Então, a Neve Caiu [CcL 12] escrita por Lady Lanai Carano


Capítulo 1
Então, a Neve Caiu - Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Viajei pakas nessa one, mas eu não queria perder o especial de aniversário! o/
Beijos de Mel ^^



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Allison não era boa naquela tortura diária chamada “socialização”.

A garota nunca entendeu como alguém conseguia fazer as próprias palavras fluírem tão facilmente, e ainda assim não parecer estranha, ou falando rápido demais. Era mais fácil se equilibrar em cima de um bambu em um pé só, segurando um saco de areia em cada mão, que nem os ninjas treinam nos filmes de Hollywod.

Quando Allison era pequena, isso nunca foi problema. Era tão tagarela quanto uma matraca, e tão agitada quanto um filhote de cachorro na primeira vez que vai passear. Agora, aos dezesseis anos, a garota passa mais tempo trancada no próprio quarto encarando o teto do que fazendo qualquer outra coisa... normal.

Em uma prateleira do quarto, havia um aglomerado de presentes – inúteis e supérfluos, na opinião de Allison – do seu pai. Sua mãe insistia em fazê-la guarda-los, mas o que Allison queria não eram presentes caros e mimos; ela queria que o pai voltasse para casa e vê-lo todo dia, não duas vezes por ano – no natal e no ano novo.

Então, os presentes carregados de ressentimentos ficavam acumulados em uma prateleira distante do quarto de Allison. Até mesmo o mais bonito de todos era tratado com descaso.

O globo de neve que a garota ganhara em um natal passado era uma verdadeira obra de arte. O globo de vidro repousava sobre uma base simples de prata, com uma cidadezinha incrivelmente detalhada dentro dele, coberta de neve. Uma chave transparente feito cristal – seu pai dizia que era de diamante – podia ser introduzida em uma abertura na lateral da base, fazendo os floquinhos brancos formarem uma tempestade.

De tempos em tempos, Allison girava a chave e olhava para a neve caindo calidamente nos telhados das casinhas, pensando amargamente sobre os seus problemas. Mas o hábito foi esquecido, e o maravilhoso globo de neve ficou coberto de poeira.

Depois de mais uma briga com a mãe na hora do jantar (os conflitos eram mais frequentes do que ela gostaria), Allison se escondeu na segurança do seu quarto, onde poderia chorar sem que ninguém visse. Era como se, a cada dia, uma gota de água fosse adicionada a um copo; mas, com o passar do tempo, o copo ficasse cheio, e estivesse prestes a transbordar. Allison já estava transbordando.

Ela chorou até dormir. O seu sono foi surpreendentemente tranquilo, como não tinha há tempos – mais precisamente, quando era criança, na época em que os pais estavam juntos. Quando Allison acordou, estava estranhamente renovada.

Mas assim que abriu os olhos, percebeu que havia algo de errado.

Aquele não era o seu quarto. Não sabia dizer exatamente onde estava, já que tudo ao seu redor era um pouco nebuloso, mas Allison podia sentir algo fofo debaixo de si. Ela olhou para baixo e não acreditou no que viu: era neve.

A neve não machucava a sua mão com o frio, e brilhava discretamente. Allison levantou e olhou em volta. Ela reparou que o ar era estranho, estático, e um pouco resistente, quase como se ela estivesse andando em água, mas não era desconfortável.

Allison andou na neve, tateando ao seu redor com as mãos, o que não adiantou muito; depois de poucos segundos de caminhada, ela bateu de cara em alguma coisa. Um som de sino fez-se ouvir, e então começou uma cacofonia de vozes ao seu redor.

Luzem a cegaram, e Allison instintivamente protegeu os olhos com as mãos. Quando pôde enxergar novamente, a garota piscou e olhou ao redor.

A névoa havia diminuído consideravelmente, permitindo que ela visse tudo com mais clareza. O objeto no qual havia acabado de bater era um poste alto, com um sino na ponta, decerto o responsável pelo som anterior. Allison parecia estar em uma praça, com bancos cobertos de neve e uma fonte congelada.

Mas o mais estranho de tudo eram as pessoas.

