Camp Paradise - Interativa escrita por Aninha


Capítulo 16
Capítulo X: PARTE II - Descobertas, festa de aniversário e rebeldes


Notas iniciais do capítulo

Olá! Demorei, mas voltei haha
Então amores, quero desejar a tds um feliz natal e um ótimo ano novo!
RESUMO DO CAPÍTULO ANTERIOR:
Effy estava na Alemanha quando descobre (por meio da Enamor) que seu tio está tentando matá-la. Com ajuda do seu primo Alexander, ela foge rumo a Infrante com uma ficha na qual Enamor diz estar dados sobre ela.

Avisos:
1. Essa é a segunda parte do capítulo tendo apenas mais uma antes de finalizar e voltarmos ao Acampamento.

2. ATENÇÃO: Os personagens Missa, Mikaella, Kairo e Alexandre Deallor assim como o país Infrante são da autora @Maria_Misty da fic A Lei da Espada - Interativa e foram EMPRESTADOS para q eu os coloque nesta fic. Portanto, eles n são da minha autoria;
ALIÁS, leiam a fic dela q é maravilhosa.

3. As frases em alemão neste cap e no anterior foram feitas com base no google tradutor, então desculpa qualquer erro ahsuah e se alguém falar alemão e quiser ajudar, agradeço.

4. Estou de férias, mas vou viajar bastante, por isso não sei quando vou atualizar (que novidade), MAS como gosto de sofrer decidi que como presente de ano novo e desculpas pela demora vou postar UMA NOVA FIC.

5. O Corvo vai ser narrada pelo ponto de vista da Família da Effy. Recomendo que leiam pq vai ser bastante útil para vcs entenderem oq tá acontecendo hahaha Postarei a seguir ;)

Enfim.
Boa leitura!



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Elizabeth Naomi Manson Schneider, Effy

‘’A estrada para o inferno é feita de boas intenções’’.

— Autor desconhecido.

 (Sábado, madrugada).

Durante o looping finito causado pela anestesia e os medicamentos, tive vários sonhos. A maioria foi sem sentido: milhões de pontinhos coloridos correndo pela escuridão, cercando um ser diferente; uma pessoa com seu rosto mudando infinitas vezes... Mas um sonho no meio desse turbilhão de cores fez sentido e foi tão vivido que eu podia sentir o cheiro de pó sobre meu rosto suado. Um sonho que não me recordo, mas que sei do que tratava. Sei que tinha relação com o acampamento militar. Relação com um soldado e um potro. Com um bebê.

Foi por isso que acordei às quatro da manhã suada, encolhida na cama me sentindo totalmente perdida. Tive que piscar algumas vezes, dissipando o véu do sono, até conseguir enxergar graças à luz do abajur localizado no criado mudo ao lado da cama juntamente com as luzes dos postes e da lua que passavam pela fresta da cortina.

Respirei fundo algumas vezes, demorando longos segundos até sair do torpor e conseguir mexer meu corpo lentamente. Suspiro de alivio quando minhas pernas tensas esticam, mas logo fico em alerta quando vejo pelo canto do olho um vulto se aproximar. Quando a pessoa para do lado direito da cama, atrás de mim, e estica a mão direita sobre meu corpo em direção a minha cabeça eu congelo, sentindo meus músculos tencionarem não de medo, mas prestes a atacar.

Tudo acontece muito rápido. No tempo de um piscar lento dos olhos ou o soltar do ar de uma respiração calma eu me mexo e só tomo consciência dos meus atos quando pisco, clareando a mente. Estou sentada, tonta pelo movimento repentino, sentindo a pele da minha coxa repuxar e com a impressão de que meu braço esquerdo pesa uma tonelada. Minha mão esquerda segura um pulso fino contra as costas do dono do braço enquanto meu braço direito está ao redor do pescoço da pessoa, pressionando sua traqueia e seu corpo contra o meu.

A pessoa, que percebo num segundo piscar de olhos ser uma garota pelo menos dez centímetros menor que eu com cabelos pretos presos num coque volumoso o que me informa que seu cabelo é comprido, não grita, solta alguma exclamação surpresa ou tenta se soltar. Na verdade, ela se mantém imóvel sendo sua respiração acelerada o único indicio de que eu a assustei.

Franzo a testa confusa, me perguntando por que uma garota que eu nunca vi no Acampamento está no meu quarto e é neste momento que eu percebo que não estou em meu quarto no Chalé das Raposas. Reparo nas outras camas de solteiro com lençóis brancos e criados mudos de ferro e vidro que estão ao meu redor. Minha cama é a única ocupada. As paredes pintadas com um verde claro, as janelas altas e largas espaçadas com cortina creme ao redor. Esses dados me fazem reconhecer que não estou na Enfermaria do Acampamento, mas minha ficha só cai quando vejo a estátua de um falcão peregrino de bronze, posicionado como se tivesse localizado uma presa em pleno voo e estivesse no processo de fincar suas garras nela, no meio do jardim bem cuidado defronte a minha cama.

Lembranças do dia anterior invadem minha mente como flashes e aos poucos vou soltando lentamente o aperto ao redor da garota. Pergunto-me se eles deixaram a cortina da janela a minha frente aberta de forma proposital.

— Enfermeira Missa – falo finalmente tirando minhas mãos dela.

Missa pigarreia enquanto se afasta da cama, movimentando o ombro que eu por pouco não desloquei.

— Deveria ter esperado que alguém que levou um tiro poderia estar em choque e alerta – Missa fala num tom sério, mas consigo ouvir a raiva por trás da fachada. Ela se vira para mim lentamente para me encarar com seus olhos verdes muito claros. – Vim ver se você está com febre.

— Estou com sede, tontura e tive sonhos que mais pareceram alucinações – informo enquanto ela arruma meus travesseiros para que eu possa me encostar.

Missa assente, mas não fala. Encosto-me lentamente, fechando os olhos quando minha cabeça pousa nos travesseiros. Penso como estarão meus machucados, se estou com muitos hematomas. Minha cabeça parece pesar uma tonelada, meu corpo não muito mais leve que isso. Pergunto-me se Alexander e William estão bem. Antes que eu possa me desviar muito do momento, sinto algo gelado encostar na minha mão esquerda e abro os olhos lentamente para encontrar Missa me estendendo um copo d´água. Sem que eu percebe-se, ela havia dado a volta na cama.

— Obrigada – murmuro esticando meu braço que não está machucado. Tomo o liquido fresco rapidamente, sentindo minha língua e garganta agradecerem.

— Suas pupilas estão contraídas – a garota fala pegando o copo e pousando-o no criado mudo antes de pegar o termômetro. – Abra a boca.

Faço o que ela manda e me contraio quando Missa coloca sua mão esquerda na minha testa enquanto a outra segura minhas mãos frias. Franzo a testa levemente não por causa da dor, mas porque é neste momento que reparo nos machucados que ela tem nos pulsos, como se tivesse lutado contra algemas. Missa fala algo e se retira, mas estou com a cabeça muito longe para conseguir prestar atenção.

Penso no que uma garota de aparentemente 16 anos está fazendo no Palácio em vez de estar em casa com sua família, estudando para entrar numa faculdade de medicina e curtindo sua adolescência. Pergunto-me por qual motivo ela teria marcas de algemas no corpo e se assim como eu veio em direção a Aentriv em busca de proteção. Se assim como eu, Missa tem uma vida complicada, assombrada pelos fantasmas do passado e demônios do presente numa espécie de seita feita especialmente para enlouquecer.

