Sob controle (Lucy, Livro 1) escrita por Natália Alonso


Capítulo 1
Capítulo 1 - Cheiros peculiares


Notas iniciais do capítulo

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“É mais fácil lidar com uma má consciência do que com uma má reputação.” - Friedrich Nietzsche

 

 

 

Jasenovac, Croácia — 1943

 

Eu caminho na neve, ouvindo o farfalhar do gelo em meus pés. Não há mais nada com que me importar, nem sei mais por que estou andando, ou para onde estou indo. Apenas subo a montanha, sentindo o gelo em meus pés. Na verdade, sinto apenas a textura macia e, por vezes, granulosa. As árvores estão secas, a maioria delas são apenas galhos marrons desenhando no branco que chega a gritar nos olhos que preciso manter parcialmente fechados. O vento sibila e uso minhas mãos para tentar inutilmente aquecer minhas orelhas rasgadas. 

O linho de minha camisa é bem fino e branco. Minhas calças curtas, deixam minhas canelas de fora, às vezes, um graveto passa e me arranha de leve. Minha pele já está tão pálida da fome que poderia ser confundida com a neve, sou branca, mas não costumo ser tanto assim. O vento gelado assobia e escuto ao longe um som... ah, sim! Era para o rio que eu estava indo.

Estou um pouco cansada, mas a dor de meus ferimentos já passou. Sempre passa, é uma questão de tempo. Sempre cicatriza, as solas dos pés já estão amortizadas, vejo que um dos dedos está e roxeado e pouco inchado, levemente torto, deve ter quebrado na corrida e eu não percebi pelo frio, vai doer depois. Desço uma pequena curva e entre as pedras, me ajoelho na beirada do rio. O som das águas é muito confortável e agradável, estou com sede. Estúpida! Se era sede, você poderia ter bebido da própria neve em volta! Na verdade, não deveria. Não é adequado, eu saberia disso somente mais tarde.

Não era só isso, eu sei que não era. Ah sim, lembranças dos gritos, explosão e... o som da água é muito agradável, calmante. Assim que me abaixo para beber água, vejo que algo caiu. É a bala que acabara de escapar de meu ombro. Sempre que as balas caem eu não sinto nada, é menos que um arrepio. Fico pensando, quem foi mesmo que atirou em mim?

Puxando pela memória acabo encontrando tantos vultos, muita gente. Grito, explosão, facada. Gasolina, tiro, corro, esquivo, fogo e cheiro de queimado. As lembranças me atordoam em uma sequência de imagens desconexas. Todas a imagens e sons se silenciam quando escuto um graveto se quebrar, alguma coisa se aproxima.

 

 

New Orleans, 2016

 

A pele úmida e muito branca reflete na bancada. Seu pulso é delicado e sua mão pequena, com dedos finos e longos. As unhas arredondadas e pintadas de rosa claro quase tocam a bancada fria de metal. Um anel prata com pequenos brilhantes é colocado em seu dedo médio de forma devagar por uma mão masculina que apoia a mão feminina novamente na bancada. Ele vai para a outra bancada e pega um lenço branco de uma pilha, volta em poucos passos à frente e dobra o tecido de linho quatro vezes antes de começar a enxugar a umidade da pele e de seus dedos.

Então ele observa os dedos dela e percebe uma pequena sujeira presa entre a pele e a unha. Para, um pouco irritado com isso, e coloca o lenço embaixo dos dedos, forrando a bancada. Ele se afasta um pouco e retorna com uma pequena espátula, raspa a parte inferior de suas unhas tirando pequenas porções de sangue coagulado. O vermelho se destaca no linho branco. Devagar, ele puxa o tecido e o usa para embrulhar a sujeira. Vira-se e joga o lenço em uma lixeira próxima. Então pega um novo lenço e volta a enxugar a sua pele.

O local é bem iluminado. É possível ouvir ao longe alguma música, ela toca no vizinho talvez. Ele está calmo e tira a umidade sem esfregar a pele da mão, no pulso e no braço. Ele não quer causar qualquer marca em sua pele, vai tocando levemente até chegar em seu cotovelo. O corte abrupto e limpo de seu cotovelo separa o membro do resto de seu corpo e exibe a camada de pele, os músculos e as pontas dos ossos ulna e rádio. Ele enxuga o corte também verificando que não haja qualquer sangramento. Está pronto. Ele se vira novamente e joga fora o segundo lenço.

