Nostalgia escrita por Fadaravena


Capítulo 1
Capítulo Único




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Do céu caía uma neve fina manchada de fuligem, o telhado das casas se tornava esbranquiçado e algumas pessoas saíam com pás para retirar o excesso das entradas. O centro se enfeitava de luzes. Placas nas fachadas das lojas convidavam as pessoas a comprarem presentes. Um pouco distante se podia ouvir uma melodia de natal.

 Mais um ano se passava sem terem feito nada, mas agora cada um se esforçaria para que sonhos se tornassem realidade, ou melhor, esta era a resolução de todo ano de sua mãe. O que não tirava um pouco de verdade, pelo menos para os três filhos mais velhos da família. Se fosse sincero, o que mais queria era arranjar uma namorada, não precisava entender de suas paixões por ídolos, só precisava ser mulher e alguém que o aceitasse. Isso porque aquela época era a mais cruel, ditando em neon por todo canto que casais eram os seres mais felizes. Choromatsu se decidira, usaria das suas últimas economias para procurar uma namorada, aonde quer que fosse. Assim, sem avisar ninguém, saiu antes da meia noite para as ruas movimentadas.

 Ao se ver perto do parque sentiu que suas mãos suavam frio, para onde quer que olhasse só via pares de rostos sorridentes bem juntinhos. Num dado momento pensou em voltar para casa, mas se tinha chegado tão longe devia seguir em frente, sempre de cabeça erguida. Sua primeira parada foi na confeitaria.

 A fachada da loja era simples, uma tenda de cores pastéis ao estilo francês e uma grande vitrine onde se viam vários tipos de doces, desde o mais famoso shortcake até um mais elaborado, dos que vendem em casamentos. Choromatsu engoliu em seco, os lábios tremendo, respirou fundo e entrou na loja. O sino da frente tocou alertando as balconistas, que recebiam o cliente com sorrisos. Ele quase teve vontade de voltar atrás novamente, mas se deu outro tapa mental. O local estava cheio de garotas e moças de todas as idades, colegiais, secretárias, empresárias, mães. Tentou imaginar como Todomatsu abordava um grupo e repetiu várias das falas para si mesmo antes de se aproximar de alguma delas.

 De início fingiu que estava escolhendo um bolo, mas era nítido como parecia tremer sem parar. Uma atendente de tranças e olhos finos se aproximou perguntando se já tinha escolhido, ele apenas balançou a cabeça em negativa sem desviar a atenção do mostruário no balcão. Talvez a confeitaria não tivesse sido um bom começo.

  - Podemos dividir um desses. - uma moça disse se dirigindo a um rapaz.

 Choromatsu desviou o olhar para eles. Era um casal comum, o jovem um pouco mais alto que ela de cabelos pretos e franja rente. Ela usava um casaco branco e um protetor de orelhas de algodão.

 Certa vez, lembrou-se, Matsuyo trouxera numa embalagem de isopor alguns doces de feijão assados. Estavam dispostos um ao lado do outro totalizando três. Um número justo. Os seis entreolharam-se e Osomatsu foi logo pegando um.

  - Podemos dividir este. - disse e o apresentou a Choromatsu.

 Então, partiu-o na metade, uma linha de vapor subia até suas narinas. Ao pegar a sua parte seus dedos roçaram. Osomatsu deu uma risada, sentia-se à vontade. Seguindo o exemplo, os outros irmãos foram dividindo o restante entre si.

 Suspirou, de repente a confeitaria já não o agradava mais.

 Andando pelas ruas não desanimou, tinha que tentar pelo menos mais uma vez. Resolveu tentar a alameda comercial. Passou por várias lojas de roupas. Os manequins estavam bem vestidos na vitrine, preparados para enfrentar um inverno rigoroso. Nem sequer chegava a entrar nas lojas, ou dar uma olhada nas placas de preço. Na verdade, foi passando direto por elas até encontrar as mais em conta, que mesmo assim continuavam sendo caras demais para o seu bolso. Entrou numa pequena de esquina.

