This Holiest of Altars escrita por Lady Led


Capítulo 1
My Godness is made of Blood .


Notas iniciais do capítulo

[em itálico é a letra da canção Magdalena do A Perfect Circle, total inspiração pra essa história].



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X

Dominado pelo seu templo comovente,

Dominado por esse altar sagrado;

X

Quando Kisa domina pela primeira vez a mente de Richard Gecko ela quer se afastar de toda a sua dor, e rezar aos antigos deuses se perguntando se é realmente ele que carrega a profecia de libertá-la. Ela vê pelos seus olhos a crueldade de um mundo que não aceita pessoas como ele. Pessoas que não se importam com seus julgamentos, ou com suas convenções sociais.

Kisa demora dois meses e meio pra se apaixonar por Richard Gecko antes mesmo de ter visto ele pessoalmente. Ela conhece a profecia como a palma de sua mão, sempre rezando calada quando o Sol se estendia no horizonte para que um homem sem rosto fosse salvá-la de Malvado, e tomar o seu lugar no trono. Ela imagina por diversas noites como seria a textura de sua pele contrastando com a dela, como seria se enrolar como uma cobra no corpo grande dele, como seria deslizar os lábios sempre pintados de vermelhos pelos lábios dele e sentir toda a sua alma, sugar toda a sua respiração diretamente de um beijo.

Em uma manhã que o Sol começa a se levantar, e Kisa deita em sua cama gelada nos fundos de um altar que é só dela é a primeira vez que ela sente os anos em suas costas. Ela rola o colar vermelho de Malvado sobre os dedos, pensando como seria em fim se ver livre daquela corrente, como seria em fim abrir as suas asas, e voar atrás de um horizonte.

“Eu queria ser Ícaro.” Ela diz em voz baixa, se enrolando em uma bola deitada em sua cama. Para sua sorte faz tempos que Malvado e Carlos não aparecem, não vem exigir o que eles acham por direito, retirando todas as partes dela e levando com eles como se ela os pertence-se. “Eu queria ser Ícaro, e voar através do céu, sob o Sol.” Mas então ela vê Richie novamente, e seu peito dói de uma maneira que ela nunca conheceu.

Naquele dia quente presa em um altar eterno, Kisa descobre como é sentir mais que raiva, e desejo de ser livre.

Ela descobre com os olhos cheios d'água como é sentir-se conectada a algum, como é se sentir menos dona de sua fúria, como é ter alguém com quem ela queria dividir os espaços obscuros de sua mente. Quando Kisa entra na mente de Richard Gecko e vê toda a sujeira e espaços como um buraco negro ela quer se afundar cada vez mais naquela constante nula de existência.

“Me liberte, Richard.” É a sua nova oração, seu novo modo de passar os dias antes que ele chegue, antes que ele possa chegar com as chaves da sua libertação. “Você tem as chaves, me liberte, Richard.”

E pela primeira vez desde que ela ouviu aquela profecia estragada, feita por deuses cruéis, que se torna parte do sangue dela, bombeando as palavras grossas até o seu coração, ela escuta uma resposta falha.

Eu vou te libertar.”

X

Tão pura, tão raro
Testemunhar uma deusa terrena como essa.

X

Não é a primeira vez que Richard escuta vozes em sua cabeça. Elas vêm atordoando sua mente desde que ele era menino. A primeira vez que ele escuta, ele se esconde em seu armário pequeno que divide com Seth.

O pequeno Richard se encolhe e cobre as mãos sobre as orelhas, tentando abafar as vozes, tentando fazer com que os sussurros vão embora, tentando fazer sua mente ficar em branco.

Mesmo naquela época, Richie já era o que todos consideravam de uma criança esquisita. Ele usava óculos de grau grossos em todo o momento, e quando podia se escondia na biblioteca da pequena escola na sua cidade, entre os livros de biografia de assassinos, e os de mitologia diversas. Richie se lembra quando os gregos e romanos entraram em sua vida, carregando histórias cruzadas e heroicas de deuses que não tinham medo das vozes na sua cabeça.

Ele conhece Ícaro então, o rapaz ambicioso que voou muito perto do Sol, e derreteu suas asas coladas com cera, e ele compreende o que o tão ambicioso garoto sentiu, porque ele também queria colar asas com cera e voar o mais alto que pudesse conseguir, até que suas penas derretessem e ele caísse em uma vastidão de nada até a morte iminente.

Richard tem inveja dos deuses, tem inveja das suas histórias trágicas e de suas mentes que não são assombradas por vozes que os fazem engatinhar até os armários e cobrir as orelhas enquanto encharca de lágrimas o vidro de seus óculos.

Quando Richie – um Richard mais velho, e com a sanidade menos estável – escuta Kisa pela primeira vez ele acha que as vozes se tornaram mais cruéis, e mais realistas porque dessa vez ele não apenas escuta a voz açucarada em sua mente, ele também vê os olhos dela, e seus cabelos longos, e sua pele azeitonada. É como se o que ele estivesse vendo fosse uma de suas deusas favoritas, como se todas as histórias que ele consumia quando era menor tivesse se materializado em sua frente e se tornando uma mulher de lábios vermelhos e quadris que ele quer apertar com dedos possessivos.

