Never Gonna Be Alone escrita por SupremeMasterOfTheUniverse


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Hello, martians! Olha a gente aqui de novo!
Segundo capítulo da maravilhosa saga de Mark Watney com um acréscimo de romance. É bom estar aqui de novo!
Quero pedir desculpas porque esse capítulo ainda terá mais uma briga de Mark e Jessica, os dois sendo bem babacas. Mas, depois desse, o clima vai se amenizar entre os dois, prometo. Não me deixem, por favor!
Boa leitura! ♥



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Watney estava surpreso com a quantidade de tempo em que não tinha nada para fazer. De quantas formas diferentes um ser humano poderia se foder ao ser deixado sozinho em um planeta? Esperava que não muitas porque ainda havia muito tempo para descobrir. E fazia apenas algumas horas que tinha voltado para o Hab mas, cacete! Que horas insuportáveis.

Tirou sua refeição do pequeno micro-ondas que os astronautas tinham no Hab. Para alguém que gostava de comida pegando fogo, aquilo era excelente. Bem, comida e provisões enviadas com mais de dois anos de antecedência, tudo isso levando em consideração que haviam passado mais de um ano viajando no espaço e vácuo frios, já devem ter esfriado em algum momento. E Watney detestava comida fria.

Carter não conseguiria comer àquela temperatura. Ela costumava dizer que tinha uma língua muito sensível, o que se estendia para seu paladar refinado, mas acabava a impedindo de ingerir qualquer coisa em uma temperatura extrema, desde sorvetes que faziam seus dentes doerem à macarrão com queijo recém cozinhados que faziam sua língua arder, mas, conhecendo-a como conhecia, Watney sabia que isso era só o modo dela de dizer que era fresca. Carter costumava se aproveitar de palavras bonitas e complicadas para parecer mais inteligente do que realmente era. Que já era inteligente pra caramba, mas não era suficiente para ela. Não estava satisfeita até usar outro jargão para parecer muito mais inteligente, para se sentir superior.

Ele ficava furioso com o quanto ela era irritantemente atraente.

Watney colocou outra garfada na boca tentando espantar esse pensamento. Com certeza pensar que estava sozinho era muito melhor.

É. Com certeza.

Watney queria chutar o escroto de alguém.

Pensou em como suas refeições iriam acabar em algum tempo e tentou apreciar o sabor dela. Ouviu a porta externa da eclusa de ar se abrir e pensou que, talvez, um pouco de ketchup incrementaria sua refeição um pouco mais. E então lembrou-se de novo de como suas refeições acabariam e a ideia de definhar de fome não lhe pareceu nada atraente. Talvez a NASA tivesse mandado morfina para emergências médicas. Watney poderia injetar em si mesmo quando os suprimentos acabassem e...

Espere. Tinha ouvido a porta externa da eclusa de ar se abrir. Não era algo que poderia se abrir sem querer. Watney se levantou com pressa ao perceber o que estava acontecendo. Andou de maneira acelerada e olhou pela janela da Eclusa de Ar 1.

Puta merda! Ele não tinha sido deixado sozinho! Puta merda!

Quando a pressurização terminou, Watney pôde olhar melhor. O outro companheiro da tripulação estava jogado no chão, quase sem forças. Estava se apoiando sobre os dois cotovelos e se arrastando com uma das pernas; imaginou que a outra deveria estar sem movimento, por alguma razão. Em menos de um segundo, Watney reconheceu aquela forma física. Reconheceria em qualquer lugar, depois de tudo o que passaram. Depois de mais ou menos sete anos juntos, se amando e se odiando.

Carter. Claro que era Carter.

Apressado, Watney abriu a porta do Hab pra eclusa de ar e, provavelmente, assustou Carter até a alma. Puxou-a para dentro pelas axilas e tirou seu capacete o mais rápido que conseguiu.

 – Tá ferida? – perguntou, enquanto tirava os apetrechos do traje espacial, que se encontrava mais frio do que deveria estar. Carter tremia batendo os dentes e seu rosto sutilmente pálido estava muito mais pálido do que deveria estar. Se esforçando, ela balançou a cabeça negativamente. Ufa. Um desafio a menos.

Watney finalmente conseguiu abrir o traje e a puxou para cima, tentando tirá-la de dentro dele. Fazendo tudo o que podia, Carter também se esforçou para tirar seus braços de lá. Ele percebeu que uma palavra tentava se formar em seus lábios trêmulos e sem força, azuis de tanto frio.

Frio. Hum.

Foi assim que Watney pôde interpretar a palavra que Carter tentava cuspir.

— ... po... hip... er... hipo... – ela sussurrava com todas as forças.

Hipotermia.