Missa retorna do armário perto da sala da enfermeira chefe com alguns frascos, algodão e bandagens no exato momento em que o termômetro apita revelando que estou com quase quarenta graus de febre. Depois de me dar um comprimido, Missa me dá uma espécie de xarope cor de rosa e coloca uma toalha úmida na minha testa. Ela passa uma pomada com um cheiro forte de ervas no meu pescoço para desinchar minha traqueia de uma vez por todas e sumir com os hematomas.

— Eu não tinha reparado nos hematomas nos nós dos seus dedos – ela comenta.

Olho para a região apontada e penso que a primeira vez que fiz o machucado fora no sábado à tarde, quando soquei Joey Black, ainda no Acampamento. Depois daquilo soquei tantas pessoas que a pele não pode se recuperar.

— Estive ocupada socando alguns homens – falo dando de ombros.

Missa dá uma espécie de sorriso mínimo que dura um milésimo de segundo, tão rápido que não tenho certeza se não foi minha imaginação. Ela passa a mesma pomada que passou em meu queixo nos nós de ambas as minhas mãos antes de enfaixa-las sem apertar demais.

— Eu umedeci a gaze com arnica. Vou enfaixar seu pescoço e todas as regiões com hematomas também – aceno com a cabeça. – Vou ter que ver como estão seus machucados feitos à bala já que você está com febre – Missa fala primeiro focando sua atenção no meu braço.

Percebo que mesmo trabalhando de forma ágil, nos movimentos em que ela precisa girar os punhos ou mexe-los de forma mais rápida uma ruga de dor ou incomodo se forma entre suas sobrancelhas e Missa não é tão rápida como gostaria.

— Quantos anos têm? – pergunto.

Ela me lança um olhar mal humorado antes de responder de forma rude.

— 16.

— Por que está no Palácio?

— Porque você está no Palácio?

Sorrio sem mostrar os dentes.

— Porque meus parentes da Inglaterra me odeiam e tentaram me matar na Alemanha – digo simplesmente. – Eu poderia ter ido para a Noruega, mas na hora só consegui pensar em Infrante.

Missa trabalha alguns minutos em silêncio.

— De onde você é?

— De muitos lugares – digo depois de soltar uma lufada de ar pelo nariz. – Estava na Califórnia antes de vir para Inglaterra.

— Não disse que seus parentes ingleses te odeiam?

— Sim, mas não podiam fazer nada levando em consideração que foram eles que me chamaram. Eu acho.

— Você acha? – Missa pergunta me lançando um olhar que estava entre dó e um xingamento, se é que isso faz sentido.

— Sim. Mas então. Por que está no Palácio?

— Com certeza não é pra ser interrogada por você – ela responde rudemente.

— Certo. Então suponho que não posso perguntar sobre as marcas em seus pulsos? – falo mesmo sabendo que ela está com raiva e o fato de ela ter colocado o algodão com álcool mais úmido do que o necessário na ferida apenas comprova isso.

Para a infelicidade de Missa, eu nem pisco. Chega um momento da sua vida em que depois de tanto apanhar, a dor que antes parecia insuportável parece não surtir efeito de modo que aquele que quer te fazer sofrer precisa aumentar a intensidade. Portanto, não será um algodão embebido em álcool que me fará recuar.

— Isso não é da sua conta – Missa fala entre dentes.

Sorrio de lado.

— Pois bem. Se não quer conversar pode trazer minha mochila, por favor?

— Se isso fizer você calar a boca – ela fala antes de se abaixar e tirar o objeto debaixo da cama.

Abro o zíper do bolso menor e pego o walkie talkie preto com o braço livre, ligando-o na frequência desejada, mas desligo rapidamente lembrando-me de algo.

— Preciso de um telefone – falo.

Missa revira os olhos enquanto passa uma pomada antibacteriana em meu braço.

— Seu aparelho não funciona?

— Não para isso.

Lançando-me um olhar que claramente diz que ela gostava mais de mim quando eu estava desacordada, Missa pega o telefone com fio do criado mudo e o coloca ao meu lado, na cama. Ligo para a telefonista e peço que ela faça uma ligação internacional, me conectando com Lake Tahoe. No terceiro toque, velho Joe atende.

— Sim? – diz de forma rude.

— Joe, sou eu – falo hesitando antes de continuar uma vez que não sei em quem posso confiar. – Fui comprometida.

Ouço Joe bufar e soltar xingamentos.

— Soube que era suspeito seu tio vir da Alemanha só porque você saiu do Acampamento. Onde está?

— Desculpe, mas não posso dizer. Você entende?

— Claro, claro garota.

— A raposa? – pergunto me referindo a Tom.

— Veio pra cá assim que você saiu no carro e a deixou pra trás. Está aqui, tem feito companhia a Luke.

— A casa?

— Exatamente igual.

— Certo. Preste atenção no que vou falar Joe. Mandarei ainda hoje alguém buscar Luke e a Raposa. Fui comprometida então é questão de dias para irem até você. Por isso tem que sair daí.

— Não – velho Joe fala e fecho os olhos, suspirando. – Criança, eu estou aqui desde que nasci. Tenho setenta anos. Não vai ser agora que irei deixar minha casa, mesmo que seja por uma ameaça da sua Família. Sem contar que você é inteligente, eles sabem disso, portanto sabem que você não virá até mim. Mande alguém buscar Luke e a raposa, mas não me entregarei.

— Joe, não posso levar Luke. Não se isso significar deixar você sozinho – falo suspirando. – Sem contar que ele é mais feliz aí, nunca quis sair. Acho que ele preferirá morrer ao lado de Thomas do que em qualquer outro lugar. Mandarei alguém buscar a raposa. Mandarei a ficha desse alguém com antecedência.

— Estarei aguardando. Se cuide Elizabeth.

— Você também Joe. Por favor. Não posso perder você também.

Desligo o telefone com a sensação de que tem uma bola de pelos na minha garganta. Apesar de amar meu avô Heinz, de certa forma sempre me senti traída por ele. Ele me jogara na floresta e me prepara durante cinco anos para esse momento sem nunca falar sobre ele. Quando voltei ele tentou uma reaproximação, mas logo depois Thomas morreu e eu comecei a viajar pelo mundo. Mesmo assim, sempre que ia até sua casa passeávamos pela plantação de uvas e ele me dava conselhos, perguntava sobre coisas da floresta e me ensinava novos truques. Sem contar que era sempre ele quem contava a história da Família. A história sobre o Corvo. Mas por motivos óbvios, eu nunca mais participei da reunião depois que fiz cinco anos.

Velho Joe é diferente. Apesar de não sermos ligados por laços de sangue, Thomas, tanto sua vida quanto sua morte, e Luke nos ligaram. Ele sempre foi a figura do que um avô deveria ser. Velho, com uma barriga redonda, roupa de caça, cabelo grisalho e barba. Um carro velho, um cachorro, rugas. Ótimas histórias sobre o passado, refeições maravilhosas e uma casa aconchegante e quentinha. Presentes simples, mas de coração. Sem muito contato físico, mas afeto sendo demonstrado de outras formas.

