Fundo Preto escrita por Rossetti


Capítulo 1
Um


Notas iniciais do capítulo

Tenham ciência de que isso pode não estar revisado. Estou postando agora puramente por ̶p̶r̶e̶s̶s̶ã̶o amor.

Eu juro que vou continuar isso aqui. Algum dia. Tenho até umas imagens bem bonitas dos personagens. Sério, juro que não vou abandonar.



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Era segunda e eu não via Enzo há três dias. Como um drogado em abstinência, meu corpo sofria as consequências disso: Eu estava inquieto, ansioso, respirando com dificuldade. Qualquer pessoa que me conhecesse ao menos um pouco poderia ver através de mim com clareza, como se eu exibisse em letras garrafais as palavras “preocupação” e “saudade”.

E qualquer ser com um pouco de esperteza conseguia interpretar corretamente meus sentimentos. Bem, menos Enzo.

Eu sempre fui apaixonado por ele.

E nós sempre fomos melhores amigos.

E Enzo simplesmente não percebia.

Parece que ele é um idiota falando assim, eu sei. Mas Enzo é o extremo oposto, é um gênio, a pessoa mais incrível que já conheci. Não, eu não acho ele maravilhoso porque amo ele, eu amo Enzo porque ele é maravilhoso. Saca?

Para que tudo fique claro, vamos do começo: Meu nome é Jeff e eu sou um zero. Não tenho problemas em admitir isso. O zero que fica antes da virgula, sabe? Ele tem um papel claro ali, mas ele ainda é só um zero. Você já conheceu alguém que, mesmo quando faz algo foda, continua invisível? Esse sou totalmente eu.

Eu toco numa banda. Adivinha: Eu sou o baixista. Ninguém nem olha duas vezes para o baixista, ainda mais quando os vocalistas são um gênio e uma diva, o guitarrista é um galã e o baterista o bad boy com cabelo maneiro.

Passei numa boa universidade pública, mas ei, eu faço letras. Meu irmão mais velho é médico, minha irmã tem um cargo importante numa empresa de publicidade. Meu primo mais próximo faz direito. Mesmo a parte da minha família com quem ainda tenho contato não dá uma foda para o que estudo.

Tenho amigos e sei que eles me amam, mas na maioria das vezes me sinto como o cara que tá sobrando, que não vai fazer falta em nenhum role.

Eu sou quase bonitinho, o cara que até fica pagável depois que você bebe algumas doses. Meu cabelo é cacheado e escuro, a pele cor de canela e apenas magro, porém sem a cintura que eu gostaria de ter. Comum e apagado.  

Minha autoestima é quase inexistente e quando alguém tenta levanta-la, acaba piorando. Não consigo levar a sério elogios, parecem sempre como piedade que os demais tem por mim. Às vezes até penso que estou me colocando para baixo demais, que estou sendo autodepreciativo além do limite que devo ter algum valor, mas esse tipo de pensamento geralmente é seguido por uma onda de vergonha e tristeza.

Ao menos eu tenho a sorte de ser melhor amigo de Enzo, de ser uma das pessoas mais próximas dele. O fato de eu ser apaixonado por ele (e saber que não tenho chances nisso) nunca diminuiu minha alegria e orgulho por poder ter essa amizade.

Conheci ele na primeira série. Enzo era o melhor aluno da sala, quando resolvia prestar atenção no que a tia falava. Em geral ele preferia olhar pela janela ou rabiscar o caderno. Não falava com ninguém, a um ponto que nem bullying sofria, já que nossos coleguinhas cansavam de provoca-lo sem causar qualquer reação ou irritação.

Então um dia eu simplesmente fui até ele e ofereci bolacha. Enzo me encarou, surpreso, e eu percebi pela primeira vez que aqueles olhos tinham uma cor maravilhosa, um castanho tão clarinho, tão bonito. Enzo me ofereceu suco de caixinha. E fim, éramos amigos.

Não muitos anos depois disso, ele começou a escrever os primeiros poemas.

