Um Refúgio em Silent Hill escrita por Mara S
Emily acordou assustada com o toque de seu celular, quase caindo do sofá, onde havia cochilado.
– Emily? – sua colega de trabalho perguntou do outro lado da ligação.
– Não estou atrasada, suponho... – Emily falou levantando-se e olhando para o relógio, pensando que havia perdido a hora.
– Duvido que chegue a trabalhar hoje! Você precisa ver o que aconteceu aqui!
– É, eu estou ouvindo uma gritaria. O que está acontecendo?
– Um problemão, mas você precisa ver. Se te contar você não vai acreditar.
– Certo... Conseguiu me deixar curiosa. Já estou indo.
Desligou o telefone e se apressando até seu quarto colocou o casaco de frio da noite anterior por cima da calça jeans e camiseta que usava, arrumou o cabelo despenteado, pegou sua bolsa e voltou para a sala curiosa.
Desceu as escadas rapidamente e em poucos minutos já estava na rua com seu carro. Ao chegar perto da boate percebeu um alvoroço fora do comum para o horário, havia várias pessoas do lado de fora e podia escutar o som de vozes agitadas. Parou o carro um pouco distante e caminhou até o local, cada vez mais assustada com o que via.
A frente do Heaven’s Night estava repleta de pessoas estranhas, muitas usando roupas escuras e que gritavam na direção da boate - agora fechada por dois seguranças - as mais diversas coisas. Emily pôde perceber que só poderiam ser pessoas religiosas pelas palavras ditas.
Aproximou-se cautelosa de Lucas, o dono do lugar e que falava com alguém pelo telefone, e a colega que havia ligado para ela, e disse olhando para o grupo logo à frente e para alguns curiosos que se aglomeravam na rua.
– O que está acontecendo aqui?
– Esses malucos apareceram do nada e começaram a gritar aqui na frente. Lucas não faria nada se um dos idiotas não quebrasse um dos vidros com uma pedra. Ele está chamando a polícia. Caótico, não?
– Um pouco...
Emily parou para observar uma mulher loira que parecia mais exaltada do que os demais. Estava descalça e vestia um longo vestido escuro e humilde. Gritava, instigando o resto dos manifestantes.
– PECADORES! VOCÊS TRAZEM A DESORDEM E A PODRIDÃO PARA ESTA CIDADE!!! QUE NOSSO DEUS VEJA O QUE ESTÃO FAZENDO COM TODAS ESTAS FAMÍLIAS!!!
– Bizarro – Emily falou levantando uma das sobrancelhas.
– Não parecem de nenhuma igreja que conheço... – Lucas falou desligando o telefone. – Pronto, a polícia vai aparecer daqui a pouco, suas vadias desocupadas!!! – gritou na direção de um grupo de mulheres.
– É isso que é bizarro. Deve ser o culto... – Emily sussurrou observando a mulher loira de cabelos longos tentar se aproximar, mas sendo impedida por um dos seguranças.
– Não há salvação para o que fazem... – ela falou encarando Emily de forma assustadora.
– O que estou fazendo aqui? – Emily bufou. Pra ela aquele lugar todo podia queimar até o chão que não se importaria. – Pelo menos não vou trabalhar hoje, parece.
– Se a polícia resolver isso, nós não vamos fechar – Lucas falou irritado, ainda encarando a mulher.
– Eu não vou ficar aqui esperando a polícia – Emily falou voltando suas costas para o chefe. Sabia que ele havia reclamado, mas não se importou. Naturalmente, ela não podia ficar ali esperando ser levada até a delegacia junto com todos aqueles malucos.
Ao chegar à porta de seu carro sentiu uma das manifestantes segurar seu braço com força.
– Claudia está certa... Vocês todas não passam de simples prostitutas que sujam nossa sagrada cidade!
– Deus! – Emily reclamou, se soltando da mulher. – Vocês são malucos?
– Não blasfeme! Você não vai embora! Todos os pecadores devem ter seus nomes anotados! – a mulher balbuciou.
– Vai pro inferno – Emily disse ao entrar no carro e ligando o motor. Era demais para ela todo aquele espetáculo.
– Aonde eu vim parar?- reclamou se distanciando dali o mais rápido que pôde. A gritaria ficava cada vez mais distante.
Religiosos... Esses doentes estavam em todos os lugares.
–x-x-x-
Querendo que aquele dia acabasse logo, deitou-se na cama sem se importar com o horário e muito menos se iria trabalhar e agradeceu por acordar somente com a luminosidade da manhã. Olhou para o relógio do celular, que marcava oito da manhã, e agradeceu por não haver chamadas da boate ou de Lucas.
Havia um sol agradável lá fora e depois de um banho quente decidiu tomar café da manhã do outro lado da cidade. Bem distante de Heaven’s Night e de prováveis fofocas. Naturalmente a cidade não era grande o suficiente para que o ocorrido não fosse de conhecimento de grande parte dos habitantes, mas pelo menos seus vizinhos no Vale Sul não poderiam enchê-la com perguntas. Além do mais, não sacrificaria seu modo de vida por uma simples manifestação de fanáticos.