E saber que por minha causa a vida de Joe corre perigo faz com que eu odeie ainda mais eu mesma e minha Família.

Volto à realidade quando Missa termina de enfaixar novamente meu braço, perguntando se ainda vou usar o telefone. Quando nego com um aceno de cabeça ela põem o aparelho de volta no lugar e se desloca para o outro lado da cama com os materiais necessários, tirando o cobertor de cima da minha perna direita.

Percebo que Missa lança ocasionalmente olhares rápidos em minha direção, provavelmente devido ao conteúdo da ligação. Suspiro e pisco, retomando meu autocontrole antes de ligar novamente o walkie talkie e apertar uma sequência de botões. Suspiro lentamente antes de falar:

— Corvo para Pirata. Câmbio.

Solto o botão enquanto Missa ergue as sobrancelhas e faz uma cara levemente debochada, mas não fala nada com seus olhos focados em minha coxa enquanto ela corta a bandagem para ver uma cicatriz claramente infeccionada.

— Isso está bem ruim – falo quando o aparelho em minha mão faz barulho.

— Aqui é a Pirata. Câmbio – Billie fala.

De repente, respirar parece difícil. Seguro com mais força o aparelho em minhas mãos e solto uma baforada de ar antes de responder.

— Fui comprometida. Estou segura, por enquanto. Localização: confidencial. Status: confidencial. Câmbio.

A linha fica muda quase um minuto inteiro.  Enquanto espero uma resposta, observo Missa passar vários algodões no ferimento da minha coxa, limpando-o e depois retirando o pus. Fico surpresa com o fato dela não fazer uma expressão de nojo quando o líquido espesso verde sai da minha perna quando eu mesma tenho que desviar o olhar.

— Certo – Billie finalmente fala. –Minha missão? Câmbio.

— Qual é o status do Acampamento? Câmbio.

— Sigrid chegou na quinta-feira e está de olhos nos campistas novatos. Dylan está começando de forma lenta a reformar algumas coisas no Acampamento e está vigiando os Líderes enquanto Khalid e eu estamos cuidando do restante. Câmbio.

— Sam? Câmbio.

— Tem estado ocupado, por isso quase nunca sai do Chalé Principal. Tenho tentado conexão com o exterior, mas você ainda é a única que entra em contato. Do mais, estamos conseguindo manter tudo nos trilhos. Câmbio.

— Certo. Primeiramente, preciso que você entre em contato com os Piratas para buscar Tom em Lake Tahoe, na casa do velho Joe, e leva-lo para o Acampamento. Não esqueça de enviar uma ficha do sujeito antes. Preciso que peça a Sigrid que entre em contato com os Solbakk para que eles disponham alguns homens para a segurança de Joe.

Faço uma pausa pensando do que mais preciso e enquanto isso observo Missa colocando pomadas e gazes em minha coxa. Levanto minha perna para facilitar o trabalho de enfaixar a mesma e a enfermeira me lança um olhar que gosto de acreditar que foi de gratidão.

— Dê um jeito de manter um olho em Alexander Schneider e William Manson. Quero sempre alguém na Biblioteca procurando dados históricos e toda informação possível sobre a minha Família e como resolver ou evitar a situação que se aproxima. Câmbio.

— Evitar? – Billie pergunta e parece surpresa. – Effy, você pensou no que está fazendo-

— Billie. Minha Família tentou me matar. Devo lembra-la que, apesar disso, eu só pedi pela segurança de três pessoas e uma delas nem possuí meu sangue? Então sim, evitar. Se alguém tem que estar com uma corda ao redor do pescoço esse alguém sou eu. Não quero transformar o Acampamento num matadouro.

— Sim senhora. Eu entendo. É só que, devo lembra-la, que você não está sozinha Elizabeth. Então não espere que deixaremos você morrer assistindo de braços cruzados. Câmbio.

Sorriu meio triste, meio feliz. Missa volta a cobrir a minha perna e se retira para guardar os materiais utilizados e jogar algumas coisas no lixo.

— Obrigada Billie... Intensifique as aulas de luta, escalada, atletismo... Bem, intensifique tudo. Domingo será o único dia em que os campistas estarão livres e apenas após o almoço. Ah! E mantenha uma ala na Enfermaria livre com uma equipe de confiança. Posso voltar a qualquer momento. Entendido? Câmbio.

— Sim senhora, já estou tomando as providências. Câmbio.

— Câmbio, desligo.

Desligo o walkie talkie quando Missa retorna com mais um comprimido e um copo d’água. Ela estende para mim dizendo que isso melhorará minha infecção e enquanto tomo a água, Missa coloca uma bolsa de soro no suporte e a agulha no meu braço esquerdo, prendendo a mesma com tiras de fita.

— Obrigada Missa – falo baixo, olhando a estatua.

— Só estou fazendo meu trabalho – ela diz seca.

— Talvez, mas se eu morresse provavelmente ninguém iria culpa-la. Então, obrigada por estar me ajudando de madrugada.

Missa solta um resmungo enquanto me dá as costas, mas por um momento eu posso vê-la com um tom rosado em suas bochechas claras, mas não posso afirmar que não foi uma alucinação uma fez que estou desacordada antes mesmo que ela dê três passos.

(Sábado, manhã).

Aos poucos sou acordada por sussurros de vozes que parecem vir de ambos os meus lados. Não sei ao certo o que falam, mas a voz feminina parece estar nervosa enquanto uma masculina, forte e séria, parece tentar acalma-la. Um terceiro membro, um jovem adulto, fala ocasionalmente mandando ambos calarem a boca.

— Vocês vão acorda-la – ele fala num tom levemente irritado. – Vê-la dormindo só está deixando você mais nervosa Mika, é melhor você ir tomar o desjejum com nossos pais.

— Não posso deixa-la! – a menina exclama num sussurro. – Ela está tão branca que é como se estivesse morta, não posso sair até ter certeza que está acordada.

— Effy já é branca ela só parece pior por causa dos cabelos escuros contra o travesseiro e os hematomas – o homem de tom sério fala. – Ela está viva Mika.

— Mas Missa falou que ela estava com a perna infeccionada e-

— Pelos céus, vocês vão acorda-la!

— Já acordaram, na verdade – falo abrindo uma fresta mínima dos meus olhos. – Alguém pode fechar as cortinas, por favor?

Aguardo as pesadas cortinas creme estarem fechadas para abrir totalmente meus olhos e observar a cena ao meu redor. A primeira pessoa que vejo é Mikaella Deallor, a princesa de Infrante e filha do meio do casal real. Mika tem 18 anos e tem quase um e oitenta de altura. Seus cabelos e olhos castanhos combinam bem com sua pele morena. O rosto da princesa é delicado e transborda preocupação.

Minha amiga está com as bochechas levemente coradas e um olhar de culpa, provavelmente por acreditar que me acordou.

— Eu falei pra vocês ficarem quietos – Alec fala ao meu lado direito, parado de pé, com os braços cruzados e encarando bravo os irmãos mais velhos.

Os cabelos castanhos ondulados arrepiados do príncipe parecem ainda mais bagunçados nesta manhã. Os olhos castanhos escuros passam do rosto dos irmãos até pousarem no meu e ele fazer uma careta.

— Você está péssima – ele diz.

