Me Devolva Meu (a)Mar escrita por Pan


Capítulo 1
Sereias e tritões


Notas iniciais do capítulo

eu sei que soa ridículo, mas leiam com fones.

https://www.youtube.com/watch?v=ZR_-8kxcuaA&list=PLSUqcA2_jb-G28l2HG27uv1LTMkWsZva9&index=1



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Eu lembro quando o vi pela primeira vez naquelas férias. Minha mãe tinha pedido para ir comprar alguma coisa no mercado. Ela só me queria fora de casa para discutir com meu pai. Me mandava para a casa da minha tia quando isso acontecia. Eu tenho pedalado até a casa dela tão frequentemente agora. De qualquer jeito, eu sempre demorava mais, muito mais, que o necessário para chegar lá. Havia alguém que eu gostava de olhar durante o caminho. Não importava o que eu dissesse, o que sentisse ou o que fizesse, ele me esperava lá.

Não tenho bons amigos, mas ótimos fones de ouvido. Eu até tentei manter uns três amigos, mas sair nos fins de semana? Meus pais não me deixam ir a outro lugar que não seja a Igreja aos domingos. É quase um milagre que eles continuem fazendo essa viagem aos finais de semana, deixar Sampa pela casa da praia me faz bem. Sei que meu pai não aprovaria isso, imaginei a reação dele ao saber que o único filho está apaixonado por alguém do mesmo gênero. Ele me colocaria em um hospício, me deserdaria, até a escola militar seria uma opção. Não seria uma surpresa, não vindo dele.

Lá estava ele, meio agitado naquele dia. Havia algo de tão certo naquilo, não havia como simplesmente me virar e continuar vagando pela cidade, sem rumo. Prendi a bicicleta no poste e me sentei na areia molhada, perto dele. Não havia quem não o olhasse, naquela beleza divina. Eu fiquei algum tempo lá, só olhando. Me lembrei daquela antiga história que minha tia me contava quando eu era menor.

Minha tia dizia que muito tempo atrás, muito antes da humanidade existir, o mar deveria decidir entre a lua e o sol para casar. Ele, ao invés de seguir as normas, decidiu passar todo o seu tempo com as sereias e os tritões. O sol, com raiva, secou muitas partes do mar, criando a terra onde as sereias perderam suas caldas e viraram humanos. Os tritões congelaram quando as lágrimas da lua caíram no mar, dando origem aos icebergs. Sem seus amigos, o mar se nega a esquentar com o sol e a esfriar com a lua, mantendo-se contrário a ambos. Talvez fosse por isso que eu o amasse tanto, ele não fazia o que queriam, agia como achava ser o certo.

 Foi quando a música terminou que eu percebi que tinha que ir. Passaria na casa da minha tia e na volta, comprava o que quer que minha mãe tivesse pedido. Segui pela estrada na beira da praia, então ele pareceu correr comigo. Não mudava. Aquele azul, as pequenas ondas que se tornavam espumas e dissolviam-se na areia. O pneu encostou na calçada e eu fui jogado alguns metros na areia. Ralhei a parte de trás da coxa e o antebraço direito.

Eu sentei onde tinha caído. Talvez fosse assim mesmo, se machucar por sonhar demais. Eu nunca poderia ficar com a imensidão azul a minha frente. Eu era estúpido demais por acreditar naquilo. A areia fazia a parte da minha perna machucada arder. Eu estava prestes a pular aquela música quando ele apareceu. 

— Você está bem? – era o menino loiro que trabalhava no caixa do mercado. Ele me estendeu o braço e me ajudou a levantar.

— Sou meio distraído, só isso. Obrigado – eu sacudi minhas roupas para tirar a sujeira.

— Está doendo? Tem um pronto socorro não muito longe, posso te levar até lá.

— Não, vou passar na casa da minha tia, também não é longe. Obrigada pela ajuda de qualquer jeito – levantei a bike e arrumei o fone no ouvido.

— Sei que parece meio absurdo, mas você não quer entrar no mar? Vai ajudar a limpar e cicatrizar. Eu fico de olho nas suas coisas se quiser. Sou Enzo – ele estendeu a mão e eu apertei. Tinha lido o nome milhões de vezes no crachá.

