Zombieróscopo escrita por Turma do Amor


Capítulo 3
Sr. Epaminondas


Notas iniciais do capítulo

Recomendamos a leitura acompanhada dessa música: https://youtu.be/RzhAS_GnJIc



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Um dia, quando toda aquela loucura acabasse e as coisas ficassem em paz novamente, Gêmeos escreveria sua biografia. Contaria toda a sua história, tudo o que vivera e se lembrava, tudo o que sentia. E aquele capítulo em especial já tinha nome definido: “Quetaconteseno nesta caralha?”. É, era bom. E pensar nisso enquanto corria pra casa de seu amigo Peixes, se esgueirando por todo e qualquer esconderijo que encontrasse e tremendo com o peso da pistola na mão, Gêmeos só tentava compreender como, num intervalo de menos de seis horas, todo o seu mundo havia desabado.
Ficar sozinho em casa já lhe era usual, e preferível até. Podia ficar largado no sofá, preguiçoso, zapeando pelos canais da tevê indo desde as premiações de música e programas de comédia escrota até novelas de 30 anos atrás e filmes pornôs – claro que ele sabia a senha de desbloqueio, ora, o sabia desde os 11 anos. Distraído, não deu importância para as notícias que a tevê alardeava até que elas tomassem todos os canais.
–Mas o que é isso? Quando foi que The Walking Dead voltou a ser tão popular?
Ergueu a sobrancelha mais escura, até sentando no sofá pra prestar mais atenção, lembrando divertido de seu Epaminondas, vizinho da frente que adorava esbravejar que em breve os zumbis surgiriam e o mundo iria acabar. Ele até havia preparado sua casa, tinha mantimentos e estoque, mas como levar a sério? Riu. Na tela, uma repórter morena divulgava notícias sobre pacientes que haviam enlouquecido em um hospital, mas antes mesmo de conseguir citar o nome do tal local, um homem completamente ensanguentado surgiu do nada e saltou sobre ela, mordendo seu pescoço e rasgando sua jugular.
Neste mesmo momento, uma sequência de coisas aconteceu, como que em sincronia perfeita.
O câmera na tevê, apavorado, largou o equipamento e tentou fugir. Só tentou.
A caixa de força de sua casa entrou em curto e tudo apagou do nada, o fazendo gritar de forma tão aguda que quebraria uma taça.
E seu celular tocou. Quem foi o imbecil que teve como ideia usar quinta sinfonia de Beethoven como toque, heim? Ah é, tinha sido ele.
O nome familiar na tela gerou um misto de alívio, medo e ansiedade.
–Alô, Peixes? Você não vai acred...
–G-gêmeos...
A voz era trêmula, chorosa, apavorada. Vazia. O bicolor gelou.
– Ei ei ei, Pepe, calma, que que foi? Acabou a luz aí também, não foi? Relaxa, lembra o que eu te falei sobre escuro, fica paradinho e logo alguém aparec...
– Ninguém vai aparecer. Não tem ninguém aqui. Só eu.
Aquele nem de longe parecia o Peixinho que ele conhecia. Antes que percebesse, estava tateando pela sala, pegando o casaco pra ir até a casa do garoto, logo ali ao lado.
– Pepe, olha, eu já tô chegando aí e...
–NÃO VENHA! NÃO SAIA DE CASA, PELO AMOR DE DEUS!
Apesar do choque, Gêmeos ignorou a ordem chorosa do menor e saiu, o tempo todo falando ao telefone, só então se dando conta da estranheza das ruas vazias e escuras, somada a gritos ao longe. Espera...aquilo estava indo longe demais.
–Mas que porr...
Começou a correr, mas ao chegar à casa dele, um novo choque: a porta estava bloqueada.
–PEIXES! QUE TIPO DE BRINCADEIRA É ESSA?
Não se deu por vencido e deu a volta, se pondo a subir no grande ipê cujos galhos davam no quarto do menor; já subira aquela árvore tantas vezes que conhecia de olhos fechados os pontos certos nas quais se apoiar. Saltou – e essa foi a sua salvação. No segundo seguinte, uma criatura fétida e grotesca surgiu, abocanhando o ar no exato lugar que há pouco era o seu pé.