 Uma moça franzina experimentava uma jaqueta no mostrador, era esbelta com seios robustos e traços bem delineados, usava um batom bem roxo e sombras mais escuras nos olhos, devia estar na casa dos vinte e cinco e parecia estar sozinha. Pensou em algum elogio, qualquer um.

  - Você fica bem de terno, Choro-chan. - sobressaltou-se e seu coração disparou. Tinha recebido esse elogio em um evento em que seus pais haviam sido convidados.

 Osomatsu chegara por trás e passara um braço pelo seu ombro, tinha um ar zombeteiro. Recordava que naquele dia foi puxado para pista de dança à força pelo irmão, mesmo dizendo que não sabia dançar e que estaria melhor na mesa cuidando de seus irmãozinhos. Ele o puxou pelo braço e o girou, depois entrelaçou seus dedos e começou a se mover com a música. Ele ia acompanhando para não perder o ritmo, afinal, não tinha muito que pudesse fazer a não ser aceitar o pedido de Osomatsu.

 A loja de roupas também não tinha muitos atrativos, quem sabe próximo da fonte, pensou. Chegando lá não foi surpresa nenhuma a quantidade de casais abraçados ou de mãos dadas, era revoltante. Sentou-se derrotado na beirada e ficou mirando a paisagem da cidade. Nesse ínterim, várias vozes e conversas chegavam ao seu ouvido. Todas elas eram processadas em sua mente e se transformavam em fragmentos de lembranças. Em todas as lembranças Osomatsu aparecia.

 A sua resolução para o ano era a de arranjar uma namorada, não havia época mais propícia que o natal, em que todos saiam às ruas na busca do melhor presente. Sendo o inexperiente que era, óbvio que não ia encontrar tão fácil. No mais tardar deveria voltar e comemorar esta data tão deprimente com os outros como ele. Choromatsu se decidiu por retornar ao lar.

 Caminhou cabisbaixo e quase tombou nos passantes, se viu entrando no parque momentos depois. Era a última chance, prometeu a si mesmo. Escaneou a área a procura de alguém, mas tudo o que viu foram casais e mais casais. Não acabava mais! Estava prestes a arrancar os cabelos. Ia dando um basta quando um deles chamou sua atenção. Estavam bem no canto, pareciam não querer olhos alheios em si, um guarda-chuva azul cobria ambos da neve que caía.

 Choromatsu foi se aproximando deles bem devagar e levou um susto ao reconhecer que se tratava de seus dois irmãos mais velhos. Estava prestes a acenar para eles quando parou congelado. Osomatsu deitava a cabeça confortavelmente no ombro de Karamatsu, o canto de seus lábios docemente arqueados. A neve bateu no rosto de Choromatsu sem que este percebesse, formando gotículas de água que escorriam por suas bochechas. Abaixou o guarda-chuva que levava consigo e deu meia volta. Terminou sentado num banco bem afastado na praça. Uma frondosa árvore dava abrigo da nevasca, colocou o guarda-chuva de canto e cobriu o rosto com a palma das mãos.

 O que acabara de presenciar ficou se repetindo na sua mente sempre com uma mudança, uma cena a mais. Em uma delas seus dois irmãos mais velhos se beijavam, um beijo intenso e demorado. Em outra Karamatsu acariciava a face de Osomatsu com as costas da mão, um brilho emitia-se de seu olhar. Afundou ainda mais no banco, comprimindo as pernas e espremendo-as uma contra a outra.

 A nevasca começava a piorar, as pessoas que restavam no parque foram diminuindo; dois a dois, braços enroscados, os pares deixavam o local. Ele permaneceu, ainda remoendo a descoberta. Sentiu seu estômago embrulhar. O que era aquilo? Tão errado, em tantos níveis, como podiam? Se tivesse coragem daria uma bronca nos dois pela depravação em ambiente público. Mas, não era isso, era? Apertou o joelho com força.

  - É o Choromatsu. Ei! Choro!