— Gaspar. Você trabalha no mercado, não?

— Então é daí que eu te conheço. É difícil achar um rosto bonito nessa cidade, esquecer mais ainda. Me desculpa, não era minha intenção te ofender, sei que nem todo mundo recebe bem cantadas principalmente se for alguém do mesmo sexo e....

— Como você acha que eu lembro seu nome? – nessa hora, a pele pálida dele ficou vermelha. Os olhos azuis se fecharam com força. Por uma fração de segundos podia jurar que ele tinha um pedaço do mar no rosto. Eram olhos azuis escuros, de alguma forma pálidos.

— Você vai entrar no mar ou não? – seu cabelo começou a voar com a brisa. Pareciam pequenos raios de sol dançando na tempestade antes da chuva.

— Vai entrar comigo? A cidade é pacifica, não acho que roubariam minhas coisas.

Naquela tarde, tudo ardeu. Enzo era um rapaz legal. Nós conversamos muito naquele dia. Ele era um pouco mais novo, porém era muito mais livre. Eu lhe contei sobre minha pequena paixão, foi o primeiro a ouvir sobre isso. Era maravilhoso conversar com ele, saber que não era o único estranho no mundo.

— Eu tenho que ir trabalhar – estávamos nos secando no sol.

— Eu adoraria te encontrar outro dia. A gente pode sair, o que você acha? – eu não tinha noção de nada mesmo, o que diria aos meus pais?

— Tipo um encontro? – ele me olhou com aqueles olhinhos de filhote.

— Se você quiser. Que horas você sai do trabalho? Posso te buscar lá.

— Eu saio as dezenove. Fico te esperando então – ele vestiu a camisa, uma grande pena. Me deu um beijo na bochecha e saiu correndo.

Eu subi na bicicleta e pedalei como louco até a casa da minha tia. Se meus pais se divorciassem, eu poderia morar com ela. Seria maravilhoso, se não fosse trágico. Assim que eles soubessem de Enzo, eu seria deserdado de qualquer jeito.

— Eu sei que você sentiria muito se o divórcio acontecesse, mas talvez seja o melhor para você e minha irmã. Quanto a Enzo, diga que quero conhece-lo melhor, me parece ser uma ótima pessoa – ela me serviu uma xicara de chá. Ela não gostava de café, mesmo sendo dona de uma cafeteria no centro.

— Tia, eu quero saber se você deixa eu vir morar aqui com você quando meus pais se separarem. Até lá eu completo dezenove e eu adoraria viver com a senhora e eu gostaria desse novo ar fresco – eu tomei um gole do chá antes que falasse besteira.

— Eu não sabia que você chamava o Enzo de ar fresco. Pode sim, meu querido. Eu e você reformamos aquele quarto de bagunça e você pode trabalhar comigo no café. Quanto a faculdade, eu não posso bancar. Mas aposto que com esse crânio que você tem, você arruma alguma solução – ela me deu um abraço. Ela sempre fora a pessoa mais carinhosa desse universo. Já havia remendado meus machucados e os enfaixados muitas vezes, até mesmo no meu coração ela tinha dado um jeito.

Aquela seria a primeira vez que as coisas dariam certo para mim. Teria algo pelo que continuar lutando. Minha liberdade começaria quando meus pais se divorciassem e minha vida seguiria com aquele pequeno tritão, que tinha a pele tão fria quanto as lágrimas da lua, os cachos tão quentes quanto a própria vingança do sol e os olhos escondendo aquele pequeno pedaço do mar roubado.


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Notas finais do capítulo

Hey! Que milagre eu estar aqui tão cedo. Eu tive essa ideia enquanto escutava a playlist do Life Is Strange, que eu recomendo o jogo e a soundtrack, então decidi escrever. Eu queria dedicar a minha mamasita que é eternamente apaixonado pelo mar (feliz aniversário mamãe) e ao pirraça do Rafael, que não me deixa trabalhar em paz.
Bom, eu te vejo na próxima, não morra até lá.



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