No terceiro dia, Eve já não aguentava mais o clima no chalé.

Quando viu Ely, ela temeu que não fosse aguentar ver os dois juntos o tempo todo, mas agora Shae e Ely estavam brigados e, de uma forma muito estranha, isso era ainda pior.

O casal não conversava mais, passavam o tempo todo se evitando e, para completar, também ignoravam Eve.

Sem aguentar mais, ela entrou no quarto de Shae, fechando a porta atrás de si com um barulho.

— O que está acontecendo aqui? Deveríamos usar esse dia para repassar as coisas, mas você e Ely decidiram agir como duas crianças. O que vocês conversaram?

— Eu já disse que não contei aquilo para ele. — Shae conseguiu responder, mesmo com a cara emburrada.

— Ótimo, agora me conte algo que eu ainda não sabia.

— Me deixe ficar um tempo sozinha. — A outra garota levantou e seguiu em direção à porta, mas Eve conseguiu se colocar no caminho a tempo.

Apesar de Shae ser mais alta, a ruiva a empurrou e a obrigou a escutar.

— Sei que está brava, Shae, sei que não quer conversar, mas amanhã é o dia e se não estivermos conversando uns com os outros isso não vai dar certo.

Finalmente a outra garota pareceu ouvir.

— Eu não estou brava, me desculpe pelo jeito que estou agindo com você, você não fez nada — Shae se desculpou.

— Então o aconteceu? Eu preciso saber, precisamos consertar isso.

— Eu não quero que Ely vá com a gente!

Eve não soube o que dizer depois daquilo, a chegada de Ely parecia ter sido algo tão bom para Shae, como ela não queria mais que ele as acompanhasse?

— Não me entenda mal, eu o amo. E é exatamente por isso que não quero que nos acompanhe, se o que você disse que vai acontecer realmente acontecer, como posso pedir que ele assista isso? Eu disse que era perigoso e que ele tinha que ficar protegido para cuidar da irmã, o que não é totalmente mentira, mas ele não me escuta.

— E por que não diz a verdade a ele?

 — Se eu contar... — Shae abaixou ainda mais o tom de voz. — Se eu contar que vou morrer, ele nunca vai me deixar ir.

— Ele não pode te impedir, Shae, eu já tentei e não funcionou.

— Ele que montou nosso plano, ele vai saber como impedir que cheguemos até o Tobias, se tem alguém que pode me impedir é ele.

Eve tentou ignorar qualquer pontada de ciúmes que pudesse aparecer ao ouvir essas palavras e tentou focar no que poderia ser feito. Ela não acreditava que Ely pudesse realmente impedi-las, mas ela não o conhecia de verdade.

— Eu vou dizer a ele que tudo bem ele nos acompanhar. — Shae se levantou.

— Você tem certeza?

— Lembra o que eu disse sobre deixar as pessoas escolherem o que querem fazer? Não posso ser hipócrita agora.

— Se você não contar o que vai acontecer você não o está deixando escolher, você está fazendo igual eu fiz. Deixe que ele pelo menos se prepare.

— Então eu realmente vou ser hipócrita.

[...]

Quando o dia finalmente chegou, Eve se sentia estranha. Os três saíram para dar uma volta na cidade enquanto o festival começava e, apesar da sensação mágica que parecia tomar conta de todos, seu coração estava pesado. Ela olhava para os lados, ela sentia seus pés pisando no chão, mas não parecia estar ali, parecia estar flutuando.

Demorou para Eve perceber que ela realmente estava.

As nuvens, o céu, ela se aproximou de tudo tão rápido, sentia quase como se pudesse toca-los. A cada segundo ela parecia subir mais e mais. Então, olhou para o lado e viu Cersey, imediatamente entendeu o que estava acontecendo.

— Shae está muito perto de seu destino — A deusa disse sem se preocupar com formalidades.

— Eu sei.

— Você não tentará impedi-la?

Eve apenas soltou uma risada sarcástica, não valia a pena responder.

— Muito bem, o seu momento também está chegando, Eve.

— Estou muito ansiosa por isso.

— Eu só estou tentando ajudar...

— Eu não preciso da sua falsa ajuda! — Ela finalmente voltou a encarar a deusa. — Quer me ajudar? Impeça Shae de morrer, impeça a loucura de me dominar. — Cersey tentou interrompe-la, mas Eve foi mais rápida. — Deixe me adivinhar: você não pode fazer isso. Eu sei! Quer me ajudar agora? — Eve olhou para baixo, estava há uma distância muito grande, mas ainda conseguia distinguir Shae, Ely e seu próprio corpo andando pela multidão. — Me faça voltar lá pra baixo, assim posso aproveitar os meus últimos momentos e os dela.