— Cacete. – Watney disse, pegando-a no colo. Andou rápido Hab adentro, tentando chegar à primeira cama que conseguisse. Seu coração batia tão rápido que sentia que ia vomitá-lo. Teve certeza de que Carter, pequena e aninhada a seu peito, o sentia explodindo em sua orelha.

Com os pés, derrubou as cobertas de sua cama, torcendo para não perder o equilíbrio e cair com a moça possivelmente morrendo hipotérmica em seus braços. Fazia tempo que não a segurava em seus braços. Também fazia tempo que não a segurava em seus braços e colocava na cama. Após fazê-lo, tirou o resto do traje frio de suas pernas e pés, tentando desesperadamente livrá-la do ambiente frio ao seu redor. A cama também não deveria estar muito quente, mas isso mudaria logo.

3º hábito antigo retomado naquela situação: fazia tempo que não a segurava em seus braços, colocava na cama e tirava suas roupas. Impressionante como as convenções sociais eram modificadas quando alguém estava incapacitado.

— Já vou terminar... – Watney disse, tentando tranquilizá-la da única forma que podia. Tirou a camiseta dela cuidadosamente e colocou a mão em sua testa, logo em seguida na clavícula. Realmente, estava muito fria. – E aí, quando eu tirar todo o frio, você vai ter o melhor aquecedor já inventado: o sangue humano.

Watney terminou de puxar a calça e, o mais rápido que pôde, tirou suas roupas também, restando apenas a roupa íntima. Cara, tudo aquilo parecia estranhamente familiar. Deitou-se na cama ao lado de Carter e a puxou para perto de si, abraçando-a e jogou as cobertas por cima dos dois. Percebeu que ela tentava, novamente, cuspir palavras:

— V-você... J-j-já foi mais... rápido. – gaguejou. Watney riu, aliviado. É, ela iria ficar bem. Se estava fazendo piadas em um momento desconfortável pra quebrar o gelo, Carter estava bem.

— É, faz um tempo que a gente não pratica. Mas reparou em como foi mais fácil pra mim te levar nua pra cama em Marte e literalmente congelando do que em dois anos de namoro?

Carter tossiu algumas risadas. Realmente, ela estava achando graça daquele momento.

— E-eu... sou dif-f-f-fícil, gato.

Ela se aninhou no peito de Watney, que a puxou para um pouco mais perto.

— É... Eu sei que é... – ele disse, afagando seus cabelos com carinho. Observou enquanto a cor retornava aos seus lábios lentamente.

E nisto ficaram. Watney estabeleceu um movimento constante passando suas mãos pelas costas dela em uma tentativa de aquecê-la. Era um alívio saber que Carter ficaria bem. Mas, devido às circunstâncias, bem era relativo, porque em algum tempo ela iria perceber que os dois estavam presos sozinhos naquele planeta de merda e não tinham, simplesmente não tinham escapatória. Teriam de se aguentar até o fim de suas vidas que, na verdade, não demoraria muito.

Puta merda, ele não tinha sido deixado sozinho.

 

Diário de bordo: Sol 19

 

Oi, aqui é... Mark Watney... astronauta. Eu vou fazer essa entrada só pra constar caso eu não sobreviva.

São... 6h53 do Sol 19 e... eu estou vivo. É, eu sei que isso é óbvio mas... imagino que vá ser uma surpresa para os membros da equipe. E pra NASA. E pro mundo inteira na verdade, então... surpresa! Acho que o que não é tão óbvio mas tão surpreendente quanto é que a Capitã Jessica Carter também está viva. Pois é.

A gente não morreu em Sol 18 e... pelo que eu entendi esse tanto de antena primária de comunicação se partiu e... atravessou o meu biomonotor e fez um buraco em mim também. Mas aí a antena e o sangue deram um jeito de vedar o vazamento do traje o que me manteve vivo. Apesar da equipe pensar que eu tinha morrido. A capitã chegou aqui depois de mim, hipotérmica. Pela análise básica que fiz no traje dela, o regulador de temperatura quebrou e o biomonitor também foi destruído, mas... a integridade do traje deve ter retido calor o que a manteve viva. E aqui estamos.

Nós não temos como contatar a NASA; mesmo que tivéssemos, levaria 4 anos pra uma missão pilotada nos alcançar. Estamos num módulo projetado pra durar 31 dias. Se o oxigenador pifar, sufocamos; se o reaproveitador de água pifar, morremos de sede; se o Hab se romper a gente meio que implode. E se por um milagre nada disso acontecer, vamos acabar ficando sem comida.

Então... é.

*suspiro*

É.