As palavras dela ficam em sua mente por dias e dias, consumindo o pouco da sanidade que resta dele como se fosse o fogo que uma vez se alastrou pelo corpo de seu pai, fogo esse que ele havia iniciado.

A voz dela fica em sua pele, o rasgando de maneira tão cruel quando o cinto que seu pai uma vez usou para rasgar suas costas com o couro grosso, falando que ele não poderia ter um filho perturbado, um filho errado e esquisito. A voz dela implorando faz os pulmões de Richard se contorcerem em procura de ar mais do que quando ele segurava o choro toda vez que escutava as vozes de pessoas reais repetindo incontáveis vezes como um Gecko poderia ser tão patético, como ele poderia ser tão diferente daquilo que estava em seu sangue.

Me liberte, Richard.” Ele escuta quando o Sol toca seu rosto de maneira que queima como se fosse estivesse tentando transformar seus ossos em cinzas. E sem um segundo pensamento, Richard sabe que faria isso.

X

Perdi meu autocontrole,

Além de ser impelido a atirar este dólar diante do seu

Altar sagrado.

X

Kisa se sente em uma montanha-russa sendo mantida por apenas um prego quando vê Richie pela primeira vez diante de seus olhos. Ele está todo estragado diante de seus olhos, o cabelo preto escorrido por sua testa suada, as roupas sujas de sangue e poeira do deserto, sua mão sendo enrolada em uma silvertape prateada coberta por restos de carne e de sangue seco.

Mas mesmo nesse estado, o estômago de Kisa parece querer se revirar dentro dela, juntando todas as emoções em uma única escalada pra uma subida sem volta. Ela rebola os quadris, e sacode o cabelo, mas seu coração martela fortemente contra a sua costela, se expandindo e comprimindo todos os seus órgãos em uma tentativa suicida de se acalmar.

Kisa não tem mais controle do seu corpo, não do corpo já tão abusado e atacado por outras pessoas. Seus músculos se movimentam em vontade própria, desfilando pelas fileiras de pessoas sem nem ao menos enxergá-las, escorrendo liquido quente entre a sua boca e a de Richie.

É como se ela estivesse em um estado de semiconsciência com o seu próprio corpo. Como se fosse agora a mente de Richie controlando ela, e não mais o contrário. Kisa quer se livrar dessas pessoas, quer se livrar desse batom, dessa roupa. Quer emergir os dedos da mão no cabelo negro suado e bagunçado, e arrastar os fios grossos e sujos para os lados.

Kisa quer arrastar os dentes cheios de veneno pela pele do pescoço dele, e torná-lo eterno, assim como ela, quer arrastar a carne mortal dos ossos dele, e torná-lo tão igual a ela, e torná-lo quase tão infinito quanto ele sempre desejou.

“Você é real?” Ele pergunta quando seus lábios estão próximos o suficiente que ela pode sentir a sua respiração pegajosa sobre a pele dele. Ela pode ver as gotas de suor escorrerem do seu cabelo em direção ao pescoço do lugar onde ela está.

“Eu sou real, Richard.” Kisa sibila rolando o nome do Gecko entre a sua boca de modo quase profano, de modo que faria religiões desmoronarem sobre o pecado de seu nome em sua boca. “E eu estou aqui com você.”

“Bom.” Richie devolve o seu sorriso de uma maneira que faz a montanha-russa pastosa no estômago de Kisa despencar dentro dela e se tornar quase nada. Faz o corpo de Kisa se tornar nada mais que massa sendo mantida em seus pés por uma força que não é dela. O sorriso que Richie dá para ela faz com que a oração gravada em seu sangue se torne mais forte, a ponto de cravar as palavras em seus ossos brancos, por debaixo da sua pele.

“Eu preciso de você, Richard.” Ela diz, arrastando até que enfim as mãos sobre o rosto sujo dele. Richie fecha os olhos, e os lábios que suspiram cansados e entregues escorregam pela pele da mão dela, fazendo os dedos se tornarem fracos, e queimando onde eles passam. “Eu preciso que você me liberte.”

“Bom.” Ele diz novamente enquanto ela desliza para baixo, ficando mais próxima a ele. Tudo em volta de Kisa parece ter sido sugado para um lugar que ela não consegue mais prestar a atenção. O som do Titty Twister se perde entre as batidas rápidas e compulsivas de um pulso que ela achou que não poderia mais bater. “Qual o seu nome?” Ele questiona levantando os olhos para que encontrem com o teu de maneira que faz a pele de Kisa queimar.

KISA.

Meu nome é Kisa.

