas não vi. Dei outro passo e de novo fui parado. Chutei, então, cada vez mais alto, até que com a mão quis tocar. E com curiosidade e medo toquei. Subi sentindo uma superfície lisa até mais acima de minha altura, que era baixa, mas acreditei ser aquilo bem alto. Voltei e alisei para sentir mais detalhe e tentar definir o que na verdade era, mas consegui nada. Então virei e ainda tocando, comecei a circundar a clareira. Ás vezes uma árvore entrava no caminho e soltava para circundar, mas apreensivo de ao voltar não mais sentir.

Comecei então a discernir volumes, protuberâncias redondas, quadradas, sinuosas, de esquinas marcadas, sempre liso e um pouco frio. Contornei e voltei ao início. Olhei para cima e percebi, no alto, bem no centro da clareira, que as folhas se afastavam como se algo sólido entorta seus galhos. O vento balançou abrindo mais os espaços na copa e deixou passar alguns feixes de luz que iluminaram o chão. Eles foram refletidos para todos os lados e ofuscando-me. Escutei minha vó gritar longe e fui para casa. Um pouco triste pois queria saber o que era aquilo.

Nos dias que se passaram retornei rigorosamente, ao mesmo horário, para descobrir mais. Cutucando, puxando e empurrando qualquer coisa. Até um dia, de tarde, quando o sol era frio, em um dos lados empurrei uma parte que parecia se mover pesadamente. Esta era cheia de protuberâncias como todos os lugares – por isso não havia percebido. Abri como uma porta.

Fiquei parado algum tempo. Botei um pé para a frente e enfim pisei no chão lá dentro. Ou pelo menos fora do mato delineadamente marcado. Aos primeiros passos fui como cego, tateando os lados para me guiar. E parecia, na largura dos meus braços abertos, um corredor, nos seis passos curtos que dei. Até tocar duas esquinas de cada lado e nada na frente. Parei: e se o corredor terminasse em um vazio? Sem paredes? Como saberia voltar?

Antes, então, voltei à entrada. Peguei algumas pedras mais brancas e enfileirei, como joão e maria, até o fim do corredor. E como imaginei o corredor acabava em um vazio. Procurei a esquina da parede e tocando percebi que continuava para ambos lados. Na verdade, o corredor abria-se para a clareia. Pelo lado esquerdo, tateei pelo que pareceu ser uma linha horizontal grossa e lisa, sem dobras. Constatei passos depois que andava em um círculo, voltando às pedras.

Arrisquei e soltei a parede indo para o que calculei ser o centro.

Nunca vou esquecer da emoção deslumbrada, fascinada, assustada, entorpecida, ofuscada com quando me deparei com o seguinte:

Olhei para cima, onde abriam-se as folhas, o vento passou e de novo transpassou os feixes da luz branca e forte do sol. Meu corpo se derramaria se fosse, como minha mente pareceu ser, um fluido contido em um vidro rígido finalmente quebrado. Diante da beleza que irradiava do centro da torre. Como um caleidoscópio. Os raios refletiam e refratavam em milhões de cores diferentes. Passava pela torre, refletia nas paredes, no chão... tudo estava iluminado. Um prisma de milhões de lados que definia as formas ao meu redor. Meus olhos encheram-se de lágrimas e se derramaram em deslumbre. As luzes contrastavam o visível do invisível. A medida que os feixes iluminavam é como se eles desvelassem paredes robustas de uma madeira quase negra e me entregassem um lugar escuro e acalentador.

Mostrava, também, o que estava escondido nas paredes: livros.

Inteiras, do chão ao teto, abarrotadas. Andei, ainda desaprumado, até elas. Livros grossos e finos, altos e curtos, de capas verdes, marrons, vinho, vermelhas, azuis, couro, tecido. Olhei mais de perto. Estavam minimamente arrumados e limpos, nenhuma poeira.

Extasiado não pretendia ainda pegar um deles e, consequentemente, desalinhar aquela harmonia, mas um nome me chamou atenção e não resisti: Todas as Coisas Maravilhosas. “Coisas” especificamente, foi a palavra que me chamou atenção, depois “Maravilhosas” e então peguei. Como que saindo de uma penumbra meio embaçada, como algo atrás de um vidro com vapor, o livro pareceu tornar-se real em minha mão. Era do tamanho da metade de mim e grosso, mas não era tão pesado. Com ele contra o peito ia do quadril ao nariz, e conseguia fechar as mãos. Segurei-o para que não fugisse de mim como fumaça e fui ao centro. Sentei no chão. O que antes era areia, agora, mostrava-se um tapete felpudo verde e cintilante.

Abri o livro.

Passei o resto da tarde inteira debruçado sobre aquela enorme janela. Eram imagens coloridas de lugares distante. Montanhas verdes ou nevadas, rios caudalosos, mares azuis e negros, flores de todas as cores, ilustrações botânicas, comidas, animais, pessoas. Os olhos curiosos como deveriam estar os meus. E muitos símbolos que rodeavam algumas imagens ou tomavam páginas inteiras. Futuramente, vim saber que eram letras, comuns, mas em uma caligrafia antiga.

Mesmo terminado o livro, folheio diversas vezes nas páginas com as imagens e desenhos mais lindos, depois deitei no tapete olhando para o teto.

O sol foi baixando e o efeito do caleidoscópio fugia. Pus o livro no lugar e, com pesar, saí. Deixei as pedras para lembrar do caminho.

No dia seguinte, minha mãe foi me pegar.

Todos os dias das minhas férias que passaria na vó foram-se na procura da entrada do lugar, e no último achei a tal entrada, mas tive que ir embora...


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