 

Diário de bordo: Sol 19 (2)

 

Acho que agora me sinto em condições melhores de explicar o que aconteceu.

Por volta de cinco da tarde eu estava jantando e ouvi a porta externa da Eclusa de Ar 1 se abrindo e comecei a surtar achando que ia morrer. Mas aí me ocorreu que a porta não conseguiria se abrir sozinha, mesmo com a tempestade. Era fechada a pressão, se fosse arrancada, a eclusa inteira teria ido embora e... bem, Mark Watney não existiria mais. Ou seja, só podia ter sido aberta por um ser humano racional ou nazistas marcianos finalmente tinham me achado e estavam invadindo o Hab para exterminar qualquer resquício dos não-integrantes da raça pura.

A partir daí, você já conhece a história.

Não tenho dúvida do que aconteceu. Depois que eu fui atingido pela antena de comunicação, ela deve ter vindo atrás de mim e deixado ordens específicas para a Comandante Lewis levar toda a tripulação embora se ela não voltasse. Ela não me achou e alguma coisa deve tê-la atingido também. No geral, já sei quase de tudo, só tem uma coisa ainda sem explicação: por que ela voltou?

Quer dizer... Eu sei por que ela voltou. Sei exatamente por que ela não deixou a comandante ou qualquer outro vir atrás de mim e, não, não é por que ela é a capitã e é a obrigação dela. Tem uma coisa que foi mantida em segredo absoluto, porque a NASA não queria denegrir sua imagem e...

Vou direto ao ponto: a Capitã Carter e eu somos casados. Pois é. Tecnicamente falando, ela é Capitã Carter-Watney. Mas nós dois estamos separados. Há mais ou menos dois anos. Pode parecer estranho que não estejamos juntos há todo esse tempo e ainda sejamos casados mas uma parte de mim sempre estará presa a ela. Não consigo me desvencilhar dela. E acho que ela voltou porque também não consegue se desvencilhar de mim. Nossa, que sensação estranha. Em parte, é muito maneiro saber que ela ficou por mim e, certamente, vai ser bom passar os meus últimos dias com uma companhia ao invés de sozinho. Mas, em outra parte, não queria que ela tivesse se metido nessa por mim. Estou me sentindo um bosta. E agora estou desabafando com uma câmera sobre a minha situação cagada de várias maneiras. Ainda tenho muito tempo pra ficar louco.

Agora estou olhando a Jessica dormir e me sinto bem mais confortável de saber que está aquecida. Hum. Me ocorreu que a chegada dela cortou os meus suprimentos pela metade. E também o meu tempo de vida.

Você sabe que estou só brincando.

Não quanto aos suprimentos, ela realmente cortou meu tempo de vida pela metade. Mas vai ser bom não morrer sozinho.

 

...

 

Carter abriu os olhos pesados lentamente. Na última vez em que acordou lembrava-se de sentir um frio tão grande que mal conseguia se mexer, principalmente na perna direita. Foi forçando sua mente para tentar lembrar do que aconteceu. Alguma coisa tinha caído sobre seu joelho direito, algo... pesado. Tinha de chegar ao Hab logo.

A preocupação já tomava conta de Carter quando percebeu que já estava no Hab. O frio tinha passado. Estava aquecida e segura, deitada em uma cama e debaixo de cobertas. Estava com fome. Tirou as cobertas de cima de si e descobriu-se sem roupas. Quer dizer, usava calcinha e sutiã. Um pouco mais de lembranças voltaram a sua mente. Lembrava-se de ter sido carregada para a cama. Lembrava-se de ter feito piadas. Lembrava-se de um cheiro e uma sensação familiar, que já não sentia há algum tempo.

Mark.

Mark tinha sobrevivido. Mark estava lá com ela. Mark e ela tinham sido...

Não. Não pensa nisso. Por favor, não.

Carter engoliu o choro, ouvindo estalos dentro de seu ouvido. Levantou-se e quase caiu ao tentar ficar em pé. O pé direito ainda não estava bom. Colocou-o no chão e foi aplicando seu peso nele cuidadosamente, para ver até onde ia. Pelo visto, dava pra mancar. Ok, melhor que sair pulando. Mancou até o armário de onde tirou uma camiseta grande demais para ser dela e a vestiu mesmo assim. Ainda queria muito comer.

Enquanto mancava até a cozinha viu Watney sentado na cadeira do computador vestindo uma jaqueta com capuz de braços cruzados. Parecia mal humorado. Nada que já não fosse de se esperar. Voltou seu olhar para os pés, tentando não cair.

— Tá bem? – perguntou se apoiando na haste que sustentava o Hab ao seu lado. – Fisicamente?

Watney levantou seus olhos para ela e sua expressão se suavizou.