— Como você quiser.

Antes que Eve pudesse responder, seus olhos se fecharam e ela sentiu um frio no estômago.

— Eve? Eve? Você está me ouvindo? — A voz de Shae chegou aos seus ouvidos.

Ela abriu os olhos, ainda assustada, mas balançou a cabeça demonstrando que escutara a outra garota.

— Você não acha que esse tecido daria um ótimo vestido? Ely disse que vermelho fica melhor em mim do que verde, mas eu acho que ele está enganado.

— Você está certa — Eve respondeu sem prestar atenção no Shae havia dito.

Ela olhou ao redor: todas as ruas estavam abarrotadas de gente; havia barracas de todos os lados, como se a cidade tivesse virado uma enorme feira ao ar livre; bandeiras azuis com estrelas tremulavam a cada poucos metros; todos pareciam felizes, andando em pares ou em grupos, conversando como se aquele fosse o melhor dia de suas vidas e, no entanto, Eve sentia-se num lugar solitário e triste.

A animação das ruas não era nada se comparada à tristeza dentro dela. E quando pensava nisso também pensava em como Shae deveria estar se sentindo, sabendo que era seu último dia. A conhecia o suficiente para saber que estava ansiosa pelo que ia acontecer, mas não era tola para achar que a outra garota não se preocupasse também.

— O que aconteceu? — Ely se aproximou enquanto Shae olhava alguns vestidos.

— Só preocupada com hoje. — Eve balançou a cabeça como se não fosse nada, mas era obvio que era algo.

— Shae está tentando parecer animada, mas sei que tem algo errado. O que vocês estão escondendo de mim?

—  Nada, Ely, nada. Tenho certeza de que se fosse algo importante ela contaria, só estamos nervosas.

Eve se sentiu mentirosa, mas não podia colocar os planos de Shae em risco, não de novo.

[...]

O Sol já estava se pondo quando o trio, acompanhado de um grupo maior de trabalhadores, rumou para o castelo. Todos usavam uniformes oferecidos pela conhecida de Ely e ninguém reconheceu as duas garotas no meio da multidão de novos criados.

A função de Ely seria carregar bandejas com todo tipo de bebidas, enquanto Eve e Shae deveriam arrumar as mesas e vez ou outra oferecer aperitivos aos convidados.

Quando o salão começou a lotar, Eve pensou que a noite poderia não ser tão ruim quanto imaginava. Os convidados tinham um ar de importância que ela nunca tinha visto em lugar nenhum. As roupas mais caras que ela já tinha visto na vida não passavam de trapos se comparadas às daquelas pessoas.

Os cabelos das mulheres estavam presos em coques altos e seus saltos faziam barulho enquanto elas pareciam flutuar pelo salão.

Os homens usavam casacos grossos que lhe ofereciam toda a imponência que poderiam desejar.

Ninguém gargalhava, ninguém falava alto. Apenas se percebia sorrisos e sussurros. A música também não era alta, vinha de uma banda do outro lado do salão e Eve não conseguia vê-los, apenas ouvia a voz doce de uma mulher.

Ela organizou algumas fatias de bolo numa das mesas e se virou para olhar discretamente para Ely. Ele relanceou os olhos para ela e coçou levemente o olho com um dedo. Eve respondeu com um aceno de cabeça enquanto olhava na direção oposta.

Aquele era o sinal de que Ely já havia escondido, num local previamente escolhido, uma bolsa que continha tudo o que eles precisariam para dar continuidade ao plano, inclusive a espada de Shae.

Com o passar das horas, Eve se sentiu muito bem ali, no meio daquelas pessoas. Era estranho por que sua atenção não se voltava para nenhuma delas em particular, tão pouco tinha vontade de conhecer algum deles. Mas observar comportamentos tão diferentes do que se acostumara nos últimos meses lhe dava uma sensação estranha. Não podia dizer que era algo ruim.

Ela olhou para o teto, observando o quão alto era e o quão grande o salão deveria ser. De alguma forma sabia que Shae adoraria morar ali. Um lugar tão magnifico certamente combinaria com ela.

Ela só podia torcer para que, de alguma forma, sua visão estivesse errada e Shae pudesse passar o resto de sua vida no palácio. Mesmo que Eve não pudesse acompanha-la.