Waves escrita por march dammes


Capítulo 19
Give Yourself a Try


Notas iniciais do capítulo

ok, então. eu devo algumas explicações.
as últimas semanas foram um inferno. minha saúde mental tá uma bela bosta e eu de verdade planejava escrever esse capítulo logo depois da última temporada, quando eu percebi que cometi um erro terrível ao assumir que o shiro era hetero mas, enfim. muita coisa aconteceu desde que eu postei o capítulo 18 e acho que boa parte da fanbase desistiu de voltron,,, mas eu não vou desistir dessa fic. porra, eu vou escrever ainda MAIS pra consertar a merda que a dw fez. vamo que vamo. por sinal, esses dias aí foi meu aniversário. deixem os parabéns nos comentários rsrsrs
bora ler? ♥



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Keith teve o sono interrompido pelo soar estridente do interfone.

Da primeira vez, rolou para o lado e ignorou o barulho – convenceu-se de que era apenas fruto de seus pesadelos conturbados e logo iria embora, como todos eles. Mas fosse quem fosse que estivesse à sua porta, era insistente, e tornou a pressionar o dedo sobre a campainha até forçar Keith para fora da cama, chutando o cobertor para o alto e anunciando com a voz rouca de sono:

—Já vou, já vou.

Checou o horário no relógio pendurado na parede da cozinha e franziu o cenho. Nove e meia da matina, isso lá era hora para visitas? Era sábado, então não podia ser seu vizinho, testemunho de Jeová e insistente pregador...também não era dia de reunião com o síndico, e Keith estava sem palpites.

“Espero que seja coisa boa...”, resmungou consigo mesmo ao abrir a porta...e receber o olhar pesado de Shiro.

O susto o despertou na hora.

—Posso entrar? -o mais velho pigarreou para limpar a garganta e perguntou, levemente instigador diante da expressão boquiaberta do outro, parado à sua frente já fazia alguns minutos.

—Ah! -Keith se afastou da entrada, gesticulando para que entrasse- Pode, pode.

Ao fechar a porta atrás de si, percebeu pelo canto do olho o mais velho suspirar e deixar a mochila no chão. Pelo visto, planejava uma estadia breve, não mais do que um pernoite. Mas o que o caralho estava fazendo ali?

—Shiro, o que caralho você tá fazendo aqui? -perguntou.

Era cedo demais para seus neurônios funcionarem como deviam, e as palavras saíam sem filtro algum.

Shirogane respirou fundo e girou nos calcanhares devagar, erguendo os olhos, mas não a cabeça, de forma a enxergar melhor a expressão incompreensível de seu protegido.

—Eu...precisava falar com você -explicou vagamente, levando Keith a assumir que estava encrencado- Sobre algo sério. E não me pareceu certo ligar ou mandar uma mensagem, então eu planejei a viagem e deixei um texto para avisar que estava vindo, e... -suspirou. Mal chegara e já o fizera mais de três vezes, o que sinalizava sua preocupação- ...desculpe. Eu só...

Não terminou a frase. Meteu uma das mãos no bolso e ergueu o braço prostético para coçar a nuca, claramente desconcertado, escaneando o chão com os olhos. E desta vez, Keith tinha certeza que não estava procurando falhas em sua faxina. Estava realmente envergonhado.

—É sobre...a Allura? -arriscou, por pouco não errando o nome da namorada do outro. Em resposta, Shiro pareceu encolher, e embora não houvesse usado palavras, respondia a questão apenas com a forma que parecia ter sido pego em flagrante.

 Keith estalou a língua, puxando os cabelos para trás e prendendo-os com um elástico que trazia no pulso, assumindo que sua aparência entregava completamente sua indisposição para conversar no momento.

—...Vem -chamou, passando por ele no corredor em direção à cozinha- Vou fazer um café. Você pode me contar o que houve enquanto bebemos.

Shiro o seguiu. Permaneceram em silêncio enquanto Keith tentava passar o café o mais amargo possível, sabendo como Shiro gostava, após anos de convivência. Adicionando quase cinco colheres de açúcar à sua xícara, serviu a ambos e sentou-se na bancada de frente para o “irmão”. Silenciosamente, empurrou em sua direção o píres e forçou um pequeno sorriso. Shiro captou seu olhar, e devolveu o gesto.