— Oi. – disse tranquilamente. – É, um... um pedaço da antena de comunicação me atravessou mas o sangue caiu e meio que lacrou a fissura no traje espacial. Eu quase morri por excesso de oxigênio. Agora o corte tá grampeado e... Eu tô bem. E você?

— Ah, na medida do possível, a gente vai. – Carter deu de ombros, cruzando os braços. – Não estou com frio. Meu pé está cagado, mas vai melhorar.

— Você lembra do que aconteceu? Do que bloqueou a sua circulação?

Carter forçou a memória mais um pouco mais, tentando se lembrar de antes de Watney resgatá-la no Hab.

— A última coisa de que me lembro é dizer pra Lewis ir embora se eu não voltasse em dois minutos. E pra não voltar pra me procurar. Depois disso, minha próxima lembrança é de acordar com o alarme de temperatura insustentável no traje é alguma coisa bem pesada tinha caído em cima do meu joelho. Não consegui ver direito, por causa da areia. Tinha muita areia. Acho que eu estava no fim de uma colina ou coisa assim. Não sentia minha perna e vim me arrastando até aqui. Foi treta.

— Lembra o seu nome?

Carter ergueu uma sobrancelha e sorriu sutilmente, divertindo-se.

— Depende. O meu nome é Jessica? Porque se você me disser que não é, eu vou ficar confusa.

Watney achou graça.

— Seu nome é Jessica. Até onde me contaram.

— Isso é uma clara demonstração de que chegamos a um ponto de intimidade um com o outro em que tudo o que eu sei sobre mim, você também sabe.

 – Ou, pelo menos, tudo o que você acha que sabe. – Watney ressaltou.

Carter apontou para ele, dando razão.

— Hã, Jess... – Watney chamou. – Quanto às coisas que eu disse ontem...

— Não, não, Mark, tudo bem. – Carter interrompeu. – Não se preocupa. Sou eu. Ainda sou eu.

Ele sorriu ternamente para ela.

— E você sendo você, por acaso, não tá com fome?

— Eu tô morrendo de fome. Minha nossa senhora, por favor, me diz que você não comeu 68 sóis de suprimento e deixou alguma coisa pra mim porque, cara, eu não como desde hoje de manhã, nem sei como tô viva.

— Qualquer coisa com um monte de calorias? – Watney perguntou, se levantando e indo em direção ao armário.

— Às vezes eu me surpreendo com o quanto você me conhece. Ah, ah! Espera. Quer saber? Eu quero provar essas salsichas que o Vogel tanto gosta.

 

...

 

Watney estava com sede. Foi o primeiro pensamento que surgiu em sua cabeça ao acordar.

Que horas eram? Provavelmente, madrugada. A madrugada de Marte era sempre trinta e nove minutos mais tarde que a da Terra. Apesar de ele não saber com que horário da Terra comparar.

Estava com muita sede. Ia se levantar para tomar água quando ouviu uma fungada distante. Bem distante. Coçou seus olhos inchados de sono, tentando abri-los. Queria entender melhor o que estava acontecendo.

Olhou para as outras camas ao redor da sua e percebeu que Carter não estava em nenhuma delas. Foi quando as coisas começaram a se esclarecer. O Hab estava escuro e Watney teve dificuldade em caminhar estando bêbado de sono. Uma vez estando plenamente consciente do que estava acontecendo, ele continuou em direção à cozinha, mas com outro objetivo.

Encostou-se atrás de uma das hastes que sustentavam o Hab, olhando Carter sentada no chão e recostada ao balcão da cozinha. Ela continha soluços baixos e lágrimas rolavam soltas por seu rosto. Ela abraçava seus joelhos, como a reação natural a não ter nada para abraçar, Watney sabia; já a havia encontrado nesse estado antes. Os soluços eram constantes, Carter claramente já se encontrava chorando há algum tempo.

Nas circunstâncias em que se encontravam antes de chegar a Marte, Watney a deixaria lá em sua pequena birra pessoal contra Carter mas, naquelas circunstâncias, tomou uma atitude diferente. Ele caminhou até o balcão e se sentou ao lado dela. Só se sentou. Ela pareceu um pouco assustada com a situação.

— Olha, eu não vou te pedir pra falar nem pra pôr nada pra fora,  eu sei que você detesta falar quando está mal. Não vou ficar falando que vai dar tudo certo, não vou te consolar e nem vou reclamar de você ter atrapalhado o meu sono porque, na verdade, você não atrapalhou mesmo. Eu só... só quero estar aqui, tá? Só quero que saiba que eu estou aqui. Se você precisar de qualquer coisa, eu estou aqui.

Carter fungou.

