Pidge não era uma pessoa de fé. No entanto, naquele momento, orava para todas as divindades que conhecia para que lhe agraciasse com a coragem que precisava.

Era quarta-feira de manhã, mais conhecido como Dia G – o fatídico exame de admissão na Garrison, a escola técnica mais famosa do país, que formava astronautas, engenheiros e navegadores em serviço da NASA.

É. Não era pouca merda, não.

Batendo os pés nervosamente no chão do trem, Pidge mal conseguia se manter quieto em seu assento. Conseguia sentir a ansiedade formando nós em seu estômago, e não no bom sentido – era o tipo de nós que você conseguiria se jogasse seu carregador, fone de ouvido e cabo USB na mesma mochila.

De vez em quando, alternava o olhar de sua playlist no celular (qual música estava tocando, mesmo?) para os outros passageiros, sua mente se enchendo de perguntas desconfortáveis sobre a própria aparência. “Será que eu estou masculino o bastante? Meus peitos estão muito aparentes? Eu deveria ter lavado o binder mais cedo ontem...minhas costas estão doendo, não consigo manter essa postura...espera, aquele garoto está me encarando? Meu cabelo está tão ruim assim?”

Era geralmente assim, mas não nessa intensidade. A maldita prova o estava tirando dos trilhos.

Sentindo-se chegar ao limite, decidiu recorrer ao seu melhor amigo honorário para uma dose de calma e outra de motivação. E rezou para que Keith estivesse de folga.

Nerd Authority [06:56]: keith?

Nerd Authority [06:56]: kife

Nerd Authority [06:57]: KITE

Nerd Authority [06:58]: o mothman é uma mentira e todo bom cryptozoologista sabe disso

S4D_B0Y_2001 [06:58]: Retire o que você disse.

Nerd Authority [06:58]: retirado. por que você tem um fetiche tão bizarro pelo mothman?

S4D_B0Y_2001 [06:58]: Eu prefiro chamar de fascínio.

Keith, por sorte, estava de folga. Mas, por um maldito hábito, ainda acordara cedo, e agora tropeçava no gato miserento que Shiro o havia deixado tomando conta pela semana. Qual era o motivo, mesmo?

—Minha....namorada vai passar o fim de semana no meu apartamento, e ela é bem alérgica. Pode ficar com a Andrômeda por um tempo? Só até eu conseguir aspirar...ah...a casa toda.

E se seguiram alguns suspiros de profunda dor enquanto Shiro mentalmente calculava cada ângulo e cada buraco que teria de limpar à procura de pelos de gato. Certo. Era um motivo sensato.

Mas não agradava Keith em nada ter que ficar chutando uma felina mal-encarada para se deslocar alguns metros dentro da própria casa. Isso não era importante agora, de qualquer forma. Tinha de ajudar Pidge a se sentir melhor sobre pasta de amendoim ou algo do tipo.

S4D_B0Y_2001 [06:58]: Enfim, qual o problema?

Nerd Authority [06:58]: a prova da garrison é hoje

S4D_B0Y_2001 [06:58]: Oh.

Nerd Authority [06:59]: é, e eu estou morrendo

S4D_B0Y_2001 [06:59]: Você não está morrendo.

Nerd Authority [06:59]: estou morrendo

S4D_B0Y_2001 [06:59]: Vamos, não está, não. Você é um gênio aos catorze anos, Pidge, consegue fazer essa prova com os pés nas costas.

Keith tinha de admitir que havia esquecido sobre a prova. Já era Maio? Huh. As férias de verão estavam se aproximando rápido.

Para os estudantes, é claro. Quem trabalhava para pagar as contas sozinho não conhecia a palavra “férias”.

Nerd Authority [06:59]: acho que não estou pronto. talvez eu só não esteja pronto

S4D_B0Y_2001 [06:59]: Você vem estudando há um ano. Está mais preparado pra isso do que eu jamais estive.