Eu rio pelo nariz, abrindo meu primeiro sorriso verdadeiro.

— Alexandre! – Mika exclama ralhando com o irmão mais novo enquanto Kairo finalmente sai de perto das cortinas e entra em meu campo de visão.

— Pelo menos eu não estou usando um pingente dos Lobos – falo fazendo uma careta.

— Ei! – Kairo exclama se fazendo de ofendido.

Tento dar de ombros, mas só consigo fazer uma careta de dor, o que acaba com o clima de descontração.

— Como você está? – Mika pergunta se sentando do meu lado esquerdo e pousando sua mão sobre a minha.

— Já estive pior – falo. – E pra ser sincera, estou com fome.

Os irmãos riem enquanto eu sorrio.

— Estou falando sério! – exclamo.

— Vou chamar a enfermeira – Kairo fala arrumando seus óculos redondos e sorrindo minimamente para mim antes de virar as costas e caminhar em direção à sala no final da ala.

— Alguém pode me ajudar a sentar, por favor? – pergunto dobrando minha perna esquerda e sentando meu corpo com o braço direito.

— Vai com calma – Alec fala se apressando pra segurar meus ombros.

Mika arruma meus travesseiros de modo que eu possa ficar confortável enquanto Alexandre coloca um braço atrás das minhas costas, tira a coberta de cima das minhas pernas e com muito cuidado passa o braço direito por trás dos meus joelhos, me ajudando a ficar sentada contra os travesseiros.

— Água? – a princesa pergunta me estendo um copo cheio do conteúdo que eu aceito com um sorriso agradecido.

— Bom dia, soube que nossa paciente acordou – uma voz animada fala, mas só consigo ver a dona quando ela passa por trás de Mika e para com um sorriso ao pé da minha cama. – Sou a doutora Alice.

Alice é uma mulher de mais ou menos 30 anos, com cabelos castanhos na altura dos ombros, olhos azuis escuros e pele clara. Ela sorri calmamente para mim com as mãos enfiadas nos bolsos do jaleco branco comprido.

— Elizabeth, mas acho que você já sabe disso – falo.

Alice aumenta seu sorriso ao ponto de mostrar os dentes enquanto pega minha ficha no criado mudo e começa a mexer nos papéis, caminhando até parar ao lado de Alec.

— Alteza – ela fala de modo que Alexandre sente-se na cama do meu lado direito e dê espaço para a médica. – Então Elizabeth. Pode me contar o que houve? Seus ferimentos parecem ter sido feitos com espaços de tempo.

Suspiro e encaro a minha coberta, pensando no que falar. Mika pressiona levemente minha mão esquerda e me dá um sorriso calmante quando olho rapidamente em sua direção.

— Talvez devêssemos deixar as duas sozinhas – Kairo fala dando um passo para trás.

— Não, está tudo bem – falo me mexendo devagar de modo há subir um pouco mais na cama. – No sábado eu tive uma luta corpo a corpo com um homem. Eu o soquei, ele apertou meus braços e tentou me sufocar. Então ontem eu entrei em uma luta com muitos homens, atirei em muitos e levei três tiros. Resumidamente, isto.

Eu posso sentir que o clima de repente está tenso, por isso mantenho meus olhos baixos. Os levanto quando Mikaella aperta minha mão. Alice está com as sobrancelhas levantadas, mas logo volta a sua pose profissional. Kairo está mais sério que o normal, com os braços cruzados contra o peito. Mika segura minha mão esquerda com a sua enquanto rói as unhas da direita. Olho sobre o ombro de Alice Alec coçando os olhos.

— Certo... – Alice fala e percebo que não disse exatamente o que ela esperava ouvir.

— Doutora Alice, apenas cuide dos ferimentos da senhorita Elizabeth, por favor – o príncipe mais velho pede. – Preciso que ela receba alta o mais rápido possível.

— Sim, alteza – Alice fala colocando minha ficha no criado mudo e pegando o termômetro.

Mikaella levanta da minha cama e fica de pé ao lado do irmão mais velho, ao pé da cama, ambos aos sussurros. Logo Alec se junta a eles enquanto a médica mede minha temperatura e confere meus machucados.

— Seu hematoma no queixo desapareceu e os do pescoço também – Alice comenta retirando as gazes com arnica que Missa colocara à noite. – Os dos braços estão meio amarelados... Vou erguer sua camiseta para conferir o tiro de raspão, certo?

Aceno com a cabeça quando o termômetro apita informando que não estou com febre. Alice tira o soro do meu braço, informando que o mesmo fora trocado algumas vezes durante minhas horas de sono. Enquanto tomo uma dose de xarope para desinchar minha garganta de uma vez por todas e mais um coquetel de comprimidos, a médica passa uma pomada cicatrizante em minha cintura e me informa que me deixará sem curativos uma vez que devo ir tomar um banho assim que chegar ao meu quarto.

— O machucado está cicatrizando bem e levando em consideração que foi feito ontem, está em ótimo estado. Vou verificar sua coxa agora... Missa falou que estava com pus de madrugada, certo?

— Sim, eu tive febre alta devido a isso. Mas Missa conseguiu retirar praticamente todo o pus, acho.

Alice sorri minimamente enquanto levanta minha perna delicadamente e retira o curativo. Faço uma careta quando ela puxa a gaze que está em cima do machucado molhado, repuxando minha pele. Penso que mesmo sendo uma enfermeira provavelmente sem formação, Missa trabalhou melhor do que a médica, mesmo estando com raiva.

— Effy? – Kairo fala, desviando minha atenção do machucado avermelhado. – Precisarei me retirar agora, Alec ficará com você. Mika terá uma conversa com nossos pais sobre a situação, então tente não se preocupar, certo? Descanse e melhore.

— Ok, obrigada Kairo – falo sorrindo de forma a tentar tranquiliza-lo.

Alice me lança um rápido olhar quando chamo Kairo pelo nome, mas a ignoro. Mika se aproxima e beija minha testa, apertando minha mão.

— Não se preocupe com nada, ontem mesmo as empregadas começaram a fazer vestidos para você.

Eu rio.

— Mika, não era necessário...

— Você não pode andar nua pelo castelo, desculpe – ela diz rindo também. – Sem contar que você deve estar maravilhosa em meu aniversário!

Sorrio para minha amiga radiante com seus 18 anos recém-completos.

— Eu te daria parabéns agora, mas espero fazer isso quando estiver de pé e com um dos lindos vestidos – falo sorrindo para Mika que aperta minha mão antes de dizer seu último tchau e sair acompanhada de Kairo.

Depois de verificar minha perna, Alice dá a volta na cama e confere como está meu braço esquerdo. Alec volta a se sentar na cama ao meu lado me dando um sorriso encorajador. Alguns minutos mais tarde, depois de ter limpado meu braço e aplicado uma injenção na minha coxa direita, Alice informa que serei liberada.

— A senhorita irá precisar tomar alguns medicamentos ainda e deve retornar quando sentir algum desconforto ou quando achar necessário – a médica fala enquanto escreve em minha ficha. – Sua dama de companhia ficará encarregada dos horários dos remédios... Antes que eu me esqueça, a senhorita está proibida de usar salto, calças justas, camisas ou blusas com as mangas apertadas, assim como casacos.

— Ela não vai poder usar roupas? – Alec pergunta com uma sobrancelha arqueada.