Satisfeito por sua obra, carrega o braço com a mão adornada de anel para outra bancada. Lá o embrulho plástico branco leitoso o aguarda. Ele posiciona o braço colocando sobre as pernas, o tronco, a coxa e o outro braço. Alinha as duas mãos juntas e começa a fechar o pacote, tal como um embrulho de presente, começando pelas laterais. O barbante que passa por baixo é puxado, então ele amarra e faz um laço. Esse ritual é interrompido pelo som do celular. Ele apenas vira o rosto e olha para a tela do aparelho encostado na parede, lê a palavra “Lembrete” que aparece na tela piscante.

Olha novamente para o pacote, puxa o laço e tira completamente o barbante. Pensando melhor, deseja que seja mais fácil que seu conteúdo seja visto, seja encontrado.

 

 

Em outro ponto de New Orleans

 

— Escarpment Pinot Noir, uvas tipo Martinborough Kupe Single Vineyard, safra de 2013, Nova Zelândia. — digo, puxando na memória mais de 500 anos de vinhos que conheci. — Acho que é o meu favorito. Bom, você perguntou dos vinhos dessa década. — Finalizo com um discreto sorriso lateral.

O salão está cheio de outras pessoas abastadas de dinheiro. O leilão já vai começar a ofertar as obras de arte e antiguidades encontradas e doadas recentemente por um príncipe húngaro. O piso liso de cerâmica faz ressoar os passos dos saltos pontudos as damas elegantes. A taça em minha mão está vazia faz algum tempo.

— Tem certeza que nenhum vinho americano seria merecedor, algum dia, de estar em seu TOP 10, Miryan? —­­­ questiona-me Cate Shipperd, repórter do NY Times. Ela já é minha conhecida, me entrevistou diversas vezes, nem sempre da melhor forma.

— No momento não, Cate. Infelizmente, para os produtores americanos, meu paladar pede por menor acidez. O solo americano ainda tem uma acidez que prejudica na fermentação inicial, mas estou sendo redundante agora, não acha?

— Mas agora me diga uma coisa. Qual o segredo para parecer tão jovem? Um corpo de 35 que aparenta muito menos…? Revele para as mulheres! Seu segredo é o vinho? Você dorme nele?

Rio, um pouco constrangida. Começam as perguntas sobre corpo, vestidos, idade, sempre desnecessário. Os repórteres têm a mania de querer saber mais do que devem.

— Eu não... eu não tenho segredo algum, Cate. Meus hábitos alimentares não são os melhores, abuso um pouco das gorduras, mas confesso que tenho feito pilates para manter a forma.

— E pretende fazer alguma viajem a mais para nos contar depois? Argentina talvez, a época de neve está começando agora e lá tem muitos dos vinhos dos quais você elogia tanto.

— Não, eu não sou grande apreciadora da neve, Cate.

— Será que eu posso roubar a atenção da enóloga mais importante da América? Miryan? — um homem, fingindo elegância em seu terno cinza escuro, interrompe a entrevista. Ele toca em meu braço enquanto fala, detesto quando as pessoas chegam me tocando sem perguntar.

Eu sorrio. Cate percebe meu desconforto e prefere finalizar.

— Ah sim, claro, já terminamos aqui. Fique com Miryan e sua língua peçonhenta. Qualquer dia a empresa Peter Michael poderá ficar ressentida com você, se é que já não está. — A repórter lembra de quando eu fiz a crítica à série de Peter Michael, eles não gostaram muito do parecer — Mas enfim, não vou mais lhe atormentar. Muito obrigada pela entrevista, como sempre ácida e divertida. – Ela diz finalizando.

— Obrigada você pela presença, não se esqueça de participar do leilão. – Falo lembrando a mim mesma do motivo pelo qual eu vim.

— Vou assistir, mas não acho que eu vá participar. – fala ela se despedindo.