Com doze anos nós éramos as crianças mais estranhas da escola, facilmente.

Enzo cantava e compunha, eu me matava para aprender violão e acompanha-lo. Ele não falava com mais ninguém, como sempre. Mas algumas coisas estavam mudando. Ele ficava em seu próprio mundo, como sempre, como se tivesse construído um muro entre ele e todos os outros (além de mim). O problema é que esse muro parecia estar cada vez mais frágil. Algumas coisas de fora atingiam Enzo e de repente ele ficava totalmente sensível e frágil. Um exemplo é que um milhão de pessoas já tinham o chamado de maluco sem obter nenhuma reação, mas uma vez aleatória que um garoto disse que os poemas de Enzo eram ruins, bastou para deixa-lo inconsolável por dois dias, sem nem mesmo ir para a aula.

 E eu era aquela criança meio viada, que falava desafinando graças à puberdade, gostava de dançar e não fazia a menor ideia do que estava acontecendo quase todo o tempo.

Posso dizer com certeza que esse foi o ano que as coisas desandaram.

Várias coisas vinham acontecendo e eu era bocó demais para reparar. Uma delas é que os professores começaram a ficar realmente preocupados com Enzo, por ele ser tão fechado, tão distraído e subitamente sensível. Os pais dele chegaram a ser chamados na escola, com a recomendação de que levassem o menino a um psicólogo. Os dois ficaram irados, disseram que Enzo não era nenhum maluco para ir médico da cabeça, que se ele não dava trabalho nas aulas nenhum professor tinha o direito de se meter na vida dele e até ameaçaram trocar o filho de escola. Eu só fiquei sabendo dessa história completa alguns anos depois.

Outra coisa sobre esse maldito ano da pré-adolescência é que de repente havia um comercio clandestino de revistinhas pornográficas entre os guris da nossas idade (e sejamos sinceros, até umas gurias estavam nessa). É, crianças, antes da internet o pornô era assim.

Mais por curiosidade e a pressão de entrar na onda dos coleguinhas, economizei o dinheiro de comprar doce por alguns dias, até poder comprar minha própria revista de origem duvidosa. Até Enzo comprou uma.

Descobri então uma incrível utilidade para minha mão direita, enquanto ficava sozinho em casa. Era maravilhoso folhear aquilo e não precisar pensar, apenas...

Foram semanas para que perdesse a magia inicial e eu começasse a pensar melhor um pouco no que estava fazendo. Eu adorava uma página em especial, na qual tinha a foto do casal, o jeito que o cara segurava a moça, com aqueles braços fortes, o tórax definido dele, as coxas...

Joguei a revista do outro lado do quarto.

Hoje dou risada de lembrar do meu choque inicial ao perceber que estava batendo pro homem da revista.

Ah, e ainda nesse mesmo ano conhecemos a Taz.

Não, não, Taz não é o nome dela. Ela chama Laís. Acontece que ela é, provavelmente, a pessoa mais desastrada que já nasceu. Essa guria entra em qualquer lugar e em cinco minutos pode causar uma destruição irreparável. Não é culpa dela, dava pra ver o esforço que faz para não derrubar tudo em seu caminho ou cair sem motivo algum. Mesmo assim, o apelido Taz (segundo ela, dado por seu tio) grudou definitivamente. Ela já nem se apresentava com o nome verdadeiro.

Apesar de ser uma arma de destruição em massa, ela tinha uma personalidade maravilhosa. Nada da mocinha que cai e fica esperando o príncipe a salvar; ela se machucava, ria, fazia piadas sobre isso, salvava a si mesma. Gostava de ser amiga de todos, puxava assunto em voz alta e gargalhava sem vergonha. E se alguém não gostasse dela, que tivesse um bom folego para discutir, porque a Taz braba era uma loucura. O maior talento de Taz era a arte e ela adorava desenhar as pessoas como se fossem cartoons, fazia isso o tempo todo.