“Santanico Pandemonium.” Ela sussurra quando o barulho começa a entrar em sua mente novamente, quando ela sente todos os olhares caírem sobre eles naquele instante. Kisa quase consegue ouvir o fluir de sangue do ferimento de Richie, ela pode quase sentir como aquilo machuca. Kisa pode sentir a alma que está diante dela, tão quebrada e escura quanto a sua. “Conheça a sua Deusa.”

X

Eu vou vender minha alma, minha autoestima,
Um dólar por vez, por uma chance, um beijo,
Um gosto seu.

X

Richard nunca se sentiu tão enganado, usado e sujo quanto quando descobre o porque de Kisa precisar tanto dele. Ele devia ter conhecido melhor a si mesmo, e o mundo para saber que pessoas como ele não recebem nada de graça dessa vida. Foi assim que ele cresceu, sempre retirando coisas, sempre tomando coisas que eram dos outros, sempre roubando e carregando consigo coisas que pertencem a outras pessoas.

Quando Kisa lhe diz do seu plano em meio a um caos que ele nunca virá igual, Richard quer sair pelas portas e deixar com que ela seja sempre acorrentada pelas correntes invisíveis das pessoas que uma fez já fizeram ela de escrava.

“Eu não posso te roubar.” Ele diz em um fiapo de voz que ainda consegue soltar pela boca. O tiro que levou o fez perder tanto sangue que Richie não sabe por quanto mais de tempo ele pode aguentar aquela conversa sem que seus olhos se fecham para sempre. “Você não pertence a ninguém para ser roubada.”

E é exatamente isso que Richie quer dizer. Ele quer fazê-la acreditar que ela não precisa dele para decifrar aquele cofre, para quebrar os seus cadeados, para cortas suas correntes, porque Kisa não pode pertencer a ninguém, apenas a ela mesma, e as suas vontades.

“Richard, você não entende.” Ele vê quando as lágrimas escorrem por um rosto bonito demais, e quer se encolher novamente em seu armário como fazia quando criança, porque Richard Gecko pode lidar com vozes, pode lidar com pessoas controlando sua mente, pode lidar com o poder de controle do seu irmão, mas naquele momento ele não pode lidar com Santanico Pandemonium chorando. “Eu não posso fazer isso sozinha.”

“Claro que você pode.” Ele quer ser mais firme em suas palavras, porque Richie realmente acredita nelas, mas ele sente a vida escorregar por entre seus dedos como a areia quente do deserto mexicano. Richard quer repetir as palavras novamente, e em um tom mais alto, mas sua boca não consegue mais se mover, emitir mais nenhum som, seus músculos pesam, e tudo que seus olhos querem fazer é ter um segundo de descanso e se fecharem.

“Richard.” Ela fala de maneira quase como se estivesse tentando entrar em seu coração. “Por favor, eu preciso de você.” E Richard acha que se ele fosse um daqueles deuses das histórias que ele sempre amou, esse seria o momento de clímax total da história, seria o momento em que ele faria a escolha difícil, seria o momento de completo heroísmo em prol de um nada maior do que apenas a própria. “Uma Rainha não pode governar sem um Rei.”

“Santa…” Ele tenta falar, mas os lábios dela são tão mais rápidos em cobrir os deles que ele quase acha que está alucinando novamente, quase acha que a linha entre a sanidade dele e loucura foi rompida de vez.

“Kisa. Meu nome é Kisa.” Richard mesmo com os olhos agora fechados pode reconhecer as palavras em tom miserável saindo da boca de Kisa. “Por favor, Richard.”

“Tudo bem.” Richie se encolhe esperando o conhecimento da sua decisão cair no seu peito, mas o que chega é apenas um suspiro de alívio, e dentes cortando sua garganta de modo que o faz querer gritar. O veneno faz seu sangue correr rápido, e sua mente se joga enfim no penhasco.

Quando Richie era mais novo lhe falaram que era apenas preciso de um empurrão para você cair no penhasco da loucura. Nesse momento, Richard se sente voando sobre esse mesmo penhasco.

X

Sou testemunha deste lugar, desta oração,

Há muito esquecida.

X

Dizem que quando Ícaro caiu, ele estava louco por sua ambição de voar tão perto do Sol. Dizem que ele se apaixonou pelo Mar e tomou essa oportunidade para a sua queda final. Dizem que o Sol, a Terra e o Mar tiveram uma briga de quem o amava antes durante os segundos do seu mergulho no ar.

Mas Kisa sabe enquanto segura a mão de Richie quando eles saem do Titty Twister que a morte de Ícaro e a sua queda não foi apenas um desses motivos, e sim todos eles reunidos. Ninguém cairia apenas por poder, ou apenas por ambição, ou por apenas amor.

As pessoas caiam por todas essas coisas juntas.

Quando Richie enfim junta seus lábios com os dela dentro daquele carro, Kisa sabe enfim, que ela assim como Ícaro também estava voando muito perto do Sol.

E ela não tinha medo de cair.

Richie não tinha medo de se queimar.

Eles não tinham medo de morrer.

X

Tão pura, tão raro testemunhar uma deusa terrena como essa.


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