Viro-me para o homem de terno cinza grafite, lenço azul marinho e uma Momblanc no bolso da frente. É um terno muito bem cortado, algo semelhante com Yves Saint Laurent, mas não acho que pessoas com menos de 60 anos usem o Laurent. Ele se tornou obsoleto para esta era, e este homem deve ter 35 anos ou menos. Seu perfume amadeirado, com um fundo doce e enjoativo chega ao meu nariz somente agora que me viro. Flagro ele me olhando abaixo de minha cintura com seus olhos castanho mel. Seu rosto tem algo de delicado e, ao mesmo tempo, furtivo como um predador.

Meu vestido é verde esmeralda, seda fosca, bastante justo ao corpo. A fenda nas costas chama a atenção, mais do que o par de brincos de safira, discretos. O pente de marfim, prende os longos cabelos pretos em um coque alto. Adoro verde, combina com meus olhos.

— Desculpe, nos conhecemos? – falo para o atrevido.

— Nos conhecemos agora. Eu gostaria muito que autografasse o livro para mim. Sou um grande fã de seu trabalho, e de sua “língua peçonhenta”.

— Minha nossa, esse apelido nunca será esquecido! – Sorrio de lado, um pouco desconcertada com a situação.

Ele me entrega o livro de capa dura, “Arte e prazer, do solo à taça”, Miryan Winshester, 2014, editora Times. O livro está marcado, foi devidamente lido e relido. A primeira página está um pouco manchada na beirada superior. Viro-a e recebo a caneta das mãos estranho perfumado.

— Desculpe, você não me disse o seu nome.

— James Franklin Clinton, do mesmo jeito que está escrito no prédio. — diz ele, como se tal informação fosse realmente importante. Não vou trata-lo diferente por ser o dono do prédio. Inclusive, eu sei como soletra, mas sinceramente não ligo. Deus, que perfume enjoativo...

“James Frannnnklin Clinton, espero que tenha desfrutado dessa obra e que lhe traga ainda melhores companhias. Ass: M. Winshester.” Aqui está – Fecho o livro, causando um rápido vento entre as folhas. Coloco a caneta sobre a capa e estendo-lhe o livro. Assim que faço tal movimento ouço o chamado para o início do leilão.

— Agradeço pela leitura e admiração. Agora se me dá licença, eu preciso ir.

— Espera. — Ele diz segurando minha mão junto ao livro. — Eu gostaria de...

— Desculpe, mas eu preciso ir ao leilão. Com licença.

 

 

*********

 

Duas horas depois do início, finalmente chegam o conjunto de taças vikings, maravilhosas. O item leiloado é composto pelo jarro e quatro taças em bronze. Uma delas apresenta uma leve mancha azulada no pé, e outra está levemente amassada.

— Conjunto completo encontrado no fundo do Oceano Pacífico. Tais peças não são para degustação, meus caros, a não ser que não se importem com a radiação ou concentração de chumbo na taça. – O mestre de cerimônias arranca risos da plateia. — O lance inicial é de US$80.000  agora!

— US$85.000! — Um homem fala ao fundo.

— US$90.000! — responde outro.

— US$150.000. — falo enquanto alguns olham.

— Okaaaaay...  — O mestre de cerimônias parece surpreso por eu finalmente me manifestar —, parece que nossa Miryan já encontrou o que procurava, não é? – A plateia ri. — 150 mil. Mais alguém?

— 200 mil! — Clinton fala ao fundo do salão.

— 250! — respondo rapidamente.

— 350 mil. – Clinton novamente. Parece querer me irritar.

Silêncio no salão. Todos olham para mim e para o idiota na última fileira em seu terno cinza. Eu abaixo a placa.

— Dou-lhe uma! Dou-lhe duas! E três! Vendido para James Franklin Clinton! — Encerra o mestre de cerimônias. — O próximo item é uma belíssima escultura...

Levanto-me, deixando a placa na cadeira. Pego minha bolsa e saio. Eu vim pelo conjunto, apenas isso, e aquele idiota atrapalhou. Não tem mais nada que me interesse nessa festa enfadonha, então vou embora para a fresca noite de New Orleans.