Em seguida, mais deles se aproximaram, velozes, tentando escalar atrás dele.
–Isso só pode ser um pesadelo! É pegadinha, né? Eu tô na tevê? Já me pegaram, fiquem felizes, corta, coooooorta!
Ria, um riso esquisito, enfim alcançando a maldita janela. Trancada. Puta que pariu. Chutou o vidro, possesso.
–PEIXES, ABRE ISSO PELO AMOR DA DIVA!
Três chutes, quatro, cinco. No oitavo, o vidro enfim cedeu sob seus tênis, ou assim ele pensava. O pequeno a abriu, um olhar sério e frio como o bicolor jamais vira nele. Antes que percebesse, foi arrastado pra dentro, a janela novamente trancada enquanto ele tentava se recompor, estatelado no chão.
–I-isso foi por pouc... EI!
Ao erguer os olhos, Peixes estava a um metro de si, apontando uma arma. O olhar era uma confusão mista de seriedade, frieza, medo e choro. Suas roupas continham respingos de sangue. Sem entender, Gêmeos soltou uma risada nervosa.
–E-ei... Isso... É de verdade? Não, né... P-Peixes, abaixa isso...
– Eles te morderam?
Era uma pergunta simples e direta, então como ele não soube responder? Talvez porque estivesse concentrado no cano da arma que tremia diante de seus olhos...
–RESPONDE, ELES TE MORDERAM OU...
–N-NÃO, NÃO TEM MORDIDAS, NEM ENCOSTARAM EM MIM, EU PROMETO! Ó SÓ!
Em pânico, tira o colete e a camisa, mostrando o torso e braços, intactos. Virou de costas, rapidinho, pra reforçar seu ponto. Chega a tirar os sapatos e meias, e estava prestes a abrir o zíper da calça quando Peixes deixou a arma cair, desabando de joelhos no chão.
–V-você tá bem...
–Eu disse, seu doido!!! – Ainda meio em choque, chuta a arma pra longe do menor, por segurança, tornando a vestir suas roupas, antes de agarrar seus ombros e o sacudir. – O que diabos é tudo isso? Onde você conseguiu essa arma? V-você tá bem, não tá?
A preocupação vinha do sangue em suas roupas e pele, o tocando em busca de ferimentos ou, pior, uma das assustadoras mordidas. O azulado negou com a cabeça, voltando a ser o rapaz ingênuo e choroso que ele conhecia.
–Uuuuhhhh... O p-papai... O papaaaaai...
A mente dele começava a destravar. Aquilo não era uma brincadeira. Era real. Toda a loucura, a gritaria, o pânico... era mesmo aquele tão famoso e desejado pelos jovens apocalipse zumbi? Sério? Tipo...MESMO?
–Onde ele tá? O que aconteceu? Não me diga que...
O olhar choroso do pisciano foi dele até a arma, caída a alguns metros dali. Seu sangue gelou...será possível que...não...
– P-pepe...por acas...
Não conseguiu terminar a temida pergunta, tornando a gritar quando aqueles malditos bateram à janela do quarto, querendo entrar. Como tinham conseguido subir até ali?
–Temos de sair daqui, AGORA!
Visto que ele parecia ter entrado num transe choroso, Gêmeos assumiu para si a liderança da situação e, após pegar a arma (tremendo, com medo, mas era necessário), o forçou a levantar e correr, sem saber bem para onde ir. Se...Se o pai dele estivesse mesmo... Inferno, primeiro a mãe e agora o pai? Tinha de tirar urgentemente o Peixes dali, senão ele talvez nunca se recuperasse.
– Onde aqueles cretinos de 13 anos estavam com a cabeça quando pediram um apocalipse zumbi? Isso aqui num é legal não!!
Travou ao chegar à cozinha, os ruídos de unhas arranhando as portas e janelas sendo um excelente teste para seus esfíncteres.
– Onde... Onde podemos ir? Nenhum lugar é seguro...
