A rotina na Enterprise estava longe de ser o que os telespectadores imaginam, você sabe, uma aventura duas vezes por semana: muita ciência, discussão e descoberta. Não era bem assim. Obviamente existiam esses momentos (esses de muita ciência, discussão, descoberta e as camisas amarelas do capitão sendo rasgadas constantemente), mas geralmente, o dia a dia mesmo se resumia em umas rodas de fofoca acaloradas e o franguinho sem gosto da máquina do refeitório da nave. 

Jim Kirk, hiperativo como era, apesar de apreciar todas as partidas de xadrez que dividia com o seu primeiro oficial (e amante) Spock, já não aguentava mais repetir essa rotina. Levanta, toma banho, escova os dentes, reporta à ponte, cumpre o expediente, joga conversa fora com Sulu, ouve as reclamações do Bones, recebe os olhares de reprovação da tenente Uhura e, como sempre, joga xadrez com o Spock (e etc, mas ele não sabe se você vai querer saber dos detalhes sórdidos).

Até o dia em que Jim Kirk conseguiu botar as mãos em um DVD (imagine a velharia) de uma série antiga dos anos 90, basicamente séculos atrás, de nome ‘Arquivo x’. Se havia uma pessoa nesse lado da galáxia que gostava de quinquilharia/tralha, esse era James Tiberius Kirk, muito obrigado. Como resultado, tão feliz quanto o capitão mais novo a já se sentar na cadeira de capitão da USS Enterprise seria, Jim Kirk voltou da licença de passeio à sua tão amada nave com a 'antiguidade' debaixo do braço. E como um oficial respeitável da federação, Jim Kirk automaticamente decidiu que haveria uma ‘sessão de cinema’; anunciando em seguida pelos comunicadores da nave, quase um revolucionário.

Dr. Mccoy logo soltou uma risada debochada, pois claramente tinha lá sua bagagem de referências no que tangia cultura pop terrestre. Tenente Uhura de prontidão mostrou interesse, sem poder negar seu gosto pela ficção cientifica das antigas. Chekov pulou em seu assento, se pondo a um monólogo que descrevia como havia sido um russo a ter escrito o primeiro rascunho da história do seriado. E Spock, ah, Spock estava sem entender nada. (Pasme). O que, para um cientista que se preze, era quase uma afronta. Logo ele, que se considerava um excelente entendedor da cultura humana, como seria possível nunca ter ouvido nem falar desse tal “Arquivo x”? Era como uma 'cosquinha' na orelha pontuda.

É claro que o discurso enaltecedor de Jim Kirk sobre o material teria provocado 90% dessa inquietação, que embora não visível na expressão facial do Vulcano, podia ser sentida a quilômetros de distância em forma de energia; quase uma aura cinza fluindo  de Spock.

Ora, mas não vale a pena se estender nos “e se’s’’ da vida, certo? Logo, a maioria da tripulação, salvo aqueles que precisavam trabalhar seus turnos, (os pobre coitados, nem á um happy hour puderam ir), estavam empoleirados no auditório da Enterprise, um burburinho correndo solto através das paredes da nave. O Capitão logo apareceu a frente de todos, quase saltitando de animação.

— Boa noite a todos. Imagino que estejam no mínimo confusos com meu chamado pela presença dos senhores. Bem, fico extremamente feliz em apresenta-lhes um clássico da nossa história. Peço desde já á alguns que não fiquem ofendidos, pois somos um povo deveras criativo, e ás vezes, a imaginação não é sempre lisonjeira.

Com isso, as cartas foram postas na mesa, e a projeção se acendeu na sala, ganhando a atenção e curiosidade dos ali presentes. Depois de alguns episódios, a tripulação já se divertia com a imagem caricata que os seres humanos tinham de extraterrestres. Não só eles, mas as criaturas mitológicas e até mesmo entidades (que por vezes a Enterprise e sua tripulação tinham o privilégio ou não de encontrar pelo universo) pintavam o quadro daquele fragmento do entretenimento secular. Só tinha uma coisa que Jim Kirk achava mais genial que os aliens cinzentos cabeçudos na tela, e isso era a sobrancelha arqueada de Spock quase sumindo franja adentro. O Vulcano parecia no mínimo inquieto.

Jim Kirk então se aproximou do comandante. – O que há, Spock?

O Vulcano virou a cabeça milimetricamente, com uma expressão imparcial.

— Nada, Capitão, eu suponho que me pego minimamente intrigado com a imagem que os humanos possuíam de seres intergalácticos.

Jim olhou para tela e então voltou a fitar o primeiro oficial, soltando uma risada fraca. – Ué, eu acho que parece muito com você. Só faltou pensarem nas orelhas.

A sobrancelha voltou a subir bruscamente, com certeza sem que o Vulcano pudesse pará-la; uma reação quase automática. “A audácia”, devia estar pensando o comandante.

Jim Kirk achava a reação hilária.

Dr. Mccoy então se juntou a eles, limpando as lágrimas dos olhos, remanescentes das risadas que estava dando ás custas de seu colega de trabalho preferido, você sabe, o duende de orelhas pontudas.

— Posso te contar um segredo, Spock? Os aliens desse seriado também tinham sangue verde.

Spock espalmou as mãos juntas atrás das costas, mais recomposto.

— Eu não posso discordar  que humanos realmente tem a imaginação aflorada, afinal, convivo com a espécie todos os dias. Não há necessidade em se esforçar dessa forma, dr. Mccoy.

Em contrapartida, Bones, como era apelidado, percebeu que a diversão acabara e logo se despediu da dupla, a fim de evitar discussões malcriadas com aquele duende de orelha pontuda e sangue verde, onde já se viu.

Jim Kirk, que até ali apenas observava, se postou ao lado do Vulcano, entrelaçando seus dedos nos do outro num gesto claro de afeto.  Esperava que ele não estivesse tão chateado consigo, franziu a testa ao espiar de canto de olho o perfil duro como mármore de Spock; no entanto, a preocupação logo se dissipou quando sentiu os dedos alheios se apertarem junto aos seus.  

— Eu acredito que você teria sido um ótimo protagonista para essa peça em particular, Jim. – comentou Spock, com um tom disfarçado de satisfação.

Jim Kirk não conseguiu segurar a risada alta que irrompeu pelos lábios sorridentes. Não podia negar que teria sido um homem fervoroso em sua curiosidade e paixão, além de fiel à sua crença em UFOS (como eram chamados) se tivesse vivido naquela época, tal qual o personagem principal da trama.  

Mas também, paciência, ele seria um ótimo protagonista em qualquer seriado.

[abertura de arquivo x toca ao fundo]