Na época em que ela entrou em nossas vidas, literalmente caindo (primeiro dia da sétima série, tropeçou na entrada da sala de aula), não era bonita nem feia. Por algum motivo ela teimava em tentar alisar o cabelo crespo, que resultava num penteado desforme, além de estar sempre com os joelhos e cotovelos das roupas rasgados e com manchas de comida e tinta na camiseta. Isso, no entanto, não impediu Enzo de ficar absolutamente louco por ela.

E ele é apaixonado por ela até hoje.

Eu nunca vi Enzo se encantar e ficar amigo de alguém tão rapidamente (além de mim mesmo) eu comecei a me incomodar a partir daí. Eu não entendia ainda a forma que gostava do meu melhor amigo. Não que tenha existido um momento repentino “puta merda, eu gosto do meu amigo como um namorado”, como foi a descoberta de ser gay. As coisas foram ficando incomuns gradualmente até que um dia eu tive que admitir para mim mesmo.

E mesmo com aquelas pontadas de ciúmes, eu adorava Taz. Era ótimo ser amigo dela.

Graças a Taz, conhecemos Pedro Penha, o Pepê. Um carinha uma série mais velho que nós, que estava sempre de boa. Desses que ninguém sabe como passa de ano, porque está sempre dormindo nas aulas. Todas as meninas mais novas ficavam loucas por causa dele. Não era pra menos; para se ter uma noção, enquanto eu parecia ter oito anos de idade e Enzo era mais branco que um bicho de goiaba, Pepê era alto, moreno, com uns braços fortes e topete. Já estava até nascendo barba no cara! E ainda tocava bateria e trabalhava na oficina do tio depois da escola, pra comprar uma moto (era o sonho dele, Pepê falava sobre motos o dia todo, se você desse corda).

Ok, sendo sincero, eu tive um crushzinho por ele. Em minha defesa, toda pessoa capaz de se sentir atraída por um cara já teve crush no Pepê.

Taz conheceu ele por acaso e o fez andar com a gente nos intervalos. A companhia fez de nós não mais os dois caras mais estranhos da escola, agora éramos os quatro caras mais estranhos da escola!

Mas o respeito por nós cresceu e nos arriscamos até a tocar e cantar um pouco durante os intervalos, no refeitório da escola. Eu levava meu violão, Pepê usava dois lápis de baquetas improvisadas e Enzo cantava. Quase sempre algum sucesso do rock nacional ou Mpb, já que ainda não haviam muitas músicas compostas por Enzo. Taz só ficava olhando ou desenhando, enquanto os demais alunos paravam para nos ouvir.

Enzo começou a se soltar. Definitivamente, ele nasceu para compor a cantar. Às vezes eu olhava para ele e achava tão lindo, alguém com tanto talento e beleza para serem mostrados ao mundo, um ser tão completo e complexo. Eu queria estar sempre ao seu lado, nem que fosse apenas para sentir um pouco dele, como se ele fosse um sol me iluminando e fornecendo calor. Mas eu também queria sempre ver mais e mais dele, apreciar cada tom de sua voz e cada pensamento e sentimento seu, colocados em palavras, nas letras que escrevia.

Nesses dias, as vezes eu desejava que as músicas durassem para sempre. Eram momentos tão bons, aqueles sorrisos eram tão sinceros. Estávamos todos tão bem.

— Jefferson? – A voz me chamando me tirou do meu mar de pensamentos e eu vou bruscamente para o presente. Onde estava mesmo?

Olhei em volta, perdido. Sala de aula, faculdade. Segunda-feira. Todos olhavam para mim.

— Desculpa. – Eu olhei para frente, de repente entendendo que o professor era quem estava me chamando. O senhor Adão era gente boa, meu professor preferido e dava aulas de Semântica. Eu sempre fui o melhor aluno na matéria dele. – Desculpa profê, eu tava... – Não completei a frase. A maldita ansiedade não me deixava pensar em mais nada além de Enzo.

— Você poderia responder a pergunta, Jefferson? – Ele perguntou, pacientemente.

— Ah... Desculpa, eu não estava... Ouvindo. – Gaguejei, sem graça.