Eu reviro os olhos e solto uma risada nasalada antes de responder.

— Posso usar saias, vestidos, camisetas regatas ou com as mangas largas, tênis... Existe uma infinidade de possibilidades Deallor.

É a vez de Alec revirar os olhos.

— Perdoe-me se não sou um estilista.

— Está perdoado – falo antes de voltar a minha atenção para Alice. – Algo mais?

— Sua recuperação está indo bem, mas evite andar muito ou ficar muito em pé. Se alimente bem, a senhorita perdeu muito sangue. Já enviei uma dieta especial para a cozinha e Missa conversou com suas damas de companhia. Lembre-se: qualquer coisa retorne imediatamente.

— Certo. Obrigada doutora Alice – falo enquanto a médica me ajuda a tirar as cobertas e colocar as pernas para fora da cama.

Ouço Alexandre levantar e ficar parado ao pé da cama, as mãos nos bolsos da bermuda marrom claro. Estou usando um short curto e uma camiseta, ambos de algodão branco. Alice me ajuda a colocar o chinelo e eu começo a me sentir péssima por estar dependo tanto dos outros. Quando levanto, minhas mãos segurando os cotovelos da médica e ela segurando os meus, peço a Alec que pegue minhas coisas que estão em baixo da cama e recuso veementemente a cadeira de rodas que uma enfermeira loira gordinha trás.

— Effy, não seja teimosa – Alec fala com uma das alças da minha mochila em seu ombro.

— Prefiro ter que me arrastar no chão do que andar nessa cadeira – falo e completo quando vejo os três ao meu redor abrirem a boca – e se eu consegui sair de uma casa cheia de seguranças, entrar num carro em fuga e pilotar um jato até aqui com esses ferimentos, eu consigo andar até o quarto.

Alec bufa e coça as bochechas antes de fazer um gesto com a cabeça para a enfermeira, dispensado a cadeira. Solto os braços da médica e suporto meu peso sozinha, sentindo minha coxa infeccionada pulsar.

Controle sua mente e essa controlará seu corpo. Você é mais forte do que a dor. Imagine que essa pulsação está percorrendo o caminho pela sua perna até o chão, deixando seu corpo e encontrando a terra sob seus pés.

Seguro a respiração quando ouço a voz de Enamor tão claramente que é como se ela estivesse na enfermaria comigo, parada ao meu lado. Depois de tantas horas em silêncio, eu estava começando a acreditar que imaginei todo o diálogo que tive com ela, alucinações causadas pela dor.

— Tudo bem? – Alec pergunta nervoso, dando um passo pra frente.

Levanto a mão direita em sua direção, fazendo sinal para que ele espere enquanto dou um passo para trás e me concentro em fazer o que Enamor mandou. Fecho os olhos para parar de enxergar os olhares ansiosos das pessoas ao meu redor. Foco em minha respiração e imagino que a pulsação na minha perna na verdade é o bater do coração de um beija-flor. Rápido, forte e constante. Então imagino que o beija-flor começou a descer pela minha perna em direção ao solo, às flores do chão.

Concentre-se em sua respiração — Enamor fala.

Sigo seu conselho, controlando o ar que sai rápido e inconstante dos meus pulmões, forçando-o a manter um ritmo. Para a minha surpresa, a dor parece diminuir. Abro os olhos e percebo que Alice, que me encara, arregala levemente os seus e dá um pequeno passo para trás. Pisco e dou um passo para frente, trocando o peso do meu corpo de perna. E então o pulsar que diminui para o coração de um velhinho dormindo, desaparece.

Pisco novamente antes de abrir um sorriso pequeno. Levanto os olhos para o rosto de Alice e a mesma solta lentamente à respiração que eu não sabia que ela estava segurando.

— Tudo certo? – Alec pergunta me olhando ansioso.

— Maravilhoso – falo sorrindo e estendendo a mão para que a enfermeira me entregue o roupão, o que ela faz.

Visto-me e ando tranquilamente até meu amigo, sorrindo entre a zombaria e a alegria. Alec retribui o sorriso e pergunta se podemos ir. Confirmo com a cabeça e olho uma última vez para trás para agradecer Alice.

— Peça para Missa me encontrar quando chegar, por favor – peço antes de me virar e caminhar em direção à saída.

Sem saber que aquela seria a última vez que meus olhos encontrariam os olhos azuis levemente assustados e surpresos de Alice com vida. Sem saber que pedir para ver Missa quando esta chegasse salvaria sua vida.

***

Depois que Alec me deixou em meu quarto, no primeiro andar, conheci Linda. A moça me lembrou Jane com sua calma e sorriso gentil, mas ao contrário da governanta da minha casa em Ottawa, Linda tem uns 35 anos, quase um e oitenta de altura, cabelos loiros cacheados presos num rabo de cavalo armado, olhos amendoados que combinam com seu tom de pele e lábios grossos.

 A moça que se apresenta como minha dama de companhia chefe, já havia preparado um banho de banheira para mim com sais relaxantes e com algumas plantas curativas. Linda me ajuda a tirar minhas roupas o que só aumenta a minha sensação de impotência, mas não posso reclamar uma vez que dobrar a coxa ou erguer meu braço dói, sem contar na minha cintura que dificulta o trabalho de me inclinar.

Tomo uma ducha rápida antes de entrar na banheira para evitar ficar boiando na minha própria sujeira. Assim que meu corpo sente o contato com a água morna, sinto meus músculos relaxarem, mas um medo de me afogar surge no canto da minha mente. Reprimo esse sentimento e permito que Linda sente-se as minhas costas, prendendo meu cabelo castanho ondulado num coque alto e colocando uma faixa branca em minha cabeça para evitar que os produtos que ela irá passar em meu rosto entrem em contato com o couro cabeludo.

Depois de colocar o álbum don’t smile at me num som ambiente, Linda começa a massagear a pele do meu rosto, passando produtos e os retirando com toalhas pequenas levemente úmidas. Permito-me acreditar por alguns minutos que estou segura e fecho meus olhos, relaxando sem nunca soltar as mãos do aperto firme na borda da banheira de mármore branco.

Algumas músicas depois, sento-me ereta de modo que a moça loira possa esfregar minhas costas e tronco, tomando cuidado com meus machucados, o que faz a simples tarefa de esfregar se parecer com jogar campo minado. Depois de esfregar meu corpo inteiro e me deixar com a sensação de estar limpa, Linda solta meu cabelo e, com uma jarra, molha o mesmo antes de lavá-lo com produtos diferentes.

Durante minha vida eu só tive uma pessoa que cuidou de mim, que me deu banho e me ajudou com atividades simples, mas que na época pareciam incrivelmente difíceis. Leona Manson me dava banho com chá de camomila para que eu pudesse relaxar antes de dormir. Penteava meus cabelos enquanto eu encarava seu reflexo gentil pelo espelho da penteadeira. Ajudava-me a vestir os sapatos, a abotoar os casacos. Colocava enfeites em meus cabelos, na época loiros. Cuidava de mim como se me amasse. Até que eu completei cinco anos e ela me largou na floresta.