 Escutou alguém acenar. Levantou a cabeça e viu seus irmãos na sua frente.

  - Se ficar aqui vai se resfriar, querido irmão.

  - O que vocês dois estavam fazendo aqui? - sentiu sua própria voz áspera.

  - O Karamatsu queria ir ao templo fazer as preces, e eu falei para ele, mas isso se faz no ano novo. Daí ficamos conversando. E você, o que faz por aqui?

 Choromatsu olhou bem fundo nos seus olhos, naquele negro azeviche, onde podia se perder por horas. Ele podia se perder por horas, não, ele queria.

  - É melhor já voltarmos para casa, senão não poderemos trocar os presentes, e os outros devem estar nos esperando. - resolveu dizer e foi se levantando para ir.

  - Choromatsu está certo, vamos querido, a santa celebração de Deus nos aguarda com seu canto divino.

  - Claro, claro. - disse Osomatsu com uma risada.

 Choromatsu ia na frente só escutando a conversa animada da dupla. Um sentimento de nostalgia inundava-o. A neve parecia encher sua visão de um branco turvo, seu braço se fundia ao cabo do guarda-chuva, uma mesma entidade caminhando por uma rua repleta de pontos rápidos indo e vindo, gargalhadas entorpeciam seu cérebro, e no instante seguinte sentiu o macio do asfalto frio carregando-o para longe.

 Era numa noite de natal como aquela, os seis fugiam de um furioso vigarista que se achava francês. Enquanto corriam o mais depressa que conseguiam acabaram se dispersando e cada um foi para um lado. Como na época eram quase cópias um do outro puderam despistar o furioso vigarista. Osomatsu, como líder, propôs que comemorassem na doceria. Levando a mesada, os seis compraram balas de cereja em grande quantidade para todos. No caminho iam distraídos quando foram pegos de surpresa por um cão enorme; assustado, Choromatsu escorregou numa parte congelada do chão e deixou o pacote cair, este logo foi feito em pedaços pelo animal. Todos lamentaram, mas estavam a salvo.

 No caminho de volta, Choromatsu ia tropeçando, quase mancava, seu joelho doía do tombo, Osomatsu parou e levantou o irmão pelo braço, sustentando-o caminharam juntos todo o percurso. A neve enfeitava as suas cabeças, e quando chegaram em casa os dois pegaram um resfriado. Mas, no fim do dia o episódio rendeu boas risadas.

 

 Choromatsu acordou com um pano úmido sobre a testa e várias cobertas sobrepostas e enroladas em seu corpo.

 - Bem que eu avisei, mas não se preocupe, pois desta vez consegui várias peças indumentárias para protegê-lo do-- ouch.

  - Ficamos todos preocupados, mano Choromatsu.

  - O Karamatsu aqui foi atrás de todas as cobertas da casa, a mãe ajudou ele e agora está preparando uma sopa. Assim você mata seu irmão mais velho de susto.

  - Sinto muito. - tentou dizer, a voz custava-lhe a sair.

 Escutou o barulho da porta corrediça se abrindo e passos delicados vindo em sua direção, sentiu se aproximar um aroma gostoso que fez sua barriga roncar. Alguém levantava sua cabeça e aproximava uma colher de sua boca.

  - Aqui, Choro, abra bem a boca, olha que eu não faria isso se fosse em outra ocasião. - era a voz de Osomatsu, bem perto de si.

 Sentia que voltava aos dez anos de idade, o irmão lhe dando um pedaço de seu doce de feijão, o convidando para dançar ou o ajudando a voltar para casa. Abriu com esforço a boca e sorveu um pouco da sopa, ela esquentava todo o seu corpo, da cabeça úmida aos pés cobertos. Do peito ao estômago.

  - Afinal, o que foi fazer? - disse Ichimatsu no canto da sala.

 Achou a pergunta engraçada. Agora que parava para pensar tinha sido uma ideia tola. Arranjar uma namorada. Talvez tudo não passasse de uma maneira desesperada de consolar seu coração do frio que fazia lá fora.


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