Tinha uma aparência cansada. Apesar de não estar mais em seus anos de ouro, nunca parecera tão velho quanto naquele momento – as olheiras estavam aparentes e as pálpebras pareciam pesadas, os lábios rachados demais para esboçar um riso e olhos avermelhados, como se viesse chorando.

Keith nunca o vira chorar antes. A mera suspeita apertou-lhe o peito.

Shiro respirou fundo como se preparasse para um mergulho. Passou o indicador pela borda quente da xícara de porcelana, como se tentando se distrair.

—Você se lembra...do...Adam?

O nome acendia uma pequena lâmpada no fundo de sua mente. Keith lembrava-se de um Adam Welsh ou Windser na época da escola, um rapaz alto e moreno de cabelos frisados, olhar estóico e óculos quadrados. Era amigo de Shiro quando estavam no Ensino Médio, ele e Keith haviam sido apresentados mas nunca foram realmente próximos.

—Hum...de certa forma -concordou, tomando um gole do café e fitando o outro como se tentasse lhe arrancar algum segredo com o olhar- O que tem ele?

—Bom... -Shiro ergueu a xícara, mas não deixou que tocasse os lábios- É uma longa história. -tomou fôlego para começar a discorrer- Adam e eu nos conhecemos na Garrison, muito antes de eu e você nos vermos pela primeira vez. Cursamos a maior parte de nossas aulas juntos. Começamos a nos falar durante a segunda ou terceira aula prática de química, bem no ínicio do primeiro ano. Depois da mudança nos alojamentos durante o terceiro bimestre, fomos transferidos para o mesmo quarto – na verdade, chegamos a ser bem mais próximos do que isso.

Keith ergueu as sobrancelhas, curioso. Não lembrava-se de Adam como mais do que um colega. Certo, estiveram juntos por algumas vezes enquanto Shiro fora seu tutor, por exemplo, ele estava lá em algumas das aulas de direção que recebera do mais velho, e também estava por perto quando Keith foi repreendido por pegar o carro de um dos oficiais da Garrison sem permissão aos catorze anos. Mas não sabia sequer que ele e Shiro haviam dividido um quarto, que dirá que eram mais do que amigos próximos.

—O que quer dizer com isso? -indagou, mais confuso do que nunca.

—Quero dizer... -Shiro tomou um gole do café amargo e suspirou, pousando a xícara, evitando encara-lo nos olhos- ...que eu e Adam estivemos juntos. Romanticamente...juntos.

Os olhos de Keith abriram-se tanto que deveriam estar do tamanho de um prato. Sua voz saiu um pouco mais alta e estridente do que provavelmente era adequado àquele horário:

—Você teve um namorado na Garrison?!

Shiro massageou a testa com dois dedos, o cotovelo apoiado na mesa, parecendo cansado de ter de explicar as coisas. Mas era melhor que se recompusesse, pois Keith não havia nem começado as verdadeiras perguntas.

—Desde quando? Por que vocês terminaram? E a Allura, onde ela fica nessa história? -fez uma pausa para recuperar o fôlego, um turbilhão de questões de repente lutando por espaço em sua fala. Então, baixou a voz, como se houvesse surgido algo mais importante do que os detalhes da revelação:

—Por que...por que você não me contou antes?

—Eu tive medo da sua reação. -a voz de Shiro agora mal superava um sussurro- Você era jovem, estava passando por uma fase difícil, eu era uma das únicas constantes na sua vida e não queria estragar tudo te jogando uma bomba como essa -soltou a respiração audivelmente, apoiando a cabeça com a mão livre, exausto- Eu sou gay. Sempre fui gay. E eu sei que você também é -, ergueu os olhos, esclarecendo, antes que Keith abrisse a boca para contestar- ...mas eu não sabia naquela época. E, antes que eu conseguisse me sentir confortável para conversar com você sobre isso...Adam foi embora.

Fez uma pausa. Keith o instigou com o olhar. Ele prosseguiu:

—Um pouco antes de nos formamos...eu fui um dos alunos no topo da minha classe, você sabe -gesticulou- E eu comecei a receber todas aquelas...ofertas de emprego e propostas de estágio em muitas cidades diferentes, mas nenhuma na universidade em que eu e Adam planejávamos ingressar juntos.

