Como eu não sei como começar isso vamos lá.

Tenho algumas coisas que eu preciso te contar. Você pode até não conseguir me entender muito bem, nem meus motivos para estar escrevendo isso. Para ser sincero, eu também não tenho certeza se eu estou fazendo certo em te escrever essa carta.

Não consigo explicar porque você é sempre o primeiro rosto que eu penso de manhã. Dentre todas as pessoas que eu deixei para trás, não entendo porque você é a única que eu penso todos os dias. E o pior é que eu nem sei direito o motivo. Eu poderia pensar na minha mãe, no meu pai, nos meus amigos, no meu irmão mais novo... Mas eu penso em você.

Você.

Aquela pessoa única que consegue me fazer sorrir. Quando eu precisei de um ombro amigo, você é sempre o primeiro a aparecer. Quando algo acontece, você continua sendo a única pessoa com quem eu quero compartilhar isso. Mas eu evito de pensar em você, por mais que isso me doa.

Eu passei meses sem falar contigo, porque eu esperava que você me esquecesse. Conversar contigo só ia trazer todas aquelas perguntas de volta à tona. E não é justo fazer isso contigo de novo, não depois de tudo que eu te fiz.

Porque eu me afastei de você?

Fomos vítimas do acaso, o destino pregou uma peça em mim e você foi obrigado a assistir minha queda. Talvez tenha sido isso que nos dividiu. Foi por causa desse clã que agora eu chamo de família.

Eu lembro que você me disse que eu não poderia simplesmente abandonar tudo que eu tinha só porque eu encontrei pessoas como eu. Pessoas que... Eu não consigo nem ao menos escrever o nome, por mais que essa forma é uma que eu adoto todo dia.

Não sei quanto tempo eu vou terminar de escrever isso. Eles estão dormindo agora, em suas casas, debaixo da chuva. Eu sou o único que está acordado essa hora, escrevendo essa carta para você. Não foi porque a chuva me lembrou de você. A chuva sempre me lembra de você. Me faz lembrar de como nos conhecemos, de alguns de nossos encontros e da primeira vez que você me beijou.

Talvez você tinha razão quando disse que eu poderia escolher meu próprio destino. Se eu não tivesse entrado para esse clã, te deixando para trás no processo, eu não teria quase morrido hoje.

Você sabe que, assim como os humanos, nós também temos mais de uma raça, não é? Não deve ser surpresa quando eu digo pra você que também temos nossas guerras. Naquele dia, justamente para evitar mais guerras de acontecerem, tentar valer a pena o desejo do nosso último guerreiro, fomos nos encontrar com o líder da outra raça. Ele também não estava muito animado em nos ver.

Eles moram em cavernas logo atrás da cachoeira perto do nosso lugar de acampar. Me faz pensar quantas vezes nós não estivemos à beira da morte quando fomos para aqueles lados. Só de caminhar por entre os lobos da outra raça, naquela mesma grama que nós nos deitamos, ver eles se banhando na mesma água em que nós nos banhamos... Tudo ali me fez lembrar de você.

Foi preciso que Erik me chamasse duas vezes para que eu voltasse à vida real e saísse das minhas memórias. Ele estava me contando alguma coisa sobre a escuridão da caverna mas eu não consegui entender direito. Eu só ouvi a parte que ele disse que para entrar na casa deles era preciso se molhar um pouco. Quando eu entrei debaixo da cachoeira, adivinhe. Eu me lembrei de você de novo.

Logo após nos secarmos, o líder dos lobos veio até meu grupo conversar com o meu líder. Ninguém veio conversar comigo, ainda bem. Eu ainda não sabia como fazer para voltar ao normal e parar de pensar em você.

Sabe qual foi a única coisa que me fez voltar à vida real? Ouvir os gritos e choros do meu líder. Os lobos do meu clã foram atacados e eu fui o último a perceber porque eu estava no canto, encostado na escuridão, quase ninguém me percebeu ali. Eu não sei o que eles conversaram, só sei que não deu certo a negociação.

Eu comecei a correr, sem nem ao menos olhar para trás, adentrando cada vez na escuridão. Eu ouvi gritos atrás de mim, inclusive de meu líder, para que eu não fosse até lá. Para que eu não continuasse a correr, para que eu voltasse. Eu não consegui entender porque. Se eu estava precisando sair dali, se eu precisava fugir, porque não poderia ir ali? Eu, como uma criatura da noite, conseguia enxergar no escuro.

