Teus olhos rubros escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Ato I


Notas iniciais do capítulo

No remake de 2011, o mestre do Kurapika recebeu o nome de "Mizuken". Contudo, em capítulos recentes do mangá, o Togashi informou que o nome real desse personagem é "Izunabi". Apesar de eu preferir "Mizuken", optei por utilizar "Izunabi" nesta fanfic, em respeito ao canon.



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Os olhos da criança mudavam de cor. Quando Izunabi a viu pela primeira vez, treinando sozinha na floresta, acreditou que fosse apenas um órfão comum perdido em meio às maldades que a vida lhe impusera. Aproximou-se. Sentou-se a seu lado. Começou a conversar. Ela não queria lhe dar atenção. Olhava as árvores à sua volta, os pássaros que voavam pelos céus. Só respondeu quando Izunabi se apresentou.

— Eu não quero saber quem você é. Por favor, deixe-me em paz.

O homem abriu um leve sorriso.

— Ah. Então, você fala.

Desde aquele momento, ele passou a seguir o menino, ciente de que violava suas vontades. Era uma criança esperta que sabia como lidar com a solidão. Quase dava gosto vê-la resolvendo por si mesma os inúmeros problemas do dia-a-dia. Quase. Era ainda muito nova. Um peso tão grande não deveria recair sobre ombros tão frágeis. Izunabi não resistiu. Certa tarde, quando o dinheiro do órfão havia acabado, e ele sentia fome, aproximou-se outra vez, estendendo um sanduíche.

A criança olhou de soslaio. Era orgulhosa. Se era! Só aceitou a ajuda por conta de um alto protesto de seu estômago. Abriu o embrulho do sanduíche educadamente, mas logo deixou os modos de lado para dar uma grande mordida. Sem que o menino assim quisesse, lágrimas brotaram de seus olhos. Aquela era a primeira vez em que encontrava alguém gentil.

— Kurapika — pronunciou com um fiapo de voz.

— Perdoe-me. O que disse?

— Meu nome... — O menino olhou para Izunabi. — É Kurapika.

O homem sorriu.

— Prazer em conhecê-lo, Kurapika. Quer ser meu discípulo?

A criança piscou. Voltou sua atenção para o sanduíche.

— Pode ser.

Kurapika provavelmente se arrependeu de sua decisão. Izunabi era um mestre severo. Ele se tornara um Hunter há apenas alguns anos, mas já aprendera o suficiente para ensinar aos outros. Observava o menino de longe, atento a seus erros e acertos, à determinação que brilhava feroz em seu rosto. Uma criança comum não teria um olhar como aquele.

— Pelo que você luta? — perguntou durante um dos treinamentos.

— O quê? — Kurapika interrompeu a série de socos e chutes e secou o suor em sua testa.

— Pelo que você luta? — repetiu Izunabi.

Ele esperava muitas respostas diferentes. Um abaixar de cabeça, uma lágrima, até mesmo o silêncio. Surpreendeu-se quando o órfão disse:

— Não é da sua conta.

Que moleque insolente!

— Ora, ora... Eu estou treinando você não estou? Acho que tenho o direito de saber.

— Você é meu mestre. Não meu pai.

Muito insolente.

Passaram-se os meses. Izunabi e Kurapika viajavam juntos, explorando diversos cantos e cidades. Alcançaram um vilarejo desconhecido do mundo. Era um lugarzinho desprezível, escondido entre as montanhas. Havia terra para todo lado e nenhuma flor que decorasse a paisagem. Os dois caminhavam pela estrada quando o mestre viu.

— Cuidado, Kurapika. Há uma aranha venenosa bem ali. Este lugar deve estar infestado delas.

Izunabi deu alguns passos antes de perceber que o garoto não o seguia. Olhou para trás por cima do ombro e não teve palavras para conduzir o próprio pensamento quando o brilho dos olhos o alcançou. Eles estavam escarlates.

— Kurapika... — sussurrou o homem, abismado. — Você... é um Kuruta.