É estranho eu me lembrar dessas coisas. Supostamente, crianças começam a ter memória de longo prazo por volta dos seis anos. É quando criam laços, estabelecem vínculos emocionais. Talvez, quando eu retornei aos 10 anos após a morte de Tommy, se eu permanecesse em casa como uma criança normal, teria criado laços com minha Família. Mesmo que estes não fossem muito carinhosos ou do lado emocional da força. Mas como passo a maior parte do tempo pulando de uma cidade para outra, de um país para outro, isso nunca aconteceu. É irônico eu precisar tomar minhas Happy Pills quando na verdade sinto que estou anestesiada, incapaz de sentir qualquer coisa naturalmente.

Na verdade, comecei a me relacionar com as pessoas depois que Jason me salvou. Naquela uma semana na Enfermaria, recebendo visitas diárias do Lobo e de Dylan, tive as conversas mais longas da minha vida. Meus laços com Mavis se fortaleceram quando ela entrou no Acampamento e nós nos víamos todos os dias durante dois meses. Foi assim com todos. É irônico pensar que os verões passados no Acampamento na companhia não somente dos meus amigos, mas também daqueles que conheci nos meus anos na floresta, sejam os responsáveis por eu estar aqui agora.

Tendo sofrido um atentado e prestes a sofrer muitos outros, apenas para que os responsáveis pelos meus laços afetivos não morram. Ou pelo menos não sofram.

Balanço a cabeça para afastar os pensamentos e Linda pergunta se está tudo bem.

— Sim... Só não estou acostumada a ter alguém que me dê banho – falo encarando o esmalte do meu pé que está sob a água.

— Imagino que deva ser estranho, mas saiba que está indo muito bem, senhorita Schneider – Linda fala e pelo seu tom sei que está sorrindo.

— Por favor, me chame de Elizabeth. Costuma dar banho em muitas pessoas, Linda?

A moça ri.

— Às vezes, em épocas como essa em que o castelo se enche de convidados. Geralmente fico com a função de cuidar das crianças por ser calma e delicada, mas na maioria dos casos os pequenos não estão com muita vontade de tomar banho.

Rio baixinho.

— Mikaella pediu que cuidasse de mim, devo acreditar que ela me considera uma criança?

— Oh, não! – Linda exclama, mas minha risada nasalada a impede de pensar que me ofendeu. – Como eu disse, sou muito delicada. Então a princesa Mikaella pediu que eu a ajudasse uma vez que está ferida, senhorita.

— Bom, agradeço Mika por isso.

Alguns minutos de silêncio se estendem e neles a dama de companhia termina de lavar e enxaguar meu cabelo. Linda se senta ao meu lado esquerdo e faz sinal para que eu relaxe, de modo que encosto minha cabeça na borda da banheira e encaro a pintura renascentista do teto. Após alguns minutos de silêncio, Linda pergunta:

— A senhorita chamou a princesa pelo nome... Ambas são amigas?

Com os olhos nos rostos das pinturas, tentando reconhecer quem é qual deus grego, respondo:

— Sim. Conheço a família real desde os meus 10 anos, mas eles já conheciam a minha Família muito antes disso e haviam ouvido falar de mim – respondo. – Somos amigos há anos e todos insistem para que eu os chame pelos nomes, então é automático fazê-lo na frente dos outros.

— Entendo... O rei e a rainha não se aborrecem?

Dou de ombros.

— Não. Eles gostam, acreditam que isso nos aproxima de alguma forma. Contanto que eu os chame pelos cargos que ocupam, está tudo bem. Trabalha no palácio há muito tempo, Linda?

— Quase dois anos – ela diz e posso sentir o orgulho em sua voz.

— Que ótimo – falo. – Por acaso conhece a enfermeira Missa?

Desvio os olhos do teto para analisar a reação dela a minha pergunta. Por algum motivo desconhecido, estou interessada em Missa. Talvez seja o fato dela ser nova demais para estar no palácio ou porque possui cicatrizes ao redor dos punhos... Sua forma de se fechar e responder de forma ríspida me lembrou um pouco eu mesma e penso se assim como eu, ela sente que está sozinha no mundo. Abandonada a própria sorte.

Linda não expressa nenhuma grande emoção. Apenas dá de ombros e arruma os frascos no armário sob a pia.

— Conheço a enfermeira Missa de vista, principalmente. Ela quase nunca fala com as pessoas, então não tenho algo útil para dizer. Sinto muito senhorita Elizabeth... Tinha alguma pergunta especifica que esperava que eu respondesse?

Balanço a cabeça em negação enquanto forço meus braços a levantarem o meu corpo e me seguro na mão de Linda para me levantar, me enrolando na toalha estendida por ela.

— Na verdade, não. Só fiquei surpresa com a pouca idade de Missa... Ela trabalha muito bem para alguém que não tem formação.

Linda assente enquanto segura minha mão e me ajuda a sair de dentro da banheira, enrolando meu cabelo quando sento na borda da mesma.

— A enfermeira Missa é boa no que faz. Ela não gosta de falar do passado, mas de acordo com a enfermeira chefe ela aprendeu tudo que sabe na vila em que morava.

Faço um som de concordância. Ficamos em silêncio pelos minutos em que levo para me secar e colocar um roupão macio. Sento-me defronte a penteadeira e enquanto Linda seca e penteia meu cabelo, deixo que minha mente divague.

Não lembro exatamente quando os irmãos e eu viramos amigos. Só lembro que aconteceu, naturalmente. Minha Família sempre vinha a Infrante para as festividades, principalmente meu avô Heinz com minha vó Fiorella, acompanhados dos meus primos. Meus pais e tios vinham com uma frequência maior devido ao fato de que suas visitas eram em sua maioria sobre negócios uma vez que os Deallor são uma família relativamente nova e aliada.

Minha Família tem como tradição levar as crianças em viagens quando estas completam sete anos, motivo pelo qual geralmente meu irmão e eu ficávamos com nossa mãe, vó Fiorella ou tia Norma e com três dos meus primos na Alemanha enquanto o restante dos membros da Família viajavam a residência das outras famílias. Quando Tommy completou sete anos já estava com indícios de depressão e perda da visão, por isso ele nunca deixou os terrenos dos Schneider.

Suspiro, lembrando que a primeira viagem que fiz com meus parentes, aos 10 anos, foi alguns meses após a morte de Thomas. Meus pais, meus avós, Matthew e Alexander vieram comigo para Infrante. Para ser sincera, minha Família não sabia lidar comigo. Após cinco anos na floresta eu havia mudado muito, por isso eles me tratavam como um bichinho exótico, calado que não sabia lidar com qualquer tipo de interação humana. Eu falava o mínimo possível, mais ouvindo como uma estatua entre os humanos do que qualquer coisa. Não que algo tenha mudado muito ao longo dos anos.

Na verdade, apesar do que minha Família tentou fazer parecer, o problema não era eu. Não era eu quem havia perdido a prática de interação ou algo assim. Eram eles que não sabiam lidar com o fato de que arruinaram a minha vida e a de Tommy por causa de uma tradição idiota e todas às vezes que olhavam para mim eram lembrados disso. Por isso, dirigiam a palavra a minha pessoa o mínimo possível e sem nunca me olhar.