— Jeff, você sabe que eu não anoto presença ou falta, esperando que os alunos assistam minha aula por livre arbítrio, então se está muito chato para você ficar aqui... – Ele apontou a mão na direção da porta e os outros alunos riram baixo. – Não vou te julgar.

— Não é isso. Sério, professor, eu só... – Encolhi os ombros, enquanto meu rosto queimava de vergonha. Se fosse qualquer outro professor, eu não ligaria, mas era o senhor Adão. – Umas questões... Pessoais.

— E se você estava com problemas a ponto de não conseguir assistir uma aula, nem tinha que responder chamada, pra que veio? – Ele rebateu, já não parecendo tão bravo.

— Eu... – Não soube responder.

— Cai fora, Jefferson. – Ele não disse isso de forma ofensiva ou irritado, era só uma ordem simples.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Peguei minha mochila e deslizei pra fora da sala.

No corredor ainda podia ouvir o senhor Adão continuar a aula, mas logo sua voz se misturou a dos demais professores e dos alunos conversando nas outras salas. E assim que saí do bloco, ouvi passos me seguindo.

— Você não saiu da sala por minha causa, não é? – Perguntei, sem nem mesmo precisar olhar para trás. Somente uma pessoa me seguiria por aí, dessa forma.

— Queria saber se você tá bem. – Heitor resmungou. – Desde que chegou tá estranho.

Heitor era um amigo que conheci quando começamos a faculdade. Ele era uma dessas pessoas com um coração enorme, que estava sempre ajudando todos, falando baixinho e calmamente, cumprindo as regras e sendo paciente. Às vezes eu tinha sensação que ele só era meu amigo porque era tão bonzinho que não queria deixar um colega sozinho, porque, meu deus, ele é realmente bom demais para mim, não faço ideia de como ele me aguenta.

Acho que se meu coração não tivesse dono, eu provavelmente acabaria me apaixonando por Heitor.

(Perceba aqui que eu sou estupido e estou sempre mirando em montes de areia que são demais para meu caminhãozinho.)

— Três dias que ele não atende o celular e nem aparece. Isso tá me matando, Hei. – Falei baixinho, ainda andando sem olhar para ele.

— Ah. Devia ter imaginado. – Ele estava amargo de repente. Heitor era um pouco amigo de Enzo, mas ainda era mais meu amigo e se preocupava comigo a ponto de ficar com raiva de Enzo, durante momentos de crise, mesmo eu explicando que a culpa não era dele.

— Eu vou lá falar com ele, mesmo que ele não queira. Vou entrar pela janela, se for preciso. – Contei, decidido. – Quer vir comigo?

— Não. – Ele respondeu simplesmente.

Quando chegamos ao refeitório, encontramos Serena, outra amiga nossa. Mais nova que Hei e eu, nem maior de idade era ainda. Um amorzinho, obcecada por gatinhos, patins e jogos, um pouco ingênua e cursando pedagogia. Eu adorava puxar suas bochechas até ficarem vermelhas.

— Oi, vocês! – Ela sorriu. – Não deviam estar tendo aula agora?

— Jeff foi praticamente expulso da sala porque tava com a cabeça lá no namorado dele. – Heitor respondeu, puxando um cadeira e soltando a mochila.

— Ele não é meu namorado. – Meu protesto foi ignorado pelos dois.

— De novo isso? – Serena me olhou com preocupação. – Vocês brigaram ou ele sumiu de novo?

— Ele não apareceu hoje pro ensaio, nem atendeu o celular. – Parei ao lado de Heitor e respirei fundo. – Vi ele por último na sexta à noite. Um dia, até dois, sem dar notícias eu posso ignorar e fingir que não é estranho, mas cheguei no meu limite.

— E você vai atrás dele agora? – Ela perguntou. Respondi balançando a cabeça. – Ok, boa sorte lá. – Serê tirou um baralho do bolso e começou a distraidamente mexer com as cartas. – Achei que a gente ia jogar uns truco nervoso, hoje, que pena.