Mas não imaginei que ali fosse tão escuro assim. Eu não conseguia enxergar um palmo à minha frente, nem tinha certeza de que eu estava saindo do mesmo lugar. Eu parei de correr e olhei para trás, e não enxerguei nada. Nem um ponto de luz, nada. Olhei para frente, escuridão. Para os lados, escuridão. Eu estava no meio do nada, perdido dentro de uma caverna.

Eu deveria ter escutado o meu líder. Eu ainda conseguia ouvir a voz dele atrás de mim, me explicando alguma coisa sobre a escuridão da caverna. Eu ouvi somente algumas palavras mas agora meu desespero me impedia de conseguir fazer algum sentido. Você sempre soube que eu tinha medo do escuro e você estava certo. Eu nunca quis admitir até então. Acho que estar ali apenas agravou tudo.

Eu conseguia ouvir somente minha própria respiração e o batimento do meu coração. E mais nada. Eu estava começando a ficar desesperado, fechei os olhos percebendo que não fazia diferença nenhuma estar com os olhos abertos ou fechados. E fiquei ali, parado, sem conseguir me mexer, de tamanho o medo que eu sentia.

Então...

Foi por isso que eu resolvi te escrever.

Eu ouvi sua voz. Você estava me chamando. Eu não me lembrava o quão bom era ouvir sua voz dizendo meu nome. Mas não era só isso. Você também estava falando para eu voltar, que eu não podia morrer ainda. Eu estava alucinando, não é? Não sei como um humano como você poderia ter conseguido entrar em contato com um lobo como eu, para evitar que eu morresse.

Eu nem precisei abrir os olhos e vi um brilho logo acima da minha cabeça. A única coisa branca no meio da escuridão. Uma luz, minha salvação. Eu vi asas de anjo e vi seu rosto. Você veio até mim e me abraçou, dizendo que ia ficar tudo bem. Eu não consegui evitar, admito, eu chorei. Você secou minhas lágrimas e então, tocou meus lábios com os seus.

E foi aí que eu acordei, sentindo os lábios do meu líder em minha boca. Eu estava alucinando. Eu levantei, tossi, e então levei o maior esporro da minha vida. Sabe o que ele disse? A mesma coisa de antes, só que agora eu prestei atenção.

Ele disse que se eu ouvir gritos, não era para eu me desesperar que fazia parte do plano. E que não era para eu sair correndo para dentro da caverna, porque aquela caverna tinha a reputação de ser amaldiçoada, alguma coisa a ver com os antepassados. Basicamente, quem entrasse além do permitido, ia se perder na escuridão e não encontraria o caminho de volta.

E ele disse que sorte a minha, eu tinha tropeçado quando eu corri. Que se não fosse por isso, eu teria morrido.

Moral da história, preste atenção quando alguém está te contando alguma coisa. Quase morri por não ter prestado atenção. Você sempre disse que isso ia acabar me matando, e, bom, foi quase. Acho que só assim para eu aprender.

Depois de muito conversar, e de uma segunda reunião, dessa vez eu tinha ficado do lado de fora, eles concordaram em acabar com a briga entre os clãs. Concordaram, também, que era hora de parar com tudo aquilo e unir as famílias de novo.

Eu vou me casar próxima semana.

Você não sabe o quanto isso está me incomodando.

Eu te abandonei pela promessa de que assim eu ia encontrar quem eu verdadeiramente sou, mas apenas acabei quase me matando e agora vou ter que me casar com alguém que nem ao menos conheço.

Acho que você provavelmente deve estar com o Tiago. Não me incomodo com isso, ele é um cara legal. Melhor que eu. Humano. Você merece ele. Eu não te mereço, não depois de tudo que eu fiz.

Acho que o carma finalmente chegou até mim.

Não vou receber resposta nenhuma, eu sei disso. Não espero que você sinta pena, não espero que você resolva voltar para mim. Eu espero que você tenha seguido em frente. Espero que você tenha esquecido de mim.

Espero que você seja feliz, principalmente porque não é comigo. Por mais que eu não mereça, eu vou seguir em frente. E espero que você faça o mesmo.

Com amor,

Daniel