O menino Picori escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Capítulo único




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Ninguém o maltratava de verdade, ao menos não fisicamente. Mas os olhares que lhe lançavam feriam como uma espada. Ainda tão criança, ele conhecia o desgosto da rejeição. Lágrimas desceram por suas faces pálidas. O menino virou as costas para aquela cidade maldita e fugiu.

Ele fugiu até chegar à floresta e se escondeu entre as árvores. Encolheu-se bem pequenininho, chorando da forma mais silenciosa que podia. Os soluços estremeciam seus ombros. As vestes roxas cobriam seu corpo como uma proteção mágica que sinalizava que aquela não era uma criança normal. Por isso, Vaati não entendeu quando o menino louro cutucou seu braço.

Ergueu o rosto manchado de dor para aquele estranho que piscava os meigos olhos azuis. O menino ajoelhou-se a seu lado e, com a ponta de sua camisa de manga, secou as lágrimas que insistiam em cair. Vaati recuou um pouco. A mágoa causada pelos humanos ainda era recente demais. Contudo, seu novo amigo puxou-o pela mão e o conduziu até uma humilde cabana, onde os dois se serviram de leite e biscoitos.

Um homem velho saiu de um cômodo que exalava calor e esfregou a testa suada. Quando viu as duas crianças, alisou sua barba com um meio sorriso.

— Vejo que trouxe um amigo, Link.

Vaati olhou para seu novo amigo, que assentia com vigor. De alguma maneira, aquele simples gesto deu-lhe um pouco mais de esperança. Link acolhera-o sem perguntas. Apenas viu que ele estava triste e lhe ofereceu biscoitos deliciosos. Os dois deixaram a cabana juntos e brincaram na floresta pelo resto da tarde. Quando caiu a noite, Vaati estava triste.

— Nós nos veremos de novo amanhã?

Link assentiu e acenou para ele, despedindo-se. Vaati pôs a mão no peito. Estava tão aquecido quanto a sala em que o velho ferreiro forjava suas espadas.

No dia seguinte, lá estavam eles de novo, brincando como se sempre tivessem sido grandes amigos. Vaati contou sua história, e Link ouviu tudo com muita atenção. A criança das vestes roxas era, na verdade, um Picori. Em termos humanos, tinha a mesma idade de Link. Sempre fora o sonho de Vaati deixar seu mundo pequenino e conhecer o mundo dessa gente grande que vive sem magia.

— Eu queria conhecer os humanos — explicou Vaati. Os cabelos prateados caíam suaves em volta de seu rosto, ocultando tudo, exceto a pontinha do nariz e o brilho de seu olho esquerdo. — Queria viver com eles. Por isso, eu roubei este chapéu mágico do meu mestre, o mago Ezlo. Ele ficou furioso! Eu me assustei tanto que o transformei em um monstro sem querer. Depois disso, vim correndo para a cidade, mas... — Ele fez uma pausa. — As pessoas foram más comigo! Por que elas foram más? Há algo de errado em mim?!

Link observou-o com bastante cuidado. Analisou as faces pálidas, os cabelos prateados... Os olhos vermelhos e vívidos como o fogo. Encolheu os ombros, sem ideia do que responder. Para sua mente de menino, não havia nada de errado com Vaati.

— Você não foi mau comigo... Por quê? — questionou o Picori.

Link encolheu os ombros de novo. Ele nunca era mau com ninguém, nem mesmo com os corvos que às vezes desciam dos galhos mais altos para atacá-lo sem motivo algum.

Vaati inclinou a cabeça para o lado, e seus cabelos deslizaram por seu ombro como uma cortina de luz movimentada pelas folhas das copas das árvores.

— Eu gosto de você, Link. Você é meu único amigo aqui.

O menino coçou a nuca, tímido. Respondeu com um largo sorriso acompanhado de olhos fechados.

No terceiro dia, Vaati sentiu tristeza. Quando chegou à cabana para cumprimentar Link, encontrou-o conversando com uma menina de longos cabelos dourados que trajava um vestido rosa cheio de babados. O Picori torceu o nariz. Não gostara nem um pouquinho dela. Ouviu tudo escondido e logo descobriu que ela era a princesa. A princesa de Hyrule.

— Vamos, Link. Vamos! — dizia a menina, puxando o menino pelo braço. — O festival Picori é hoje, e eu quero muito que você me acompanhe!

Os dois saíram correndo — na verdade, Link era arrastado —, e Vaati foi atrás. Quando chegou na entrada do reino, hesitou por alguns segundos. Não queria voltar àquela cidade em que fora tão maltratado. Ao mesmo tempo, queria rever Link. O Picori balançou a cabeça, resoluto, e passou sob o grande arco de pedra.

Hyrule estava em festa. Havia decorações e fantasias por todos os lados. Ninguém prestava atenção em Vaati e seus olhos vermelhos. Apesar disso, o Picori mexeu um pouco em seus cabelos e ajeitou o chapéu mágico para ocultar ao máximo seu rosto não humano. Caminhava olhando para baixo, acompanhando mais com o ouvido do que com os olhos os passos das crianças louras.

— Temos uma vencedora! — gritou um dos comerciantes, balançando um sino. — A princesa Zelda venceu o desafio! Alteza, por favor, escolha um destes prêmios magníficos. São eles: um pequenino escudo de madeira, uma joia rara em forma de coração e um frasco com o perfume mais delicioso desta região! Escolha, princesa. Escolha, por favor.

— Hum... — Ela pousou o indicador sobre os lábios. — Eu quero o escudo.

— Muito bem. Muito bem. — O comerciante assentiu. — Espere... O quê?! Alteza, quer mesmo este escudo pequenino e feio?! Mas e quanto a esta linda joia em forma de...