— Ué, joga com o Hei. – Incentivei. A verdade é que eu era o melhor jogador de cartas do meu círculo de amizades e a única pessoa que chegava perto de ser tão boa era Serena. Sempre me perguntei como ela era um desastre em registrar más intensões e climas constrangedores na vida real, mas conseguia ser tão impressionante blefando e lendo as pessoas num jogo de baralho.

Heitor fez uma careta.

— Ele não sabe esconder quando tá com um jogo bom ou ruim, não tem graça nenhuma jogar com ele. – Ela fez uma expressão dramática.

— Um dia eu vou ser muito melhor nisso do que vocês, esperem pra ver. – Hei retrucou, não convencendo nem a si mesmo.

— Vai sonhando, miga. – Dei um tapinha no ombro dele, depois beijei a testa de Serê. – Vejo vocês amanhã.

Me virei para ir embora, mas antes que pudesse dar dois passos senti a mão quente de Heitor segurar o meu pulso. Olhei para ele, sem entender.

— Se o Enzo estiver nervoso demais... Não leve em consideração qualquer coisa que ele disser, tá? – Ele me disse baixinho. Serena balançou a cabeça, concordando com o que ele falou. – E se você estiver nervoso demais, releve. Respire fundo e deixe pra lá. Por favor, Jeff.

— Vocês se preocupam demais. – Pisquei para os dois e me afastei.

O motivo disso é que mais de uma vez, depois de brigar com Enzo, eu fiquei mal por vários dias. Odeio lembrar desses momentos. Nós ficamos nervosos demais e acabamos nos ofendendo. Enzo tentava defender o próprio orgulho e eu perdia a cabeça. Mesmo que depois peçamos desculpas, pensar demais nessas brigas é como tirar a casquinha de um machucado que pensamos já ter sarado e ele acabar sangrando. E no fim nem sei o que machuca mais, magoar Enzo ou ser magoado por ele.

Eu nunca fui o tipo de cara que explode de raiva por aí, por qualquer motivo. O problema é que tudo sobre Enzo sempre me afetou demais, todos os meus sentimentos ficavam fucking intensos quando o assunto era ele. E a cada ano que passava, isso ficava mais intenso. Mais fácil se frustrar, sentir ciúmes, vê-lo como o centro do meu universo. Se eu percebi esse crescimento de sensibilidade? Sim, claro. Com uns dezessete anos pensei nisso pela primeira vez. Como tantas outras coisas, enterrei no fundo da minha mente, o que pareceu mais conveniente.

Peguei minha bicicleta e saí da faculdade. O ar estava fresco e logo meu nariz começou a arder. E, se até o momento eu estava relativamente calmo, as coisas desandavam mais e mais a cada pedalada que eu dava. Entre uma respiração irritante e outra, a inquietude só crescia. Minhas mãos suavam no guidão e a casa de Enzo parecia nunca mais chegar.

Quando finalmente cheguei, respirar era doloroso. Empurrei o portão de forma atrapalhada, entrei, prendi a bicicleta do lado de dentro da grade do portão e subi as escadas depressa. No entanto parei na porta, hesitando. Não importa quantas vezes eu tenha passado por essa situação, nunca ficava mais fácil.

O caso é que Enzo tinha essas crises, as vezes inspiração excessiva, outras ansiedade, ou mesmo simplesmente tristeza. Então se escondia do mundo, as vezes chorava e gritava sozinho por um tempo. Mas o normal era isso durar umas horas, seguidas de um tipo de ressaca, na qual ele ficava praticamente vegetando. Geralmente era quando ele me ligava e eu aparecia correndo para fazer alguma comida ou chá, obriga-lo a lavar o rosto e abrir as janelas. E mesmo que pareça corriqueiro, não tenho como descrever o quanto é triste cada vez que eu tenho que chegar e ver meu melhor amigo, o homem que eu amo, dessa forma.

Depois de alguns minutos consegui reunir coragem suficiente para bater na porta. Nenhuma resposta. Toquei a campainha. Bati de novo. Chamei. Nada. Senti um calafrio percorrer meu corpo.