Olhou pro amigo, que de uma forma extraordinária havia saltado da primeira fase do luto (negação) para a quarta (depressão), simplesmente não ligando pra mais nada ao seu redor. Ou seja, teria de ser com ele. Respirou fundo e estapeou a própria cara com muita força. Pensa, pensa, pensa....
–EPAMINONDAS!
Gritou tão alto que até o outro parou de chorar, o olhando como um cachorrinho confuso. Sorriu, esperançoso.
–Ele sabia tudo sobre essas coisas, lembra? Vivia falando que ia acontecer, que a gente precisava se prevenir e tal... Ele pode ajudar!
Mesmo com a vista nublada por lágrimas, Peixes assentiu, uma pequena luz naquele mar de terror. O outro olhava pros lados, mais concentrado em saber como diabos faria pra saírem dali. Os arranhões nas portas indicavam claramente que não estavam sozinhos.
–Droga droga, pensa Gêmeos, pens...AH!
Agarrou o azulado pelos ombros e olhou firme em seus olhos.
–Peixes, por tudo o que é mais sagrado, fica! Entendeu? Não sai daqui até eu voltar, fica!
Falou como quem adestra um filhote, e funcionou. Ele assentiu, abraçando o próprio corpo, enquanto Gêmeos tentava ignorar a parte de seu cérebro que falava que aquilo era uma ideia suicida e que ele estava idiota. Estapeou a própria cara, arrumando coragem. Correu até a cozinha, pela primeira vez agradecendo pela eletricidade ter sumido há um certo tempo, e vasculhou o freezer. Bingo! Carne descongelada! Não fazia ideia de que tipo de zumbis eram aqueles e nem o que os atraía, se o calor humano, cheiro ou sangue, mas rezava pra aquilo funcionar.
– Se existir um deus aí em cima, seja Zeus, Odin, Khalmyr, Tupã ou Shiva, por favor não nos deixe morrer agora!
Após a pequena prece politeísta, tornou a subir as escadas, indo desta vez para o banheiro de cima. Ótimo, sem zumbis na janelinha de lá, e ainda assim era impossível um deles entrar por ali, perfeito pra testar seu plano. A abriu, respirou fundo e gritou.
–Ei! Seus clichês de cultura pop! Tão com fome? Venham aqui!
E jogou um pedaço de bife semi congelado, o mais longe que podia – o que não era grande coisa, sua preparação atlética era risível. Surpreendentemente, deu certo: assim que a carne tocou o chão, os seres que estavam empoleirados na árvore trataram de tentar busca-la vorazmente.
–Cacete, d-deu certo!
Rindo meio nervoso, desceu de novo, ainda mais feliz por encontrar Peixes paradinho no mesmo lugar.
–Se prepara pra correr quando eu mandar, tá?
Não esperou resposta, e procurou ávido a janela mais segura do local. Não tinha nenhuma, mas a da cozinha era a única que não estava sendo diretamente atacada. Foi até ela e repetiu o procedimento, desta vez abrido apenas metade da janela e também fazendo um senhor barulho, jogando utensílios, copos e tudo o que pudesse lá fora pra chamar a atenção, por último jogando todas as carnes. Conseguiu fechar pouco antes de ser agarrado e mordido, o coração tão louco que mais um pouco de adrenalina o faria parar. O barulho na porta tinha parado, pelo visto os deuses estavam mesmo ao lado dele. Num ímpeto, agarrou o pulso do obediente amigo e murmurou um “corre!” firme e desesperado, irrompendo porta afora, usando um guarda chuvas aberto como defesa e torcendo pra não ser necessário usar a pistola; não queria gastar os tiros e tinha certeza de que sua mira estava no nível da de um stormtrooper. Nunca percebera que a casa de seu vizinho e era tão distante... Malditos trinta metros de distância!
–G-gêmeos!
Eles estavam atrás deles... Claro que estavam. Ignorando a tremedeira nas pernas e a exaustão, física e mental, Gêmeos se concentrou na coisa mais importante para si naquele momento: salvar Peixes. Tentava não pensar na loucura que se abatera ao seu redor, ou no fato de não saber o paradeiro da própria família. O que ele tinha, ali e agora, era o pequeno que ele arrastava para o que poderia ser sua última esperança.