Os prédios antigos de Old Silent Hill deram boas-vindas para Emily assim que chegou pela longa Avenida Bachman. Emily dirigiu distraidamente até a um pequeno café aconchegante que estava sempre deserto, o que no momento era o que mais procurava. Parou seu carro na esquina da Rua Midwich com a Matheson e caminhou até o café, perto do beco entre ambas. Desceu as escadas que levavam até a porta do antiquado lugar e agradeceu por encontrá-lo vazio como de costume. Sentou numa mesinha distante e esperou que o dono do lugar aparecesse para pedir seu café da manhã. Assim que o velho dono desapareceu observou atentamente o local e percebeu sentado não muito longe de si a figura sisuda do padre Vincent. Ela suspirou profundamente e mais curiosa do que o costume se levantou e parando em sua frente, disse:
– Posso me sentar aqui?
Ele parou sua leitura e erguendo uma das sobrancelhas, talvez intrigado com o pedido, deixou que a jovem se sentasse.
– Pedindo conselho? – ele perguntou astutamente para Emily assim que ela se sentou.
– Estou confusa, Vincent. Talvez queira me clarear algo.
– Diga-me.
– Foram seus fiéis que vandalizaram o Heaven’s Night ontem, não é mesmo?
Ele a olhou cuidadosamente e disse:
– Infelizmente sim. Mas não por minhas ordens. Irmã Claudia se sente ameaçada por presenças diferentes do pregado pelo culto. Ela reuniu uma pequena fração de nossos membros.
– Eu pensei que fosse.
– Tudo já foi resolvido. Peço perdão pelo mal ocorrido.
– Por quê? Por que se importa tanto com isso? Supostamente você deveria ficar do lado deles.
– Eu não tenho o mesmo ponto de vista daqueles fiéis. Não ligue para aquela manifestação, por favor. – Vincent disse tratando o evento de forma indiferente.
Houve um momento de silêncio quando o dono do local voltou trazendo o café da manhã de Emily. Somente depois que viu o homem se afastar, ela recomeçou:
– Eu imagino o que essas pessoas falariam se vissem seu líder falando com alguém como eu.
– Quem disse que sou o líder?
– Você se parece com um. E, além do mais, aparenta ser mais inteligente que eles.
– Você está certa. Eu sou o líder. Mas está errada sobre as pessoas do culto. Nada me impede de falar com pessoas de fora e a maioria não veria problemas nisso.
– Mas parece que você não tem muito controle sobre eles... Afinal de contas, se tivesse eles não teriam causado toda aquela confusão na frente da boate - falou sem disfarçar um sorriso astuto.
– Como eu disse antes. Eles são uma pequena fração. Nada preocupante. Mas não sei por que você se preocuparia com estes detalhes...
– Eu não ligo. Eu também não vim aqui somente para isso.
– Para que então?
– Esta cidade é estranha.
– Por que diz isso?
– Eu não sei. Parece que ela está acabando comigo aos poucos. Não sei explicar e nem sei por que estou falando isso com você. Eu não gosto de padres e da ultima vez que te vi, me lembro que não foi muito agradável. Mas você me disse que estava repleta de duvidas e que esta cidade atrai almas desesperadas, ou algo do gênero.
– Eu me lembro do que eu disse. E também me lembro que você saiu transtornada daquele café.
– Exato. Eu quero sair daqui, mas não consigo. Toda vez que sinto algo errado ou acho que a cidade não me traz mais nada de interessante, decido que vou embora. Então, passa alguns instantes e perco a vontade! Isso nunca aconteceu comigo antes... Nunca me prendi a um lugar dessa maneira... enfim, não queria conversar com você, mas aqui estou eu. Parece que não posso mais controlar minhas ações.
– Essa cidade chama as pessoas. Não estou mentindo. Você precisa de ajuda, não é?
– Não de você.
– Então por que veio até mim?
– Eu não sei. Pra falar a verdade já comecei a me arrepender de ter feito isso. Sabe qual é minha vontade? Pegar minhas malas e desaparecer daqui.
Emily riu tristemente.
– Mas eu não consigo...
– Talvez porque sabe que não encontrará ajuda em outro lugar.
– Eu não vou para o culto se é isso que quer pedir. Não há lugar para mim lá.
– Sempre há lugar...
– Corte a conversa fiada – Emily o interrompeu. – Isso não vai funcionar comigo. A minha vida toda eu convivi com pessoas iguais você.
– Iguais a mim?
– Sim, sabichões. Caras espertos demais que acham que sabem de tudo. A vida não é simples assim, padre Vincent. Esqueça. Como eu mesma disse: não sei por que vim falar com você...
Emily se levantou e sem esperar qualquer palavra de Vincent saiu de sua frente. Jogou algumas notas para o dono do lugar e sem esperar o troco saiu do café. A jovem se sentia tão confusa e sem saber o que fazer, não mentia quando dissera que queria sair daquela cidade, mas havia algo que a impedia. Parecia que a cada dia que passava ficava mais presa àquele local e as lembranças de seu passado.
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