Nerd Authority [07:00]: keith…

S4D_B0Y_2001 [07:00]: Confie um pouco em si mesmo. Vai tudo valer a pena. Você vai entrar lá, chutar essa prova na cara, cuspir em toda a hierarquia de diretores dessa maldita escola técnica e graduar com a cabeça erguida. E se VOCÊ não confia em si mesmo o bastante pra isso, eu confio. Por nós dois.

Pidge sentiu as lágrimas borrando sua visão pior do que as lentes sujas dos óculos. Fungou, fingindo uma alergia, e deixou um pequeno sorriso escapar enquanto esfregava os olhos e relia a mensagem. Sentiu vontade de rir; Keith nunca escrevia mais do que duas linhas a não ser que se tratasse de garotos. Ou do Mothman.

Nerd Authority [07:02]: tudo bem. é. eu consigo fazer isso

S4D_B0Y_2001 [07:02]: Você consegue fazer isso!

Nerd Authority [07:02]: eu vou passar nessa prova

S4D_B0Y_2001 [07:02]: Você vai passar nessa prova!!

Nerd Authority [07:02]: e você devia passar mais tempo com o lance. tá sendo uma boa influência pra você.

S4D_B0Y_2001 [07:02]: Eu vou!!!

S4D_B0Y_2001 [07:02]: Espera, O QUÊ.

Riu baixo. Continuou “teclando” com o amigo até começarem a ecoar avisos sobre sua cabeça, e manteve as orelhas atentas para qualquer alerta sobre seu destino.

Nerd Authority [07:08]: de qualquer forma, eu queria que o matt estivesse lá

Nerd Authority [07:08]: mas ele precisa se apresentar no trabalho ou algo assim

S4D_B0Y_2001 [07:08]: Ugh. Estagiários.

Nerd Authority [07:08]: certo?

Keith analisou um post-it preso à porta do microondas, com olhos estreitos. Na letra de Shiro, dizia “Nada de esquentar pizza para o café-da-manhã. Um bom tripulante espacial sabe equilibrar a refeição mais importante do dia com carboidratos, proteínas e vitaminas”. Oh, Deus. O rapaz revirou os olhos e arrancou o aviso.

...Mas de toda forma, agora se sentir culpado em esquentar pizza para o café da manhã.

Acabou fazendo ovos estalados, e fuçou a despensa em busca de algum rastro de torradas.

Sua manhã se manteve ocupada com Pidge - até quando o mais novo ficou offline, alegando que a prova começava às 7:15h em ponto, Keith não conseguiu afastá-lo de sua mente. As preocupações dançavam, zombando de si, e ele tinha certeza que, pelo canto do olho, a gata de Shiro ria dele. Ora, cale o focinho, Andrômeda.

X

Pidge estava cara-a-cara com seu pior medo. Enquanto o táxi dava a partida atrás de si, à sua frente estava a maior construção que ele já vira brotar do meio do nada.

A sede central da Garrison ficava em um deserto, com uma pista de pouso de helicópteros e um enorme pátio para treinos de resistência física. Nesse momento, uma turma que já aparentava ser veterana marchava em voltas bem cronometradas por um professor de educação física que provavelmente partia melancias com as coxas.

Fora isso, tudo parecia tirado de um filme de ficção científica. Como diabos algo daquele porte existia ao mesmo tempo que telefones fixos?

Seguiu pelo pátio extenso. Na porta de entrada, acompanhado de um tipo de guarda (talvez soldado?), estava um garoto com o dobro de seu tamanho em diversos sentidos. Vestia o uniforme da academia e mexia no celular distraído, e ao levantar a cabeça e sorrir, Pidge assumiu que fosse seu tutor designado do segundo ano.

—Olá! -cumprimentou o garoto, estendendo a mão e guardando o celular no bolso- Pidge...Holt, certo?

—Isso -espelhou o gesto, tirando os fones com a mão livre- Prazer em conhecê-lo…?

—Garrett. Hunk Garrett.

Trocaram um aperto de mãos profissional. E um sorriso caloroso.

—Vou ser seu tutor durante essa prova. E se você for admitido, durante seu primeiro mês na Garrison. Espero que nos demos bem -e sorriu apertando os olhos, o que Pidge achou extremamente adorável.