– Não olhe pra trás! Fica comigo e não olha pra trás!
O grito era rouco, a voz arranhada pela falta de fôlego. Enfim alcançaram a bendita casa, mas ao invés de entrarem pela porta da frente, o geminiano arrastou um mui surpreso amigo pra parte dos fundos, onde sabia que o senhor supostamente doido havia montado um esconderijo seguro num velho galpão de ferramentas. O soltou, a marca de sua mão agora estampada em vermelho no pulso magro dele.
– Peixes, empurra a porta, mas pro lado. Tem uma trava no chão, precisa abrir antes!
Enquanto isso, ele servia de retaguarda, o guarda chuva em uma das mãos e a arma no bolso. Eles chegavam mais e mais perto. Quase dava vontade de desistir e acabar logo com aquele pavor.... Que mal haveria em se entregar? Seria tão ruim ass...
–Consegui! Anda logo!
A voz dele o tirou do transe. Peixes, é claro. Não o deixaria sozinho, assustado e para trás, nunca. Entrou atrás dele no galpão, imediatamente fechando tudo com as muitas travas que havia lá. O local era todo construído com madeira e metal, sem janelas. Impenetrável. Eles não podiam entrar, mas por hora os dois também não podiam sair. Estavam presos. Mas seguros.
–F-finalmente...
Recuou uns passos, as pernas amolecendo, mas hesitou ao pisar em algo úmido. Não conseguia ver bem o que havia por ali, a noite avançada e a falta de luz não permitiam. Sacou seu celular, usando a iluminação da tela pra tentar compreender melhor o lugar, só então dando pela falta do velho Epaminondas.
– Ué, achei que ele estaria por aqui... Não me diga que...
Engoliu a resposta ao iluminar melhor os fundos do esconderijo, o aparelho quase caindo por entre seus dedos, imediatamente o desligando e puxando o pisciano pros seus braços para que ele não visse. Entre latas de comida e água estocadas, cartuchos de balas, lanternas, medicamentos e outros suprimentos, uma enorme mancha vermelha se espalhara pela parede e chão. Aquilo em que havia pisado antes era sangue coagulado, oriundo do buraco de bala que o próprio Epaminondas fizera em sua cabeça. A visão do corpo tombado, os olhos ainda meio abertos, assombrariam o bicolor para sempre. E ao menor também, já que a interferência dele havia ocorrido tarde demais.
– Uma mordida... – O pequeno sussurrou fracamente.
– Q-quê?
– E-eu vi uma mordida... No ombro dele... E-ele nunca aceitaria ser um deles... E-ele os odiava, fez tudo isso pra se proteger, m-mas não... Ele não...
A força enfim faltou a ambos, que caíram sentados no chão, soluçando, usando um ao outro como alicerce e porto seguro. A família de Peixes havia enfim ido, de uma vez. Gêmeos não fazia ideia do que havia ocorrido com a sua, mas era bem fácil de imaginar. Nem queria procurá-los, não queria ver. Pensando bem, os preferia mortos naquele momento do que transformados numa daquelas coisas pavorosas. Seria muito, muito pior caso o destino resolvesse se divertir às suas custas e o forçasse a atirar na cabeça de um deles como...
Como Peixes.
Se acalmou um pouco, focando toda sua atenção novamente no ser choroso em seus braços, passeando os dedos pelos fios azulados
– Ei...vamos dar um jeito, tá? Vamos ser aqueles caras dos filmes que conseguem ganhar de todos e salvar o mundo, e-eu prometo! E eu sou o protagonista, porque ele é o mais fodão. Você me viu com aquele guarda chuva? Quem são Leon e Alice na fila do pão?
O jeito dele gerou um rápido riso lacrimoso por parte do outro, e um aperto mais forte em sua camisa. Aos poucos, ambos começaram a se acalmar, mas nenhuma palavra foi dita por um bom tempo. Ainda havia muito o que se pensar, decidir e fazer, mas por hora era preciso analisar e compreender a extensão de tal situação alarmante, além de permitir que seus corpos descansassem, ao menos um pouco. Logo logo, eles sabiam que precisariam correr de novo. Correr por suas vidas.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem até aqui~



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