— Tinha esquecido de como você é um bom parceiro. – comentou.

Watney sorriu de canto. Um excelente parceiro, pena que você jogou fora, pensou. Mas aquela não era uma boa hora pra falar.

Carter deitou sua cabeça sobre o peito de Watney, se enfiando entre suas pernas. Fungou mais uma vez antes de começar a chorar novamente. As lágrimas quentes molharam a camisa de Watney, remetendo-o a tempos antigos, onde ele costumava ser o consolador de Carter em situações tristes.

A dúvida continuou martelando em sua cabeça. Ele precisava falar. Precisava saber. Antes que ela perdesse a razão de novo.

— Você voltou. – sussurrou. – Veio atrás de mim. Voltou por mim.

Os soluços e fungadas cessaram. Carter não moveu um músculo. Tinha alguma coisa presa ali.

— Sou a capitã. – disse, sem olhar pra ele. – Não... não posso deixar ninguém pra trás.

Silêncio.

Não era a resposta que Watney esperava. Na verdade, era, mas não era a resposta que queria, percebeu. Puxa, realmente uma parte dele não conseguia se desvencilhar dela.

Os soluços de Carter não mais se contiveram. A camisa de Watney encontrava-se cada vez mais molhada. Sentia-se triste também. Sentia-se fodido. Compartilhou da dor de Carter cuja ficha tinha acabado de cair.

Mark e ela tinham sido deixados em Marte. E, provavelmente, não iriam muito além disso.

 

...

 

— Como tá o pé? – Watney perguntou.

Carter deu um pulinho na cadeira, jogando os longos cabelos ondulados para trás. Watney a assustara.

— Ui. – disse, rindo. – Você me assustou.

— Foi mal. – Watney disse, seco. Tirou um pacote de “ovos” do armário.

O sorriso divertido de Carter sumiu. Parecia que o Sr. e a Sra. Watney estavam de volta à ativa.

— O pé está bem. – decidiu responder, meio sem graça. – Não tô mais mancando. Só vou ter que massagear por alguns dias, pra garantir que vai ficar tudo bem. Mas vai ficar.

— Legal. – Watney enfiou uma garfada farta na boca.

Carter suspirou. Sabia que aquele era o clima que teria de aturar por mais um bom tempo.

— E então... – começou. – Qual é o seu plano?

Watney franziu o cenho e, pela primeira vez, olhou diretamente para ela.

— Que plano?

— Pra nós irmos embora. – ela respondeu dando de ombros. – Tem algum plano? Porque, eu pensei, já que você ficou aqui quase um dia a mais que eu, talvez...

— Jess, não tem plano. – Watney interrompeu, mau humorado. – Não tem nenhum plano. Não tem jeito.

Carter piscou.

— Como assim, Mark? Nenhum plano?

— É, nenhum plano. – Watney respondeu rudemente. – Estamos fodidos. Vamos morrer aqui, você e eu. O oxigenador pode pifar, o reaproveitador de água pode quebrar, o regulador atmosférico pode dar defeito... Posso listar inúmeras possíveis mortes para nós dois aqui, isso sem levar em consideração a inevitável morte de fome que vamos ter, então... Eu não vou criar falsas esperanças, Jessica.

— Eu não tô falando de falsas esperanças, Mark! – Carter interrompeu, começando a se sentir irritada. – Tô falando de voltar pra casa. Nós dois somos cientistas brilhantes, a gente consegue isso! Você é um cara muito inteligente e, bem, eu sou inteligente pra cacete. Nós podemos voltar pra Terra!

— Só que nem tudo o que você quer pode acontecer exatamente como você quer só porque você é inteligente pra cacete! – Watney gritou. O susto em Carter a fez entender ainda melhor o que estava acontecendo. Quando disse as palavras que disse na madrugada anterior, sabia que estava fazendo uma tremenda merda. Sabia que deveria ter falado a verdade. Mas não sabia que reação Watney teria diante da verdade. E, bem... no final de tudo, era orgulhosa demais para qualquer coisa. Sentia-se mais merda do que as palavras que tinha dito.

Carter ficou em silêncio, tentando encontrar as palavras mais sábias.

— Isso está muito além do seu controle. – Watney completou. – Não pode ter tudo o que quer, Jessica. Não vamos voltar pra casa. Eu já me conformei com isso. Tá na hora de você se conformar.

De forma bruta, Watney virou uma xícara de café o mais rápido que pôde. Carter suspirou. Olhou para ele com decepção.