— Eu quero o escudo, senhor comerciante. — Ela abriu um sorriso encantador.

— Certo, certo... — O pobre homem coçou a nuca.

Ele entregou o escudo a ela e, no mesmo instante, Zelda entregou-o a Link, que deu um pulo de surpresa.

— Para você. — Ela sorriu.

Link imediatamente empunhou o escudo, fazendo poses. A princesa riu, mas Vaati, ao erguer levemente os olhos, percebeu que seu amigo não estava testando o presente. Ele estava apenas tentando esconder o rubor que dominara suas faces.

— Ele gosta dela... — murmurou o Picori. — Ele está apaixonado por ela...

Vaati esfregou o rosto com a manga de suas vestes. Pouco lhe importava que aquele festival fosse uma homenagem a seu povo. Ele fora rejeitado! Cruelmente rejeitado! Aqueles adultos que tanto se orgulhavam de se dizer humanos não hesitaram em lhe dirigir palavras mordazes carregadas de preconceito do desconhecido. Não hesitaram em lhe dirigir olhares assustados porque, pelas vestes do Rei! O menino tem olhos vermelhos!

O menino Picori correu para a floresta outra vez e se escondeu entre as árvores outra vez. Ficou ali sentado até o dia acabar. Até a música distante da cidade desaparecer completamente, cedendo espaço aos sons dos pequenos animais e ao canto tímido da coruja. Vaati havia tomado sua decisão. Ele retornaria ao mundo Picori, pediria perdão a seu mestre e desistiria para sempre de sua ideia estúpida de viver com os humanos. Ele já deveria saber desde o início que era uma ideia tola, sem fundamentos, que ainda por cima colocava todos os seus amigos em perigo e...

Vaati sentiu alguém cutucar seu braço. Olhou de soslaio para o lado e viu as roupas verdes de Link. Estava escuro e mal se podia enxergar as cores certas das coisas, mas aquelas, certamente, eram as vestes do menino louro.

O Picori ergueu o rosto e viu Link sorrir timidamente. O escudo estava preso às suas costas.

— Por que você foi embora e me deixou aqui sozinho?! — exclamou Vaati, pondo-se de pé. — Sabe que eu tenho medo da cidade! Por que você foi até lá com a princesa e me deixou aqui sozinho, sem ninguém com quem conversar?!

As lágrimas desceram por seu rosto pálido. Agora que a tristeza se derramava, Vaati não conseguia mais contê-la.

Link puxou-o para um abraço desajeitado. Era seu pedido de desculpas. Nunca fora intenção dele abandonar Vaati. Ele apenas... se esquecia um pouco do mundo quando Zelda estava por perto. Porque ele gostava de Zelda. E Vaati gostava de Link. Por isso, ele compreendeu.

— Desculpe — murmurou o Picori, afastando-se. — Eu... eu vou voltar para casa.

Ele fitou o amigo com seus olhos vermelhos. Tinha medo de qual seria sua reação. Link pareceu triste. Abaixou a cabeça.

— Eu preciso voltar — justificou-se Vaati. — Eu preciso pedir desculpas a meu mestre. Meu lugar não é aqui, Link. Mas...

O menino ergueu o rosto, piscando os olhos azuis para que as lágrimas não caíssem.

— Foi bom te conhecer, Link.

Vaati abriu um sorriso singelo.

— Sentirei saudades.

Link sorriu também, assentindo. Ele compreendia que seu novo amigo precisava voltar para seu lar verdadeiro. Vaati não era humano. Era um Picori. E Link se considerava muito sortudo por tê-lo conhecido.

— Adeus, Link.

Vaati deu-lhe um beijo rápido na bochecha e desatou a correr. Várias imagens perpassavam sua mente, desde as memórias das brincadeiras com o menino louro até as premonições da bronca épica que receberia de Ezlo. Ele estava quase fazendo a curva que deixaria Link irremediavelmente para trás quando ouviu o som.

— Adeus, Vaati!

O Picori estancou. Seus olhos vermelhos estavam arregalados, e os cabelos de prata moveram-se como uma cortina de luz quando ele desviou o rosto para o caminho atrás de si.

— Ele fala... — murmurou Vaati, espantado. Aos poucos, a surpresa deu lugar a um sorriso. — E ele disse meu nome...

Vaati voltou para casa cantando baixinho a canção mágica dos Picoris.

 

**

 

O guerreiro caminhava pela floresta empunhando a espada e o escudo. Ele fora chamado para dar conta de alguns monstros que haviam atacado viajantes naquela região. Depois de espantá-los, sentou-se à sombra de uma árvore para comer a pequena refeição que a princesa Zelda em pessoa entregara-lhe antes que partisse.

— Para dar sorte. — Ela dissera. Então, quando nenhum dos guardas estava olhando, ela deu um beijo suave nos lábios do guerreiro e abriu um sorriso cheio de travessura antes de retornar a seus aposentos.

Link deliciou-se com a comida. Quando terminou de comer, acomodou a espada e o escudo a seu lado e se recostou no tronco a árvore para um pequeno cochilo. Acordou de repente, sem entender muito bem por quê. Sonolento, olhou a seu redor e se assustou com um rápido movimento sobre um cogumelo próximo.

Ele coçou os olhos, espantado. Não viu nada além do cogumelo, que parecia inocente em meio às sombras. Contudo, Link tinha certeza de que vira alguma coisa. Sorriu. Ele realmente tinha sorte, não é? Muita sorte. Mas não era apenas porque a magia o encontrara outra vez, depois de todos aqueles anos... Sua verdadeira sorte era outra.

As vestes do Picori eram roxas.


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