Me passou pela cabeça um punhado de pensamentos ruins e eu tentei empurra-los para longe de mim. Não foi rápido o bastante para me impedir de entrar em pânico.

— Droga, Enzo. – Eu sentia minhas pernas tremerem, então não sei direito como dei a volta na casa e entrei pela janela da cozinha, sem cair nenhuma vez.

A casa estava escura e quieta. Por alguns segundos não me mexi, o pânico tomando conta de mim. Então respirei e saí acendendo todas as luzes em meu caminho: da cozinha, do corredor, do banheiro e, finalmente, da sala.

Enzo estava sentado no chão da sala, apoiado sobre a mesa de centro, com os braços escondendo o rosto. Assim que o vi, corri para ele, me joguei de joelhos e o abracei por trás. Sentir o movimento de sua respiração contra o meu peito foi como constatar que eu mesmo estava respirando. Vivo.

Seu cabelo estava oleoso e ele cheirava falta de banho, mas não importava. Eu só precisava sentir um pouco do seu calor, para ter certeza que estava tudo bem. Me chutei mentalmente por não ter vindo mais cedo. Se algo tivesse acontecido a ele, a culpa seria inegavelmente minha.

— Você não me ligou. – Sussurrei. Queria chama-lo de idiota, egoísta, inconsequente, apenas descarregar minha frustração. Mas eu ainda podia ouvir a voz de Heitor na minha cabeça, pedindo para deixar pra lá, então fiz isso. E soltei Enzo, antes que passasse do limite do contato físico necessário num momento tenso.

Ele não me respondeu, apenas encolheu os ombros.

— Ei. – Sentei do seu lado e inclinei para ver seu rosto. Enzo escondeu o rosto no braço.

— Eu sou um lixo. Não olha pra mim, tá? – Ele disse baixinho. Parecia tão desolado, perdido. Eu queria abraça-lo de novo, ficar tão próximo que ele entenderia que tudo ficaria bem, porque eu nunca o deixaria. Mais que isso. Queria poder me tornar um com Enzo, pra que ele visse meu coração e o quanto ele era importante, lindo e incrível. O universo era tão injusto em faze-lo sofrer daquela forma, uma pessoa boa, com tanta coisa para mostrar ao mundo.

E mais uma vez o velho pensamento me ocorreu: o que estou fazendo que ainda não fiz Enzo ir num terapeuta, para entender e resolver essas crises?

Me culpei imediatamente pelo pensamento. Nada disso. Enzo não é louco, nem tem nenhum problema, só está passando por uma fase ruim da vida dele. Ele é um artista, é emocional e frágil, mas vai superar isso. Não tem sentido expor ele, sento que ele é completamente normal.

— Tá bom. – Respondi, colocando uma mão em seu ombro. Queria tocar seu cabelo, mas pareceu inapropriado. – Você quer um chá?

— Eu quero ficar aqui.

— Uh. – Olhei para a sala e só então percebi o caos que estava no lugar. Haviam folas de papel por todo lado, aparentemente arrancadas de um caderno. As folhas eram diferentes do caderno de letras que Enzo carregava, mas eu sempre soube que ele esconde alguns cadernos, íntimos demais, como diários. Desviei o olhar das folhas, mesmo que ele não estivesse me vendo olhar; ler uma coisa tão intima, mesmo que do meu melhor amigo, não deixaria de ser um tipo de invasão do espaço pessoal. – Você quer que eu vá embora? – Perguntei, mesmo que eu não pudesse apenas deixa-lo assim, sozinho.

Enzo pensou por um tempo. Achei que ele me mandaria embora.

— Não. Só... Fica aí... – Ele deu uma pausa. – Cara. – Completou, como se buscasse manter a normalidade da conversa.

— Fico. – Garanti. E sentei da mesma forma que ele, depois suspirei e fechei os olhos. Meu nariz ainda ardia.

O silencio durou vários minutos, até que ele bruscamente levantou e começou a recolher os papeis do chão.