— Puxa. – cuspiu. – Realmente, Mark, você... – Soltou uma risada irônica. – Não é mais você. Agora eu entendo por que você me odeia tanto. O Mark que eu costumava conhecer não se abalaria com isso. Quer dizer, não tem problema ficar chateado pela situação, eu também estou bem chateada, mas, qual é. O Mark que eu costumava conhecer estaria fazendo piadas disso, usando ciência até fazer bico pra sair dessa. O Mark com quem eu me casei não desistia. Não, eu sou a pessoa que desiste: você sempre foi o meu motivo pra continuar. Temos 2,1% de chance de sobreviver e, por você, eu vou me agarrar a essa chance! Agora eu realmente te entendo, estou vendo como a minha presença é tóxica pra você, eu quebrei você. Eu tô te afetando muito então, faça isso por você, na boa. Você deve esse favor a si mesmo. Me ajude a pensar em um jeito de sairmos daqui, vamos pra Terra, assinamos o divórcio e você se livra de mim de uma vez por todas. O câncer da sua vida vai embora, toda a toxicidade... Mas faça isso. Me tira da sua vida, eu tô claramente te estragando. Para de ser tão babaca! Não  esquece: você deve isso a si mesmo.

Carter virou-se e começou a caminhar para não dar a Watney tempo para responder, quando se tocou de que não tinha muitos lugares para ir: estava presa no Hab. Mas tinha de deixar a reflexão no ar.

Sentia-se perturbada ao reconhecer o quanto tinha estragado Watney. De fato, ela era o câncer de sua vida. Enjoou-se mais consigo mesma do que com ele por ter deixado isso acontecer. Ao deitar em sua cama, jogou o antebraço direito por cima da testa e fechou os olhos, tentando não chorar. Já havia chorado demais e Carter detestava chorar.

Tinha como voltar à noite anterior? Tinha como deixar de ser uma babaca orgulhosa de merda? As palavras não saíam, apesar de estarem presas em sua garganta: Claro que voltei por você. Eu te amo. Eu te amo mais que tudo, Mark. Te amo loucamente, desesperadamente, profundamente, absurdamente. Tudo o que eu queria era você de volta. Fiquei em Marte por você, o que preciso fazer pra você me dar outra chance? Por favor, me ame de novo. Eu te amo pra cacete.

 

...

 

Watney viu as coisas de Beck sobre o balcão onde este costumava trabalhar. Fotos dele estavam coladas pela parede. Também viu fotos de família de todos os astronautas espalhados pelo mural feito na parede. A comandante Lewis e seu marido, Vogel e seus vários filhos, Beck e sua irmã, Amy... O laptop aberto exibia uma foto que toda a tripulação tirou junta, fortemente incentivada por Lewis. Ainda assim, Carter era a única que sorria no retrato: os outros estavam todos sérios. Por uma coincidência da vida, ela jogou o cabelo para trás no exato momento em que a câmera registrou a foto, parecendo espontaneamente feliz. Watney quase sorriu ao vê-la, mas segurou seu sorriso ao se lembrar da discussão que os dois tiveram naquela manhã. Odiava admitir mas Carter tinha razão. Não podia limitar seus dias a Marte simplesmente porque estava com raiva dela. Devia isso a si mesmo.

Fechou o laptop. Começou a tirar as fotos das paredes e separá-las de acordo com seus donos. Watney juntou os pertences de cada um, fazendo pequenos montes. Caminhou um pouco além e tirou as fotos coladas às paredes de cada cama, menos as fotos da cama de Carter. Sentiu-se curioso e disse a si mesmo que as olharia depois. Tirou as caixas de pertences pessoais de cada um e começou a arrumar as coisas, guardando cada pertence na caixa de seu respectivo dono. Guardou laptops pessoais, roupas, fotos, anotações...

Depois de algum tempo organizando, Watney fechou a caixa de pertences de Lewis, sendo aquela, a última. Guardou as caixas no vão abaixo de sua beliche e levantou-se para ver mais precisamente as fotos que Carter tinha colado em seu pequeno espaço de parede na cama da beliche que ficava acima da dele, debaixo da de Beck. Tinha uma foto dela com seus seis – repetindo para ênfase, seis— irmãos mais velhos, onde os sete se encontravam sentados lado a lado no sofá da casa de seus pais com sorrisos enormemente forçados, exceto por Cal, o sexto irmão, que se encontrava com uma expressão de tensão e aperto. Watney conhecia bem a história daquela foto: era uma reprodução de uma foto de infância dos sete irmãos Carter e, na hora da foto original, Cal encontrava-se desesperado para fazer xixi. Na segunda foto, Carter fazia uma careta espontânea, imitando um leão, carregando seu sobrinho Adam de cavalinho nas costas enquanto ele e sua prima, Laura, que estava sentada em um banco logo atrás dos dois, riam desesperadamente. A verdade é que Laura e Jessica eram grandes amigas desde sempre por terem apenas três anos de diferença. Pelo que Watney a conhecia, Laura realmente era muito madura, e entendia a amizade das duas.