Alexander costumava sentar ao meu lado e sussurrávamos nossas conversas enquanto as outras pessoas na sala dialogavam. Eu havia percebido, desde o momento em que passei pelas portas do Palácio, os olhares das três crianças sobre mim. É claro, eles olharam todos os presentes, mas seus olhos demoraram mais em mim e eu atribui isso ao fato de que aquela era a minha primeira vez em Infrante. Comecei a duvidar disso quando eles sempre me observavam, desviando os olhos rapidamente quando eu os olhava.

Perguntei a Alex o porquê disso e lembro que, ao contrário do que imaginei, meu primo não ficou confuso. Ele sabia exatamente sobre o que eu estava falando.

— Você é o Corvo. Uma lenda viva – ele disse.

Eu sempre soube que as histórias da minha Família eram amplamente divulgadas dentro das famílias aliadas, mas foi só naquele momento que entendi o que realmente significava esse ato. O olhar insistente, curioso dos irmãos Deallor me mostrou a minha importância dentro da minha Família e me preparou para as viagens que faria ao longo dos anos.

Apesar de serem representantes do país Infrante, a família real não viaja tanto quanto outros do mesmo ramo que conheço, por isso eles aproveitam ao máximo quando pessoas do exterior vem visita-los de modo que não demorou muito para que a princesa Mikaella, incentivada por sua mãe, me convidasse para brincar de boneca. Lembro-me do olhar tenso da minha mãe, como se temesse que os anos na floresta me fizessem atacar a menina delicada de cabelos cacheados e a comesse.

Ao longo dos anos, lembro-me de tomar café com tortas com Mika, falar sobre os rapazes da corte enquanto caminhávamos pelo jardim, assistir filmes de comédia romântica e ler os mesmo livros de romance ao mesmo tempo para que pudéssemos debater sobre eles. De ficar algumas tardes chuvosas na companhia de Kairo em sua sala, conversando sobre as outras famílias e diversos interesses em comum enquanto tomávamos café nos dias em que Mikaella ficava de mau humor por causa do tempo ou quando a princesa precisava cuidar dos seus afazeres e eu conseguia convencer o futuro rei a sair comigo para jogar tênis.

Porém, sempre fui mais próxima de Alec. Acho que devido ao fato de ambos termos a mesma idade e gostos relativamente parecidos. Alexandre e eu passávamos muito tempo na sala de lutas, aprimorando nossas técnicas de combate, aprendo algumas novas, cercados de soldados e ouvindo os gritos do capitão para que fossemos mais rápidos. Sempre conversamos muito sobre as minhas viagens, minha vida ou do Acampamento, o qual Alec nunca pode ir, ao contrário dos irmãos.

Sou arrancada dos meus devaneios por uma batida na porta. Linda se adianta em direção à origem do som, abrindo a porta branca e mostrando uma garota baixinha, de olhos puxados e cabelos pretos lisos. Em seus braços, tecidos de diferentes cores e texturas que logo reconheço serem meus vestidos. Atrás dela, uma moça de estatura mediana loira com cabelos cacheados está segurando várias caixas.

— Entrem – Linda diz dando passagem e fechando a porta enquanto as moças colocam tudo o que carregavam no divã aos pés da cama de casal no centro do quarto.

Paro de observa-las pelo espelho da penteadeira e me viro na cadeira de modo a encara-las com uma expressão neutra. Linda para ao lado delas e fala:

— Senhorita, essa são Lucy e Vitória. Ambas ajudarão em tudo o que a senhorita precisar.

— Senhorita – elas falam em uníssimo fazendo uma reverencia.

Sorrio, inclinando a cabeça de lado.

— É um prazer conhece-las. Me chamem de Elizabeth.

— Sim senhorita Elizabeth – Lucy, a japonesa, fala. – Trouxemos algumas roupas e acessórios para a senhorita. A princesa Mikaella e o príncipe Alexandre pediram para informar que estão esperando a senhorita para o desjejum.

— Fizemos vestimentas conforme as instruções da doutora Alice – Vitória completa.

— Parece ótimo para mim – falo com meus olhos sobre o amontoado de roupas.

Linda fala para Vitória colocar curativos em meus machucados enquanto Lucy fica encarregada de arrumar meu cabelo, deixando claro quem é a chefe. As meninas trabalham de forma sincronizada e ágil, não fazendo perguntas e me deixando confortável com o silêncio.

Assim que termina de fazer os curativos, Vitória foca em disfarçar meus hematomas com maquiagem enquanto Lucy passa algo leve em meu rosto e Linda coloca minhas roupas no closet, separando um vestido longo de tecido fresco, com mangas largas na altura do cotovelo e uma fenda na perna esquerda. O tecido rosa claro é estampado com lírios num tom coral e azul, com folhas verdes. O decote em V é discreto e os botões na parte de cima somados a forma justa na cintura e o cinto marrom dão a entender que eu estou com uma camisa e uma saia com as mesmas estampas.

Depois de me ajudarem a me vestir, Lucy arruma meu cabelo em cachos soltos de uma forma que pareçam despojados enquanto Linda coloca uma sandália marrom clara nos meus pés que são tão baixas e confortáveis que me deixam com a sensação de que estou descalça. Vitória se aproxima com uma caixa de joias me permitindo escolher uma gargantilha marrom trançada com o pingente de uma ancora, meu colar com pingente de Raposa, pulseiras, brincos e anéis.

Quando as meninas estão satisfeitas com o trabalho feito sorriem para mim. Levanto-me negando a ajuda e caminho até o espelho do quarto, agradecendo pelo trabalho bem feito. Lucy e Linda se despedem de mim enquanto Vitória me espera ao lado da porta. Estou prestes a sair quando Enamor fala:

— Esteja preparada. Mantenha suas coisas com você.

Correndo o risco de soar paranoica, pergunto a Vitória se ela irá me acompanhar ao longo do dia, pedindo que ela carregue minha mochila após a confirmação.

— Vou me sentir mais segura em saber que minhas coisas estarão perto de mim – falo quando saímos do quarto.

— É totalmente compreensível, senhorita – ela fala me dando um sorriso sincero.

Vitória me acompanha num silencio confortável até a sala das refeições, mas antes que eu esteja muito perto da porta, a loira fala:

— A senhorita não se importa com o fato de que devo acompanha-la ao longo do dia? –pela sua voz sou informada da sua timidez e insegurança.

— Está tudo bem – falo sorrindo para ela. – Não é minha primeira vez no Palácio, estou acostumada. Só espero não entedia-la com meus assuntos.

Vitória sorri.

— Me interesso por todo assunto que possa me acrescentar algo.

Olho para Vitória sorrindo, pensando em Dominique Lee Underwood e Ártemis Gordon Bertinnelle, duas novatas do Acampamento. A primeira calma e positiva, a segunda estudiosa e interessada em adquirir conhecimento. Penso que talvez elas gostassem de Vitória.

— A única coisa que não podem tirar de você é seu conhecimento – falo antes de entrar na sala em que Mika e Alec me esperam.

Vitória, assim como eu, faz uma reverencia enquanto Alec e Mika se levantam.

— Desculpe Effy, mas nossos pais e Kairo já comeram – Mika me informa fazendo sinal para que eu me sente.

— Está tudo bem – falo sorrindo calmamente. – Com o tanto que demorei não estou surpresa.

Mikaella sorri enquanto Alec faz um sinal para que sejamos servidos.

— Mamãe está nos esperando no Salão das Mulheres – minha amiga informa. – Está ansiosa para conversar com você.