— Você não deveria estar aqui. Eu não preciso de uma babá. – Ele disse, enquanto juntava tudo de forma desordenada.

Senti uma pontada de irritação e tive que contorcer vários órgãos internos para não dar uma resposta sarcástica. Fechei bem a boca e encarei a mesinha, antes que eu o mandasse ir à merda. Pensei no que Heitor disse. Certo, ficar calmo.

— Eu não posso ficar sozinho que você já acha que é o fim do mundo. Eu não sou nenhuma criança. Nenhum idiota, nenhum incapacitado. – Ele continuou, apontando em minha direção a mão que segurava as folhas.

Ah, que vontade fiquei de gritar que ele era sim um idiota, que era ingrato e incessível, mesmo que ele não fosse nada disso. Só senti vontade de, sabe, jogar na cara dele que eu me importava e ele não ligava para isso.

Mas ele ligava, eu sabia que ligava.

Pessoas falam coisas estupidas quando estão fora de si. Magoam quem elas amam só para provar... Não sei o que. Não faz sentido. É apenas um bolo de dor e raiva que te deixam cego.

Por isso a paciência que tive veio provavelmente do além.

— Eu posso... – Enzo começou a falar, mas se calou e engoliu as próximas palavras. Não sei com qual expressão ele estava, já que preferi não o encarar. Mas uma vez Enzo balançou a mão com as folhas, antes de virar e jogar tudo dentro da primeira gaveta que encontrou. – Você fica parando as coisas... Você não devia estar na faculdade?

— Se você tivesse me ligado...

— Você teria vindo correndo! – Ele gritou. Pela primeira vez no dia o encarei diretamente. Enzo parecia doente, as maças do rosto salientes, pálido e com olheiras demais. O lábio superior estava inchado. Senti meu coração se apertar um pouco e toda minha irritação dissipar. Levantei devagar. – Você fica fazendo isso!

— Porque eu quero. – Me aproximei. Ele estava terrível. Deuses, eu estava mesmo a ponto de gritar com ele, uns segundos atrás? Enzo, meu Enzo, tão abalado e eu estava... Sendo um lixo de pessoa, pensando em ingratidão.

Ele balançou a cabeça e abriu a boca várias vezes, sem conseguir dizer o que provavelmente queria. Parei e esperei.

— Você... Geralmente fica puto e grita, nesse ponto. Quase sempre. Não sei como continuar essa discussão – Houve uma mudança brusca de clima com isso. Eu quis rir. Ele relaxou os ombros.

— Nem sempre. – Mantive a trégua.

Enzo pensou mais um pouco.

— Sim, mas brigar é mais fácil. – Ele concluiu.

Dessa vez eu ri.

Enzo andou até o sofá, sentou e enterrou o rosto nas mãos.

— Três dias, Enzo. – Falei mansamente. – Você fica bravo se eu vir sem você me ligar, mas pretendia não me chamar nunca, dessa vez? Até quando...? Você tem que entender que não importa o que esteja acontecendo, se um amigo se esconde do mundo... Você acha que se fosse a Taz ou..

— É diferente. – Ele retrucou, me cortando. – Taz é perfeita. Eu sou... – Ele não terminou. Deus, como isso doeu.

Taz era perfeita. Perfeita.

Sim, claro que ela era.

Mas Enzo também era.

As vezes parecia que eles se mereciam, se completavam e eu era a peça solta. Aquele que ama o homem que acha sua melhor amiga a pessoa ideal.

— Vocês são pessoas diferentes, é verdade. – Me aproximei de novo, devagar. – Mas isso não quer dizer que um é melhor e o outro pior. Se você...

— Isso não é sobre eu e ela, Jeff. – Ele me interrompeu. Levantei as sobrancelhas. – É sobre você.

— Hum? – Essa me deixou surpreso.

— Você tem outros amigos. Você tem uma vida. Eu não devia arrastar você pra esse inferno. Caramba, você tem até aquele seu namorado.