A terceira foto mexeu mais com Watney porque ele estava nela. Ele e Carter tinham saído para jantar com os pais dela em seu aniversário de 20 anos. Na foto, os quatro estavam virados para a câmera, sorrindo, apesar de estarem sentados frente à frente na mesa. Carter tinha acabado de comer um burrito, o que a deixava sempre feliz, e seu pai, Elliot Carter, havia acabado de fazer uma piada sobre o bafo demasiadamente desagradável da filha. Todos tinham tido da piada, portanto, os sorrisos na foto eram verdadeiros. Watney sorriu ao se lembrar da noite. Desmanchou o sorriso quando se lembrou de que Carter poderia vê-lo.

Watney achou algo que definitivamente não esperava sobre a cama de Carter: o iPad da capitã exibia um desenho digital, e o desenho era... ele. Era um desenho de Watney. Estava de perfil e olhava para longe, mas não era esse o foco. O desenho estava bom, realista. Havia traços repetidos, indicando que Carter tinha passado a caneta digital mais de uma vez pela mesma região. Aquele desenho realmente o pegara de surpresa. Como uma pessoa que jurava conhecer tão bem tinha um talento oculto? Um talento no qual era claramente boa? Bem, Carter era a melhor em tudo o que fazia.

Às vezes, ele se sentia perturbado quando percebia que pagava o maior pau pra ela.

Watney tentou espantar esse pensamento. Deu uma boa olhada e percebeu que tinha terminado de guardar os pertences de seus colegas de tripulação. Ficou pensando nas fotos que tinha visto de todos os outros com suas famílias, com seus amigos, uns com os outros... as famílias que veriam em alguns meses. Os amigos pra quem ainda pagariam cervejas. Uns com os outros com quem ainda conviveriam por mais meses já que estavam indo juntos para a Terra. Enquanto isso, lá estava ele, preso no Hab com sua esposa a quem ignorava e rejeitava categoricamente há aproximadamente dois anos. Não veria sua família em alguns meses. Não pagaria mais cervejas para seus amigos. Não se divertiria – e por se divertiria queria dizer se esforçaria para não matar ninguém com quem estava preso envolvendo piadas ocasionais— na Hermes com os outros astronautas. Estava fadado a morrer sozinho. Estaria menos sozinho se Carter não estivesse lá.

Não era esse o final que queria. Queria tirar fotos novas com seus pais. Queria mais meses na Hermes tentando não matar ninguém. Queria comer pizza outra vez. Queria pisar na grama debaixo do sol. Queria ver seus sobrinhos – ok, os sobrinhos de Carter, mas amava aquela família e sabia que aquela família também o amava. Ainda havia muitas coisas que Watney queria fazer. Coisas que não faria se morresse em Marte.

Carter tinha razão. Ele devia isso a si mesmo. Não podia deixar suas irritações contra ela o matarem. Com todos esses pensamentos em mente, Watney fez uma promessa a si mesmo:

— Eu não vou morrer aqui.

Precisava chegar à Terra. E precisaria resolver milhares de problemas para isso. Como resolveria esses problemas? Simples. Tinha uma enorme vantagem ao seu lado: o melhor é mais preciso solucionador de problemas não-tecnológico estava preso no mesmo espaço de 246 m² que ele. Na cozinha ao lado, estava a Calculadora Humana.

Watney caminhou até a cozinha, determinado mais que nunca a chegar a Terra.

— Tá, Jess, me diz: qual é o seu...

Sentiu-se obrigado a se interromper diante daquela cena um tanto inusitada.

— O que você tá fazendo? – perguntou, inclinando a cabeça em confusão.

Carter estava deitada no balcão. Quer dizer, estar deitada no balcão era até aceitável, mas estava de cabeça para baixo. Literalmente. Tinha quase metade de suas costas penduradas pra fora do balcão. Os cabelos longos estavam soltos e quase encostavam no chão, mas o balcão era alto. Deveria estar naquela posição há algum tempo pois seu rosto já estava vermelho.

— Não consigo pensar. – ela respondeu. – Minha cabeça não estava funcionando direito e eu preciso raciocinar. Então, estou mandando mais sangue pra minha cabeça.

— Hum. – Watney murmurou. – Tá. E... já tem um plano?

Com mais facilidade do que Watney esperava, Carter se ergueu e ficou sentada sobre o balcão com as pernas cruzadas e encolhidas.

— Ares 4. Precisamos... precisamos durar até lá. Aí eu comecei a pensar nos suprimentos.