Ele ouvira a notícia dois anos atrás. Os Kurutas eram um clã que vivia na floresta, distante de tudo. Era como se morassem em um recanto bucólico descrito pelos mais inspirados poetas. Ninguém nunca os via, mas muitos conheciam a lenda. Quando um membro do clã sente uma emoção muito forte, como raiva ou medo, seus olhos incandescem. Os olhos de Kurapika incandesciam diante da aranha.

— Conte — pediu.

Os dois se sentaram na beira da estrada de terra. Kurapika não chorou, tampouco demonstrou qualquer emoção reconhecível. Narrou em voz baixa como era a vida no vilarejo. Contou sobre seus pais, sobre o ancião, sobre seu melhor amigo Pairo. Contou sobre Sheila, a mulher que conhecera por acaso durante uma de suas brincadeiras.

— Ela estava ferida. Tinha se perdido na floresta durante uma excursão. Eu e Pairo cuidamos dela. Sheila nos ensinou sobre um mundo que desconhecíamos. Foi com ela que aprendi a falar sua língua. Ela nos deu um livro sobre um Hunter, e tanto eu quanto Pairo nos apaixonamos pela história. Foi nesse momento que eu decidi que queria deixar o vilarejo e conhecer tudo o que me era negado. Eu fiz um teste para ganhar a autorização. Passei nele graças a Pairo. Arrumei minhas coisas, me despedi de meus pais e de Pairo e iniciei minha viagem... Algumas semanas depois, soube do massacre.

Izunabi ouviu tudo em silêncio. Ele conhecia essa parte da história. A Trupe Fantasma, um grupo de criminosos da pior espécie, invadira o vilarejo para roubar os olhos de seus moradores. O tom escarlate não sumia com a morte e era apreciado por muitas pessoas, como se fosse uma obra de arte. Os assassinos atiçaram o ódio de suas vítimas antes de decapitá-las. Arrancaram-lhe os olhos e os venderam no mercado negro.

— Eu decidi que ia treinar — continuou Kurapika. — Eu decidi me tornar um Hunter e caçar a Trupe Fantasma. Eu vou matar todos eles. A qualquer custo.

O Kuruta cerrou os punhos ao proferir sua promessa. Izunabi acreditou que as lágrimas não tardariam a vir, mas elas se recusaram a aparecer. Kurapika estava decidido a não chorar.

— Você não tem medo de morrer? — perguntou o mestre serenamente.

Olhos escarlates encararam-no.

— Eu não tenho medo de morrer. Meu único medo é de que meu ódio se esvaneça com o tempo.

Izunabi permaneceu em silêncio. Não sabia como responder àquele juramento tão profundo e sério. Uma criança não deveria sucumbir a tão cruel sina. Um menino, não. Mas talvez um homem... Desde que abandonara o vilarejo, Kurapika renegara a própria infância.

O mestre levantou-se. Sem emitir qualquer som, o discípulo o acompanhou.

 

— Correntes? — Izunabi ergueu as sobrancelhas.

— Sim — murmurou Kurapika, fitando suas mãos. — Quando eu descobri que sou um Materializador, esse foi o meu primeiro pensamento. Uma corrente. Uma corrente que pudesse prender as Aranhas ao inferno.

Izunabi não suspirou. Isso não era de seu feitio.

— Tem certeza de que é a eles que está acorrentando ao inferno?

— Você não sabe de nada! — explodiu o Kuruta, levando a mão ao peito. — Diz que entende, mas nunca sentiu uma dor como a minha! Por que não pode apenas calar a boca e me ajudar? Eu posso seguir esse caminho! Eu tenho de seguir!

O mestre aguardou até que seu discípulo recuperasse a calma, até que a chama dos olhos desaparecesse.

— Você só tem quinze anos. Vai morrer.

Kurapika empertigou-se.

— Não tenho medo de morrer.

Izunabi pegou um graveto no chão para atiçar a fogueira. Ao seu redor, os animais noturnos emitiam sons suaves. Uma luz prateada banhava a clareira em que eles se encontravam, jogando sobre o rosto de Kurapika uma coloração que parecia refletir sua tristeza.

— Tem razão — disse o mestre. — Existem coisas piores do que a morte. Você ainda acha que a vingança vai satisfazê-lo, Kurapika? Depois que matar todos os membros da Trupe Fantasma, se conseguir matar, acha que encontrará a paz?