Namorado? Inferno?

O que estava acontecendo?

— Eu não sei do que você... Porra, Enzo, que...? Inferno? Do que ‘cê tá falando, cara?

Ele me olhou como se eu fosse um idiota e eu fiquei mais perdido ainda.

— Para de fingir que não é tudo por pena de mim.

Silencio.

Senti meu cérebro funcionar com um computador antigo, demorando mais do que devia para absorver uma coisa dita tão diretamente.

— Pena. – Repeti. Enzo já tinha me dito isso uma dúzia de vezes, sempre no meio de uma brincadeira. “Você só fica perto de mim por pena” ele dizia, depois ríamos. Milhares de vezes isso aconteceu como uma piada. E ele nunca tinha falado isso seriamente, olhando em meus olhos. Eu nunca, jamais, imaginaria que ele poderia pensar isso pra valer.

Senti um gosto amargo na boca. Como ele podia pensar... Depois de tanto tempo aqui, depois de tantos anos, que tudo o que fiz foi por pena? Justo quando ele era o centro do meu universo?

— Olha, Enzo. – Comecei. E pensei um pouco, antes de terminar a frase. – Eu amo você.

Não era a primeira vez que eu dizia aquilo, nada mais natural. Sempre fomos amigos e nenhum de nós era do tipo masculinidade frágil, nada de errado em dizermos que nos amávamos. Não vinha ao caso o fato de ser apaixonado por Enzo, eu o amava e éramos amigos, não havia qualquer segunda intenção nas minhas palavras.

— Jeff...

— Olha pra mim. Pro meu rosto. –Mandei. Ele me encarou. Parecia mais quebrado do que nunca, com os olhos avermelhados, chorando em silencio. – Eu não quero que você duvide do que eu sinto. Nunca mais. Entendeu, Enzo? Eu não sinto pena de você. E não pense em insistir nisso justificando que eu te ajudo quando você precisa, porque ninguém é autossuficiente. Eu amo você e realmente iria até o inferno, tártaro, o que for, por você, assim como sei que você iria por mim, porque prefiro encarar qualquer coisa do que ter que viver sem você. Eu sei muito bem o que estou fazendo, então não me insulte dizendo que você me arrastou pra algum lugar, porque se estou onde estou é porque escolhi me jogar com você. – Enzo olhou para o chão e secou uma lagrima nas costas da mão. – Não sei o que deu em você, não sei mesmo. Mas se acha que minha vida é perfeita, errou feio. E mesmo que fosse, não sei porque isso me impediria de estar com você.

Quando percebi, eu já tinha falado. Mais uma vez explodi e senti raiva de mim mesmo assim que percebi o que havia feito. Só havia a diferença que eu realmente não tinha dito nenhuma coisa ofensiva. Mas Enzo estava chorando e era totalmente minha culpa. Eu me senti o maior bosta do universo e corri abraça-lo de novo.

Dessa vez ele me abraçou de volta e apenas chorou em silencio no meu ombro, enquanto eu sussurrava desculpas.

— Você tá certo, não tem que pedir desculpa. – Ele disse, quando se recuperou um pouco. Nos sentamos direito e ele secou o rosto. – Eu estou sendo idiota.

— Bom, mas aí não tem novidade nenhuma. – Eu brinquei, meio desesperado para aliviar o clima. Enzo deu um sorriso discreto e eu senti como se o céu se acalmasse depois de uma tempestade intensa. – Você precisa comer alguma coisa, Enzo. – Comentei, mais sério.

— Eu só... – Ele inclinou um pouco para meu lado e se apoiou em mim. – Depois. Agora eu... Me perdoa por essas besteiras, Jeff? – Sussurrou. – Eu não queria...

—Não tem problema. – Passei o braço pelo ombro dele. – Foi só um momento ruim. Nos saímos bem, se parar para pensar. Acho que deveríamos guardar a formula, pra não acabarmos brigados nunca mais.

Mesmo que a posição me impedisse de ver, eu sabia que Enzo sorria naquele momento.

 

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