Homens e mulheres extremamente baixos, o mais alto chegando à altura do ombro de Allison. Todos carregavam lampiões antigos, mas com luz muito mais intensa que de fogo normal. Assim como ela, nenhum parecia sentir frio com a neve.

— É uma humana! – gritaram, em uníssono. Aquilo assustou Allison, que saltou para trás e acabou esbarrando no poste novamente. O som intenso do sino ecoou, e todos os homenzinhos ao seu redor tamparam os ouvidos, reclamando da falta de jeito de Allison.

— O que... quem são vocês? – A sua voz falhou. Allison não era boa em conhecer novas pessoas, muito menos em um lugar desconhecido e bizarro como aquele.

— Uma humana! É uma raridade recebermos humanos... – um homem falou. Aparentava ser mais velho, e mais sábio. Ou seja, a melhor chance de Allison de descobrir o que estava fazendo ali.

Mas antes que pudesse perguntar qualquer coisa, uma mulher na multidão gritou, com voz esganiçada:

— Humanos só trazem desgraça, Mestre Wilwi!

Iniciou-se uma confusão de vozes, e Allison não conseguia diferenciar o que cada uma dizia. O homem mais velho, aparentemente o tal Mestre Wilwi, permaneceu passivo, um pouco pensativo.

— Mas o que diabos... – Allison murmurou, olhando ao redor. – O-Onde eu estou? P-por que t-todos me odeiam? Eu nunca os vi na vida, eu juro!

— É claro que nunca nos viu, criança tola – Wilwi disse, pacificamente. – Para você, nós não existimos.

— Se vocês não existem, como posso vê-los?

— Nós não existimos para você – o velho repetiu – Agora, é melhor dar um jeito de voltar para o seu mundo, criança. Esse é apenas um sonho.

Aliviada por uma explicação lógica, Allison fechou os olhos e se concentrou. Pensou em si mesa, deitada na cama, o travesseiro molhado de lágrimas, o cabelo repleto de nós e pontas duplas cobrindo o rosto úmido, e dormindo estupidamente.

Como se dormir solucionasse todos os seus problemas.

Allison abriu os olhos. Continuava no lugar estranho de neve.

Foi quando ela desmaiou.

*~*

Allison olhou para a neve no chão. No que diabos tinha se metido? Sua mente repassava o momento em que acordou do desmaio, tentando descobrir algum tipo de lógica...

— Por que eu não consigo voltar? – Allison choramingou, vendo o sangue escorrer lentamente do seu nariz e pingar em suas roupas. Ela estava sentada e encolhida na neve, sendo a covarde que sempre fora.

— Algo está te barrando. – O ancião Wilwi sentou ao seu lado, pensativo. Os outros moradores estavam surpreendentemente calados. – Humanos frequentemente fazem viagens entre mundos, e chamam isso de sonhos, mas você não consegue acordar.

— Isso é... outro mundo?

— Sim. Mesmo que as lendas digam que esse lugar foi criado por um humano com um controle excepcional de suas viagens entre mundos, a Cidade da Neve não é a Terra que você conhece.

Allison sabia que havia se passado muito tempo, mas ela não sentia isso. Não havia necessidade de sono, nem de comida. A garota estava apenas... existindo.

Como aprendera com o Mestre Wilwi, ela levava uma lamparina quando perambulava pela Cidade. A névoa...

— Allison – Wilwi a chamou, e ela olhou. – Sabe por que não deixamos humanos ficarem aqui, mesmo em sonhos?

— Não.

— A névoa. Ela vem sempre que a neve para de cair, e traz muito medo para nós. Por isso, temos aqueles sinos localizadores, para resgatar os perdidos que não levaram luz, a única coisa que parece afastá-la. Uma velha lenda diz que esse é o presságio do fim da Cidade da Neve.

— Então... esse mundo está morrendo?

— Sim. E, como fomos supostamente criados por um humano, as desconfianças caem sobre eles. Todos estamos em pânico.

— Como é possível evitar o fim?

— Os cidadãos da Cidade da Neve acreditam em Destino. Sempre que duas coisas estranhas acontecem ao mesmo tempo, elas têm o mínimo de conexão.

— Então... A salvação da Cidade da Neve pode estar relacionada com a maneira com que voltarei para casa?