O Kuruta fitou-o de soslaio, sombrio.

— Não fale como se me conhecesse.

— Sou seu mestre há dois anos — respondeu Izunabi, firme. — Goste você ou não, eu o conheço. E estou preocupado.

Kurapika meditou sobre aquelas palavras. Sentou-se diante de seu mestre e fitou a fogueira.

— O símbolo da Trupe Fantasma é uma aranha de doze patas. Cada uma representa um de seus membros. A cabeça é o líder. — Ele fez uma pequena pausa. O crepitar do fogo era o único som que se ouvia. Até os animais estavam quietos agora. — Meu ódio por esses assassinos é tão imenso, que até quando eu vejo uma aranha comum, até quando eu vejo a imagem de uma aranha comum, meus olhos se tornam escarlates. — Kurapika ergueu o rosto, encarando Izunabi. — Um ódio assim não desaparece com facilidade.

O mestre não respondeu. Deixou que aquelas palavras tivessem seu impacto, espalhando-se pelo ar até deixarem-no pesado. Jogou o graveto que ainda segurava na fogueira. Ele foi consumido pelas chamas.

— Você já está acorrentado.

Kurapika levantou-se e se afastou de Izunabi.

 

A garota chorava diante dele. Um choro que carregava uma mágoa tão imensa que chegava a pesar em quem ouvia. Izunabi suspirou. Estendeu o braço lentamente e tocou os cabelos dela, tentando consolá-la. Um olhar escarlate o atingiu.

— Eu não posso mais... — Ela sussurrou. — Eu não posso...

Os olhos se fecharam, mas as lágrimas continuaram a cair. A mão de Izunabi passou dos cabelos ao rosto. As bochechas estavam quentes e rosadas, como se o fogo dos orbes ocultos as queimasse.

A lembrança veio no mesmo instante. Kurapika sentado diante dele, os olhos vibrando no mais belo tom de vermelho. O sentimento de vingança que o consumia mostrava-se a ruína da garota que chorava. Seus cabelos brilhavam sob a luz rubra da fogueira. Todo o seu ser brilhava.

— Eu sei — disse Izunabi, encostando o queixo em sua testa. — Eu sei.

 

Quando Izunabi acordou, a garota já havia partido. Ele se dirigiu ao riacho para lavar o rosto e mirou seu reflexo por alguns segundos. Aquela Hunter era parecida com ele. Até poderia ser sua filha. Tinha um espírito forte e selvagem e cabelos tão vermelhos quanto seus olhos incandescentes. Ele a encontrara muito depois de Kurapika partir. Às vezes, quando se distraía, perguntava-se qual seria a reação do ex-discípulo ao descobrir que não era o último Kuruta.

Izunabi sorriu. Ele mesmo não sabia que a garota era uma Kuruta até ela chorar diante dele, completamente exausta de toda a dor que sofrera.

— Esperança — murmurou, pegando um pouco de água nas mãos em forma de concha. — Eis um sentimento mais forte do que a raiva e o ódio.

Se ao menos Kurapika pudesse tê-la. Se ele pudesse pensar em como construir um novo caminho em vez de se lançar de corpo e alma no abismo da vingança. Izunabi imaginou-se na beira de um precipício, gritando. Mas sua voz não alcançava o discípulo.

 

Não havia choro desta vez, mas a mágoa ainda era intensa. Tão intensa, que foram os olhos de Izunabi que umedeceram. Ele segurava o Kuruta em seus braços, reconhecendo naquele rosto tão mudado a expressão corajosa da criança que treinava sozinha na floresta. Kurapika não se mexia. Estava morto. Izunavi sabia disso. Ele sabia porque os olhos estavam abertos. Porque os olhos estavam escarlates.

— Você nunca teve medo de morrer, não é?

Um soluço ameaçou escapar por sua garganta. Izunabi soltou o corpo, repousando-o no chão diante de si. Estendeu a mão trêmula e tocou as pálpebras inertes. A mesma luz daquela última noite banhava o Kuruta, mas era em Izunabi que a lua lançava sua coloração cheia de tristeza.

O mestre moveu os dedos, fechando os olhos de seu discípulo.


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