Parecia ter esquecido o café. Deixava-o esfriar, olhando fixamente para o fundo da xícara, como se enxergasse nele um espelho que mostrasse uma versão muito mais jovem e ingênua de si mesmo – uma versão cheia de sonhos, promessas e planos. Todos os quais haviam ruído sob uma inesperada guinada em seu caminho.

—Tivemos uma briga enorme. Adam se recusou a esperar por mim. E eu não deixaria a oportunidade de um futuro profissional garantido nem por todo o tempo do mundo com ele...bem. Pelo menos, foi do que eu tive certeza na época. -suspirou, com ar de arrependimento- Nos separamos aí. A relação já estava instável há algum tempo, mas esse foi o ponto decisivo em que ele...desistiu de mim. Não nos encontramos mais depois da formatura. Eu nem me lembro de ter falado com ele na cerimônia.

Mais uma pausa. Keith estava passando por um verdadeiro teste de paciência com aquela conversa.

—...Desde então, acho que eu meio... -pareceu estar procurando as palavras certas para dizer o que queria dizer- ...tentei...esconder? Ou disfarçar o que eu realmente era. Talvez por medo de me machucar novamente, ou...não sei. -deu de ombros- De qualquer forma...alguns anos mais tarde, conheci a Allura em um dos meus estágios.

Se Keith fosse um cachorro, esta seria a hora em que ergueria as orelhas. Tirou a atenção da bebida amarga em sua xícara e dedicou-a completamente ao mais velho, forçando-o a manter contato visual enquanto falava.

—Nos aproximamos, e ela passou a ser a única mulher no mundo que não parecia intolerável para manter um relacionamento...então, eu tentei. E não é como se eu não gostasse dela, é uma pessoa incrível, de verdade -esclareceu- Mas não é o quem eu realmente amo. Eu não demorei a perceber que minha atração por ela não era real, eu só...tentei ignorar a verdade enquanto colocava minha vida no lugar.

Shiro voltou a baixar os olhos e começou a bater as unhas contra a porcelana. Keith sabia do que ele estava falando – apesar de não ter chegado tão longe quanto ele, reconhecia ter tido o mesmo impulso de fazer-se encaixar em uma ideia distorcida do que deveria ser um relacionamento “normal”. Heterossexualidade é uma doença.

Keith saiu de seus devaneios ao perceber a expressão do outro mudar discretamente, de cansaço para um pequeno sorriso. Embora fosse pequena a diferença física, a nota delicada de otimismo iluminara completamente sua face.

—Algumas semanas atrás... -sua voz era baixa, embora mais doce- ...eu o vi de novo.

Era o fim de uma longa tarde aos portões da Garrison quando aconteceu. Takashi Shirogane concluía uma conversa com um dos coordenadores e ex-professor de pilotagem da época em que ainda era um cadete. De farda, havia participado de uma palestra sobre o futuro da tecnologia e os avanços que eram estudados pela empresa em que trabalhava atualmente, servindo como uma forma de troféu para a instituição, como se acenasse, “sou graduado da Garrison e tenho um cargo estável no meu emprego, sem contar o cachê mais do que satisfatório: esse pode ser você no futuro!”. Nunca lhe agradara muito esse tipo de propaganda, mas não tinha o que reclamar quando estava sendo pago para estar ali.

Independentemente dos meios, trocava seu último aperto de mãos do dia com o oficial quando um homem uniformizado se aproximou – e Shirogane nunca se arrependera tanto de ser uma figura de tamanha importância quanto naquele momento.

—Ah, professor! -o oficial que se identificava como Iverson cumprimentou, pousando a mão sobre o ombro de Shiro em um tapinha como se o indicasse, iniciando uma nova conversa- Conveniente recebe-lo logo hoje. Shirogane, suponho que já esteja familiarizado com nosso mais jovem tenente, não?

O cérebro do ex-aluno não foi capaz de formular uma resposta a tempo. Estava demasiado concentrado em memorizar todo e cada detalhe da face do recém chegado como se não fosse mais ser capaz de testemunhar aquele sorriso de viés, aqueles olhos excruciantemente claros, as veias das mãos e a forma quase provocativa com que os cabelos cacheados se recusavam a permanecer no lugar, como se os fios teimosos o instigassem a aproximar os dedos e afastá-los para detrás de sua orelha perfeita.