Seguiu Hunk para o interior da escola, o que não era novidade para ele - já visitara antes, com o pai e o irmão mais velho. Ambos haviam sido admitidos na escola em uma idade bem jovem, e impressionavam com suas notas perfeitas e excelente desempenho em simulações. Não era incomum ver fotos de seu pai recebendo prêmios e condecorações pelas paredes daqueles corredores…

Por isso estava tão nervoso. Tão miseravelmente nervoso. Tão, ansiosamente, miseravelmente, terrivelmente nervoso.

—Entusiasmado? -a voz de Hunk lhe tirou do transe- É uma prova bem competida.

—Hah… -riu com nervosismo, apertando a alça da mochila até os dedos ficarem brancos- Mais ou menos.

Hunk então se curvou um pouco em sua direção enquanto andavam, e Pidge sentiu as orelhas arderem. Olhou rapidamente em volta em busca de algo que servisse como arma, caso tivesse de acertar alguém e fazer uma saída estratégica.

—Ei, aqui entre nós -Hunk falava baixo, para que os monitores que passavam por eles não o escutassem, provavelmente- Essa prova é uma pressão psicológica horrível. Mais do que realmente é difícil. Mantém a cabeça limpa, e eu prometo, vai ficar tudo bem.

Hunk se afastou, e sorriu com confiança.

—Eu saberia, a fiz duas vezes.

A atitude de Hunk era uma brisa fresca sobre a ansiedade de Pidge. Óbvio que não estava automaticamente curado, mas o apoio de um estranho o ajudava a não se desesperar mais ainda. Começou a sentir que talvez fosse conseguir. É. Não podia ser tão impossível.

Após virarem alguns corredores, chegaram a uma área consideravelmente mais frequentada da escola. Outros aspirantes estavam lá, todos um pouco mais velhos que Pidge, encostados à parede e calados com suas próprias crises, ou em pequenos grupos, conversando aos burburinhos. Um garoto olhava para a única caneta estourada em suas mãos como se fosse um espólio de luto. Ugh.

—Essa é uma das salas onde a prova vai acontecer -Hunk gesticulou- Sala 801. Não vou poder esperar você terminar, então um monitor vai te guiar até a saída no limite de quatro horas.

Na porta, trocaram números de telefone. Hunk prometeu se manter alerta e pronto para responder quaisquer dúvidas. Se tivesse alguma pergunta sobre massa pronta de bolo, também poderia perguntar a ele. Pidge riu-se da piada, mas imaginou que deveria levar a sério.

—Boa sorte! -Hunk sorriu, e completou o gesto com um toque amigável no ombro de Pidge. Sua mão era maior que a cabeça do mais novo.

Então, algo que soava entre um alarme e uma campainha tocou alto no cômodo, retirando exclamações de todos. Os outros tutores por perto seguiram caminho para suas respectivas salas, inclusive Hunk, que deu um último sinal de polegares para cima e se retirou. Apertando mais uma vez as alças da mochila, Pidge respirou o mais fundo que conseguia e soltou o ar com força.

—Lá vamos nós. -murmurou para si mesmo, entrando na sala.

Haviam mais alunos do que contara no lado de fora. A prova, belas oito páginas, virada sobre sua mesa, e Pidge jogou a mochila ao seu lado retirando uma barrinha de proteína e todas as canetas que encontrara em casa.

Suspirou. Essa era a hora. O professor designado para monitorar a prova era extremamente mal-encarado. Pidge baixou os olhos e percebeu que suas mãos tremiam.

—A prova começa agora -a voz do professor ecoou pela sala, quieta como um túmulo- Podem virar seus exames.

Pidge virou as folhas para revelar um formulário de matrícula. Empunhando a caneta como se fosse uma espada, e respirando fundo mais uma vez, sentiu como se toda sua vida o levasse para aquele momento.

Pôs total confiança em seus estudos. E, com toda a determinação da galáxia, deixou que a caneta deslizasse sobre o papel.