— Não nos manteriam até a chegada. – Watney observou.

— Pois é. Foi quando eu lembrei que tem morfina na ala médica. O suficiente para uma dose letal.

— Oh, não. – ele interrompeu, vendo o rumo da conversa. – Não, não, Jess. Sem chance.

— Mark, eu estou pensando como capitã...

— Não, eu não deixaria você fazer isso de maneira alguma.

— Se eu fizer isso, vou dobrar seus suprimentos! Vai sobreviver mais de 500 sóis tranquilamente.

— Sem chance! Desiste dessa ideia.

— Me escuta, Mark! Vai ser melhor pra você, vai ser rápido pra mim, eu estou tranquila com isso! Tenho que pensar como capitã, e tenho que pensar no que é melhor pra minha tripulação. Vai ser muito mais fácil pra você...

— Jess, para!— Watney interrompeu, elevando sua voz. – Você não vai se matar pra que eu sobreviva melhor, tá completamente fora de cogitação. Não vou deixar você fazer isso, nunca. Entendeu? Não volto pra casa sem você. Ou nós dois voltamos, ou não voltamos. Entendeu?

Carter suspirou e sorriu de canto.

— Entendi. Ou nós dois voltamos ou não voltamos.

— Ótimo. Agora... me ajuda a fazer um balanceamento? – Watney pediu.

Carter sentiu algo estranho. Como uma piscada. Como uma lâmpada se acendendo em seu coração. Algo súbito, mas que mudou tudo. Como um...

Zing.

Carter sentiu um zing. Ele tinha mesmo acabado de chamá-la para fazer algo com ele? Tinha acabado de lhe pedir ajuda? Tinha protestado fortemente contra a ideia de ela se matar? Tá, realmente, era bem diferente mas... era aquilo mesmo. Ele estava se abrindo a ela. Estava deixando-a participar de suas atividades novamente.

O quê? De que raio de livro de auto-ajuda para esposas falidas tinha tirado aquela merda?

Foi quando percebeu que já estava há algum tempo sem falar.

— Ah! Hã... – gaguejou, se enrolando nas palavras. Watney ergueu a sobrancelha, estranhando. – Claro! É... claro. Vamos fazer um balanceamento.

Watney concordou com a cabeça em um movimento minucioso – que Carter achou uma graça— e imediatamente começou a abrir os armários e gavetas e tirar de lá toda a comida que encontrava. Carter desceu do balcão e começou a ajudá-lo a ajeitar os suprimentos sobre este.

Enquanto os enfileirava e organização, ela o olhou e observou enquanto ele fazia o mesmo e se distraiu por um segundo. Tudo o que ele fazia parecia incrivelmente interessante para ela. Cara, ele era lindo. Absurdamente lindo. Seu perfil era lindo, seu maxilar era forte, seus lábios eram bem desenhados... Carter queria beijá-lo. Fazia tempo que não beijava. Adoraria quebrar esse jejum com Watney.

Naquele momento, Carter se parecia com Alex, o leão, de Madagascar, que vira todos os seus amigos transformados em bifes ao sentir fome.

Enquanto organizava, Watney percebeu que era observado. Ergueu uma sobrancelha ao ver o olhar devorativo de Carter.

— Tá... tudo bem, Jess? – perguntou, tentando não deixar transparecer que estava se divertindo com aquela situação.

— Quê? – ela perguntou com a voz ainda lenta, se retirando de seu transe. – Ah... sim. Tá... – Carter se engasgou. Watney não conseguiu conter a risada que estava presa lá.

— Tô vendo. – disse ainda rindo.

Carter deu-lhe um tapa no braço, com um sorriso divertido no rosto.

— Vai se ferrar! – riu. – Não é bonito rir da desgraça e sofrimento alheio.

— Mas convenhamos que fica difícil resistir levando em consideração que a desgraça e o sofrimento alheio vieram de todo aquele desejo sexual que a sofredora desgraçada em questão estava sentindo por mim.

Carter tentou se mostrar brava – tinha uma reputação a manter – mas não resistiu; seu corpo cuspiu uma risada que se transformou em uma gargalhada. Watney a acompanhou e o clima ficou tranquilo e ameno. Enquanto organizavam e faziam a contagem, puderam fazer piadas e gracinhas um para o outro como da forma que os levou a se apaixonarem. Já não havia mais tensão.

Era a primeira vez em alguns dias que riam de verdade. E era a primeira vez em mais de dois anos que riam um com o outro.


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Notas finais do capítulo

É isso, gracinhas, haha! Não esqueçam de comentar, mamain ama comentários. Até o próximo capítulo daqui a duas semanas! ♥



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