Shiro jamais poderia ter advinhado que o veria de novo. E ainda assim, sentia como se fosse a primeira vez.

—Takashi -Adam alargou o sorriso ao cumprimenta-lo, meneando com a cabeça em sinal de respeito- É bom vê-lo de novo.

A cena voltou a enquadrar Shiro e Keith sentados ao balcão, xícaras já frias e olhares cúmplices, ainda que o do coreano fosse significativamente mais cético.

—Que tipo de novela mexicana é essa em que você está vivendo, Takashi Shirogane? -questionou, exagerado- “É bom vê-lo de novo”? Quem diz isso para um ex que não quer ver de novo nem pintado de ouro?!

Shiro deixou escapar um riso divertido, o que retirou, em parte, o peso de sua expressão. Keith se sentiu levemente aliviado com a quebra da tensão que os cercava desde a chegada do mais velho.

—Ninguém, exatamente -ajeitou os cabelos (grisalhos, prematuramente) com os dedos e sorriu, desviando o olhar talvez pela centésima vez naquela conversa- Trocamos endereço e nos falamos por horas depois disso...ele mudou, Keith, desde que eu o vi pela última vez. E é...justo dizer que nem tudo amargurou entre nós dois.

—Tradução -, interrompeu- Seu traseiro gay ainda está apaixonado por ele. -lhe apontou com a colher de açúcar, acusatório- Você não é muito bom em esconder as coisas, Shirogane. Quer dizer, exceto que me escondeu sua sexualidade durante anos, mas eu não estou bravo. -Shiro ergueu uma sobrancelha, e ele cruzou os braços- Certo, estou. Mas só um pouco.

Trocaram um sorriso, e Keith cedeu ao deixar escapar uma risada baixa, discreta. Shiro negou com a cabeça, erguendo a xícara até os lábios e tomando um pequeno gole, antes de torcer a expressão ao perceber que a bebida já perdera todo o gosto.

—Enfim... -suspirou, desta vez, sem tanto peso- Eu conversei com a Allura sobre isso. Decidimos que o término era a melhor opção viável. Ainda somos amigos -apressou-se em esclarecer, diante da expressão franzida do mais novo-, e vamos permanecer assim. Mas, sobre o Adam... -foi ridículo vê-lo tentando esconder o sorriso- ...devemos nos ver de novo em alguns dias.

—Takashi, Takashi... -Keith negou com a cabeça, forçando-se a manter a testa franzida e estalando a língua em desaprovação- Não acredito que chegou o dia em que eu vou ter que tomar a responsabilidade de te repreender. Bom, lá vai -desceu o punho sobre a mesa, arrancando do outro um sobressalto- Você não deveria jamais se sentir na obrigação de mudar quem você é para se encaixar em qualquer tipo de regra estúpida. Jamais, entendeu? -frisou- Sexualidade é um maldito espectro e se você já chegou em um ponto em que tem certeza do que sente, ótimo, porque você é um dos poucos sortudos que chega a essa conclusão e ninguém, ninguém tem o direito de te invalidar por isso. Nem a merda da sociedade e sua heteronormatividade de bosta. -sorriu, os olhos brilhando com uma chama incomum- Foda-se a norma e é vida que segue. Beije garotos, levante bandeira, cometa crimes de pudor. No fim das contas, ninguém liga.

Shiro não resistiu à risada. Rebeldias à parte, sentia que tinha criado Keith muito bem – ele não havia deixado de ser um pirralho atrevido, mas pelo menos estabelecia sua verdade pelos motivos certos. E nada o deixava mais orgulhoso do que teimosia homossexual.

—E, por sinal -chamou sua atenção novamente, apoiando o queixo na palma e fazendo uma careta- Mesmo que eu fosse hétero, é idiota da sua parte pensar que eu não te apoiaria. Irmãos até o fim, não foi isso que você me disse antes de ir embora?

Espelhavam o sorriso um do outro. Não sabiam exatamente o que havia acabado de acontecer ali, mas um laço seguramente havia se estabelecido. A confiança que possuíam um no outro estava sendo reassegurada mais uma vez.

—Certo -riu, estendendo a mão em punho para uma batida amigável- Irmãos até o fim.