Peço ao táxi que me deixe ainda no centro. Sempre vou a pé para casa dali. Gosto dessa caminhada, mesmo não sendo seguro. O semáforo indica que devo esperar, eu fico na calçada, pensando no que comi, no que não comi. A brisa fresca faz minha perna se arrepiar com o ar gelado que entrou pela fenda da saia. Eu olho para a rua lateral e não vejo ninguém, apenas um mendigo mais a minha frente.

Mesmo com tumultuados sons abafados, eu me sinto em paz, e sozinha. Na verdade, a muito tempo estou sozinha nesse mar de gente que não me interessa e não me causa qualquer empatia. O semáforo finalmente me dá um sinal verde, mesmo sem nenhum carro, eu paro. E agora, sem nenhum carro, eu atravesso a rua. Faltam dez quarteirões para minha casa.

Um mendigo resmunga num canto e sua voz é abafada pelos gritos bêbados ao fundo das ruas mal iluminadas. Não me importo com isso, nunca me importei. O som dos bares é sempre muito bom, alguns trompetes fazem uma harmoniosa melodia em algum bar da região.

A noite é agradável com tantas luzes, hora uma luz amarelada dos postes inclinados, hora avermelhada e azuis dos letreiros. Antigamente não tinha luz alguma a essas horas, precisávamos de tochas, nunca vou me acostumar a luz elétrica. No terceiro quarteirão, faltando mais oito para minha casa, um cheiro me chega à face, o odor ocre me é familiar. Eu estranho e ao mesmo tempo que curiosa.

Viro o rosto para a direita e vejo o beco escuro. É de lá que vem o cheiro. Me aproximo pelo chão molhado pela chuva da tarde. Ainda que caminhando devagar, minha sandália espirra a água acumulada nas poças para os lados.

O som dos trompetes silencia e só o respingar da água é perceptível. Me aproximo fitando para o fundo do beco, um emaranhado plástico, como uma tenda, dele que exala o cheiro que faz tempo que eu não sentia, está forte. Me abaixo curvada, estendo a mão e levanto a ponta do plástico branco leitoso e vejo sua mão, seu rosto alvo sem vida. Vejo seus olhos brancos como leite olhando diretamente para mim. Eu olho para a mulher morta e não tenho nenhuma reação em minha feição. Ela também não, talvez ela não seja a única morta no beco.

 

 

Jasenovac – 1943

 

Eu busco o que provoca o som de neve sendo esmagada. Elevo meus olhos para frente, à direita, mais à direita... bem ao meu lado o rosnado de um lobo. Ele é cinza claro, com uma capa escura nas costas, quase negra, seus dentes ferozes me alertam que estou em seu território.

Olho diretamente para ele por um instante, e depois desvio olhar para baixo.

— Eu sei que eu não deveria estar aqui, não se preocupe. Eu já irei embora, eu só quero a água agora.

O rosnado para. Ele olha diretamente a mim, de cima a baixo, com seus olhos castanhos mel e lambe os lábios. Está com fome? Eu não estou, não mais. Ele se vira de lado, ainda me olhando à espreita, e começa a sugar a água do riacho. Lembro que Mirian me disse uma vez, que os lobos não bebem água como os cachorros comuns, eles sugam. “Se vir um cachorro sugando a água, você saberá que ele é um mestiço. É selvagem demais para ser domesticado, é imprevisível”, ela dizia. Nunca soube se era realmente verdade ou apenas um mito.

Ele não vai me atacar, eu não também não. Eu me viro para o riacho, entro na água congelante até o meio das coxas, minhas pernas adormecem e agradecem estarem sendo limpas, o pé com o dedo quebrado não, ele protesta. Vou ter que colocar isso no lugar, penso, mas não agora. Levo minhas mãos ensanguentadas para a água, rapidamente formam filetes turvos avermelhados que se espalham próximo a margem, frente ao lobo. Ele percebe e para de sugar água. Se afasta, recusando o sangue, e olha para mim lateralmente. Minhas mãos em concha acolhem o líquido turvo róseo, e em silêncio, trago até meus lábios e o sugo.


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Notas finais do capítulo

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