Mas nenhuma única pista foi levantada. Aos poucos, conforme o tempo corria como água, Allison foi perdendo as esperanças. Os dias, meses e anos não tinham a menor diferença. Ela desenvolveu uma leve amizade com algumas pessoas de lá, mas na maior parte do tempo, Allison andava, procurando por alguma coisa que não sabia o que era, cada vez mais sentindo saudade da sua vida miserável.

A garota não tinha a mínima noção de distância, por causa da névoa, então não sabia diferenciar o quanto havia progredido na sua caminhada. Mas, certo dia, enquanto andava distraída, pensando sobre a família – ela havia começado a esquecer de alguns detalhes, como a data do aniversário da mãe –, Allison pisou em falso e caiu de um barranco.

Ela escorregou na neve, xingando e protegendo a chama da lamparina, com medo que se apagasse e ficasse perdida. Mas, quando Allison se levantou e voltou a andar, bateu de cara com uma parede.

A garota piscou, esfregando a testa, e olhou para frente. Não parecia que havia nada lá, mas quando ela estendia a mão, conseguia tocar uma superfície lisa e fria.

— Sempre que duas coisas estranhas acontecem ao mesmo tempo, elas têm o mínimo de conexão, certo? – Allison sussurrou e se aproximou da parede.

Para a sua surpresa, assim que encostou a testa na superfície, a névoa ao seu redor se dissipou de vez, e ao invés de uma parede, na sua frente estava o seu quarto.

Através do vidro, Allison conseguia ver a si mesma dormindo na cama. Pelo relógio no criado mudo, eram quatro da manhã.

Foi quando ela ouviu vozes sussurrando. Não vinham de nenhum lugar; era como se elas vibrassem diretamente em sua mente.

Um diamante raro, delicadamente esculpido por mãos humanas, a fim de trazer a salvação.

A Cidade da Neve é um presente especial para uma menina especial.

As vozes repetiam diversas vezes as mesmas frases. Allison caiu de joelhos, encarando, em transe, o próprio quarto. Seus pensamentos eram velozes, deixando-a com dor de cabeça.

E esse lugar foi criado por um humano com um controle excepcional de suas viagens entre mundos.

A Cidade da Neve é um presente especial para uma menina especial.

Um diamante raro, delicadamente esculpido por mãos humanas.

A salvação da Cidade da Neve pode estar relacionada com a maneira com que voltarei para casa?

A névoa. Ela vem sempre que a neve para de cair, e traz muito medo para nós.

Uma parede de vidro. O seu quarto. Havia um motivo pelo qual qualquer que seja a Força Superior que rege o Universo a impediu de voltar.

Para salvar um mundo.

Allison olhou para baixo e viu alguma coisa brilhando em seu peito, por baixo das roupas. Ela puxou um cordão pendurado no pescoço, que tinha certeza que não estava ali antes, e viu o pingente na ponta. Uma chave transparente.

— Eu estou no globo de neve que o meu pai me deu, não estou? – ela murmurou, olhando para cima. Estava um silêncio estranhamente reconfortante.

Allison segurou a chave de diamante. Um humano havia criado o globo de neve, e feito a proeza de torna-lo um mundo à parte. Se a névoa que precedia o fim da Cidade de Neve ia embora com a neve...

Ela fechou os olhos, se concentrando na chave que levava nas mãos. Imaginou a si mesma dormindo pacificamente na sua cama, acordando com energia, dando um abraço na mãe e ligando para agradecer o pai pelo globo – e por ter criado a Cidade da Neve.

E então, Allison abriu os olhos.

~*~

A mente de Allison estava confusa. Tinha certeza que havia tido um sonho esquisito, mas não conseguia lembrar.

Ela olhou para o globo de neve em uma prateleira do quarto. Sem saber muito bem por que estava fazendo aquilo, Allison levantou, pegou a chave transparente o lado e deu corda. A neve caiu gentilmente sobre a cidadezinha. A garota olhou pela janela do seu quarto e assistiu um único floco branco flutuar até cair no parapeito.

E então, a neve caiu.


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Notas finais do capítulo

Gostaram?
Beijos de Mel ^^