—Broganes, porra -Keith devolveu o cumprimento, alargando seu sorriso.

Shiro levantou-se, ainda com aquele ar divertido, e, de quebra, sentindo-se aliviado. Era como se o peso de uma vida houvesse sido retirado de suas costas, e ele já vinha desenvolvendo escoliose de tanto carregar aquele segredo contigo. Agora, sentia-se muito mais livre, como se toda uma abrangência de possibilidades de contato tivesse se tornado possível com seu irmão de consideração, Keith.

—Ah, e mais uma coisa -chamou, pousando os pratos na pia e se armando com um par de luvas de látex, resignado a lavar a louça deixada talvez da noite passada, ou da semana anterior- Eu posso dormir aqui por hoje, certo?

—Não -Keith cruzou os braços, fazendo-o se virar, descrente- Quem apareceu sem avisar foi você. Pode ir procurar algum hotel, ou dormir na recepção do prédio, se quiser.

Se encararam durante alguns segundos. Em determinado momento, Keith não conseguiu mais sustentar seu olhar incrédulo e desatou uma risada, levando Shiro a acompanha-lo, sacudindo a cabeça.

—Quando foi que eu te neguei santuário, Shirogane? -saltou da banqueta e lhe desferiu um tapa leve no pescoço, como fazia quando teve sua explosão de crescimento na adolescência e percebeu que podia finalmente alcançar sua nuca- Vou voltar pra cama. Sabe onde ficam guardados os lençóis, não sabe? O quarto está no mesmo lugar de sempre para você usar.

—Vai voltar para a cama? Não está em um horário ruim, você sabe, e na verdade seria bem melhor se usássemos os últimos minutos de sol fraco para uma caminhada...

Keith ignorou todas as palavras que saíam da boca do mais velho ao formar uma linha ensaiada da cozinha até seu quarto, batendo a porta e soltando os cabelos ao retornar à escuridão aconchegante de sua cova. Bocejou. Nem mesmo o café mais forte do século o impediria de dormir até tarde em um sábado.

Deixou-se cair na cama, e, acompanhado pela trilha sonora da água corrente e Shiro assobiando na cozinha, apagou.

X

Mais tarde naquele mesmo dia, Keith experimentava roupas diante do espelho, em dúvida sobre qual das duas camisas com exatamente o mesmo tom de preto deveria usar para o encontro que teria mais tarde com Lance.

Haviam combinado uma ida ao bar & karaokê na terceira avenida que Keith nunca havia frequentado, embora tivesse um gosto por música e bom ouvido, e adorasse cantar. Lance chamou sua negligência de absurdo e prometeu pagar pela primeira rodada e quinze minutos em uma das mesas reservadas.

—Se você não acabar cantando pelo menos dois duetos comigo, eu pago a saideira -,prometera.

Keith concordou aos sorrisos, preparado para uma noite divertida na cidade e, mais importante ainda, gratuita.

Teve sua linha de raciocínio interrompida por Shiro metendo a cabeça para dentro do quarto, desavisado, como se morasse naquela casa ou algo parecido. Ou como se pagasse a taxa de locação, o que tecnicamente era verdade.

—Keith, tem alguma toalha limpa...ah, interrompi? -constatou o óbvio, olhando-o de cima a baixo- ...Vai sair?

—Vou -confirmou, resolvendo-se com a vestimenta e jogando as duas camisas sobre a cama, abrindo o armário e tirando outra de um tom levemente mais escuro de preto- Tenho um encontro com o Lance.

Fez esforço para disfarçar o sorriso, e por pouco teve sucesso. Não foi casual o bastante para despistar Shiro, no entanto, que apenas ergueu as sobrancelhas, uma certa diversão dançando no fundo de seus olhos, que Keith evitou encarar por motivos de estar começando a se irritar. Onde estava a graça?

—Hum...e essa vai ser o quê, a terceira vez?

—É -confirmou, passando a cabeça pela gola e então os braços, alisando o tecido na frente do espelho e roubando um olhar de soslaio na direção da porta- E daí?

—Nada -encolheu os ombros e sorriu- Só...você sabe.

—Sei o quê?

—As coisas ficam sérias depois do terceiro encontro.

Keith virou completamente o corpo, fitando o sorriso indiscreto (e inevitavelmente irritante) do outro, aproveitando a guinada para resgatar um dos tênis jogados no chão ao seu lado e lançando-o em direção à porta.

Shiro desviou com folga, sua risada reverberando ainda durante alguns segundos pelo corredor, sendo interrompida apenas pela batida da porta do banheiro se fechando.

—Irritante... -resmungou entredentes, virando-se e afagando os próprios cabelos na altura da nuca. Bufou, encontrando seu próprio olhar no espelho, fraquejando ao perceber o rosto de um tom levemente mais avermelhado do que o normal.

—Tch... -estalou a língua, um hábito feio que vinha adquirindo, e só se intensificara quando Shiro estava por perto para testar sua paciência- Velho irritante.

Prendeu no alto as mechas mais compridas de seu cabelo, que tendiam a obstruir sua visão, e jogou sobre os ombros a jaqueta de couro que já era de estimação e o acompanhara em longas viagens de moto. Posou discretamente, checando como estava o caimento da calça de lado, e se os coturnos estavam bem presos, e se a camisa não estava amassada.

Decidiu ser um pouco mais atrevido e estalou os dedos, fazendo pequenos sinais de revólver com as mãos em direção à sua própria imagem. Sorriu de canto, o menos falso que conseguia.

—Ei, garoto -ensaiou- Você acredita em amor à primeira vista, ou eu deveria passar de novo?

Imediatamente, sentiu-se um imbecil. Enrubesceu irremediavelmente e escondeu o rosto ao levar a palma à testa, produzindo um estalo quase tão alto quanto sua tentativa obscena de efetuar uma cantada. Seu charme não era apenas inexistente, ele era ofensivo.

Do embaraço, no entanto, começou a formar-se um sorriso. Por mais idiota que parecesse quando o fazia, suas tentativas de sedução certamente fariam Lance rir. E diverti-lo era mais importante do que romanceá-lo, pelo menos naquele momento, para Keith.

Decidiu escolher alguma outra sentença mais tarde. Por ora, deveria garantir que estava no horário. Antes de meter o celular no bolso junto com a carteira de motorista, checou suas mensagens, rapidamente teclando uma resposta após confirmar que Lance estava há mais ou menos cinco minutos de desembarcar. Saiu do quarto apagando a luz e bateu à porta do banheiro para se despedir de Shiro.

—Estou de saída -avisou- Se precisar de alguma coisa, me ligue. Tem um cartão da pizzaria debaixo do saleiro e uma marmita congelada no freezer, se quiser se arriscar.

Roger—respondeu Shiro, mais alto do que o barulho do chuveiro- Boa sorte no seu encontro romântico!

—Vai se foder -respondeu, arrancando uma risada do mais velho. Negou com a cabeça, não conseguindo esconder o sorriso, e deixou uma nota de $20 sobre a bancada de pedra antes de sair trancando a porta atrás de si, deixando uma cópia da chave disponível caso o outro decidisse de última hora ir se aventurar na cidade.

Deixou seu prédio deliciando-se com a brisa gelada da madrugada castigando seu rosto enquanto acelerava a motocicleta, o motor roncando prazerosamente como se já soubesse o que estava por vir.

Não sentiu-se nervoso ao estacionar em frente à estação, nem ansioso ao avistar primeiro os tênis azuis que eram característicos daquele que viera encontrar, muito diferente da primeira vez que repetira aquele mesmo itinerário.

Quando seu olhar encontrou-se com o de Lance e os olhos azuis enevoaram-se apertados por um sorriso, não sentiu vontade alguma de se esconder nem de acelerar em direção à estrada. Na verdade, foi puxado por eles, atraído pelo conforto familiar que sentia ao estar junto de Lance. Sua voz não lhe causava mais arrepios – trazia uma tranquilidade e, ao mesmo tempo, um entusiasmo que não sentia há muito mais tempo do que poderia imaginar.

—E aí –(Lance tinha o sorriso mais bonito do mundo)- Vamos?

—Sobe aí, cabeçudo. -devolveu, uma expressão divertida.

Não estava mais inseguro, ou em dúvida.

Na verdade, nunca havia tido tanta certeza do que queria na vida.

Queria Lance. Todo para si. E o teria.

Com certeza o teria.


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Notas finais do capítulo

queerbaiting é bosta, énois



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