— Por piores que sejam as razões que trouxeram você aqui, todos sentimos sua falta – Alec fala enchendo seu copo de suco. – Você nos abandonou desde que entrou no Acampamento.

— Isso não é verdade! – exclamo em minha defesa enquanto Mika coloca café em minha xícara, apesar dos meus protestos. – Esses últimos anos tem sido mais complicados com o normal.

— Alguma relação com seus ferimentos? – ele pergunta antes do mordomo colocar um omelete em sua frente.

— Mais ou menos. Está meio que tudo relacionado.

— Mas não vamos falar disso agora! – Mika exclama. – Torta, Effy?

Minha barriga ronca me fazendo corar e os irmãos rirem. Revirando os olhos e sorrindo, aceno afirmativamente para a torta de banana com canela. Os irmãos e eu passamos os próximos minutos entre comer e conversar sobre assuntos leves, rindo. Por um momento, enquanto Mika fala animadamente sobre os preparativos para sua festa e Alec tira sarro apenas para não perder o habito, passo meus olhos de um para o outro, me sentindo feliz. Numa falsa sensação de segurança desejando que este momento dure para sempre.

Eu já deveria saber que, tendo uma Família como a minha, isso não iria acontecer.

***

Depois de um café da manhã falando sobre temas leves, com os irmãos perguntando se estou bem instalada e se preciso de algo, Mika e eu vamos ao encontro da Rainha enquanto Alec é convocado para uma reunião com os representantes do exército.

Vitória nos acompanha juntamente com Célia, a dama de companhia de Mika. O Salão das Mulheres é no térreo, assim como todos os cômodos destinados para o uso coletivo. Como o nome informa apenas as mulheres são permitidas no salão da Rainha, há menos que esta permita a entrada de algum homem – o que nunca aconteceu em todas às vezes que estive em Aentriv.

Uma vez que a festa de 18 anos da princesa Mikaella ocorrerá hoje à noite, convidados do mundo inteiro estão no Palácio de modo que é possível ouvir a conversa das mulheres mesmo com as portas fechadas. Porém, assim que os guardas abrem as portas e Mika adentra o cômodo o silencio se instala antes de várias cadeiras serem arrastadas e mulheres caminharem em direção à aniversariante.

Desviando-me dos corpos e acompanhada por Vitória, sigo em direção à Rainha que permanece sentada em sua mesa com sua dama de companhia. Sorrio para ela em retribuição ao seu sorriso enquanto a mesma se levanta e abre os braços.

— Elizabeth – ela fala me puxando com delicadeza antes mesmo que eu consiga fazer uma reverencia.

— Majestade – falo quando ela finaliza nosso abraço, mas matem as mãos sobre meus ombros enquanto eu cruzo as minhas mãos.

— Minha menina... – ela fala por meio de um suspiro. – O que aconteceu com você?

Dou um sorriso triste e solto um suspiro, mas antes que eu consiga responder, a Rainha Joanna faz um sinal para que eu me sente ao seu lado. Ao observar o rosto gentil e bonito da mulher sentada ao meu lado é possível ver de onde Mikaella puxou sua aparência. Mãe e filha são extremamente parecidas, tanto na aparência quanto na personalidade e provavelmente se não fosse pela diferença de idade seria possível dizer que ambas as mulheres são irmãs.

Eu não sei a história da Rainha. De onde ela veio ou o que fazia antes de se casar com o Rei de Infrante. Mas eu sei que o povo do país ama Joanna. Mesmo tendo o poder que tem, sendo quem é e morando onde mora, Joanna nunca deixou de ser gentil com as pessoas, desde dos mais ricos aos mais humildes e ensinou os seus filhos a fazerem o mesmo. Igual a Princesa Diana, casada com o homem que viria a se tornar o rei da Inglaterra, que outrora levava seus filhos a lugares simples e ‘’comuns’’ para que brincassem e conhecessem a vida dos ‘’plebeus’’, Joanna levou seus filhos para o mercado do centro da cidade, para as vilas, a praia... Mesmo sendo um país relativamente novo e do lado da fronteira, a Rainha levou seus filhos para fora dos muros do Palácio e lhe mostrou o máximo do mundo que podia.

Mesmo com todo o seu poder, com todas as pessoas do Palácio e quiçá, do país ao seu dispor, Joanna não esqueceu das suas raízes, sejam elas quais forem, e cuidou para que os filhos sejam humildes e gentis, mesmo tendo nascido em berços de ouro. Lembro-me de um inverno em que eu vim para Infrante e aprontei juntamente com os irmãos. Não lembro exatamente o que fizemos, mas lembro de Joanna brigando conosco no seu tom calmo de sempre, que parecia pior do que se ela estivesse gritando. Kairo, Mikaella, Alec e eu tivemos como punição limpar nossos quartos e a sala de convivência que utilizamos. E quando digo limpar não era somente tirar pó. Tínhamos que varrer, passar pano, guardar as coisas no lugar... Limpar mesmo e sem a ajuda de nenhum criado.

Lembro que ficamos reclamando no inicio, mas com o passar do tempo começamos a conversar enquanto trabalhávamos e até apreciar a tarefa, rindo ocasionalmente devido a companhia. Depois daquilo passamos a respeitar mais o trabalho duro dos empregados que faziam aquilo todos os dias para sobreviver. O ponto é que a Rainha de Infrante mandou que os filhos e a visita limpassem aquilo que utilizavam não apenas como forma de punição, mas também construção de caráter. Minha mãe, que é uma madame que vive às custas do marido e não está preocupada com nada que não seja fútil, teria um treco se lhe contasse que limpei meu quarto.

Encaro os olhos bondosos da Rainha pensando em como alguém que eu via uma vez no ano, mais ou menos, me fazia sentir mais amada e querida do que Leona fazia em meses. Suspiro e mordo o lábio antes de finalmente responder sua pergunta.

— Em respeito a vossa Majestade e sua família, por tudo que fizeram e estão fazendo por mim, acredito que devo lhe contar a verdade. Agradeço por terem me recebido ontem no estado em que estava sem fazerem perguntas e tomado as decisões para que eu estivesse melhor hoje, mas realmente não sei se foi o melhor a se fazer.

Joanna franze levemente as sobrancelhas, confusa, antes de perguntar:

— O que quer dizer com isso?

— Creio que a senhora e sua família, assim como todos neste Palácio, estão em perigo apenas pelo fato de eu estar aqui. Quem me atacou ontem... – faço uma pausa tomando coragem, desviando meu olhar para a mesa de vidro. – Foi minha Família.

Alguns segundos de silencio se seguem após a minha afirmação. Por fim, Joanna suspira antes de pigarrear.

— Bom, sinto que esta conversa precisa ser realizada num local mais reservado e vejo que está cansada demais para falar sobre isso no momento – ela fala pegando minha mão que pousa em meu colo, me fazendo olha-la. – Pode apenas me dar os nomes?

— Como assim? – pergunto confusa.

— Fui informada que seus machucados foram feitos em dias diferentes, o que me faz pensar que a ameaça é mais de uma. Preciso que me dê os nomes para que eu possa informar meu marido e possamos nos preparar.

— Entendo... Infelizmente acredito que estarão em perigo mesmo quando eu partir. Lhe darei os nomes e irei arrumar minhas coisas. É o melhor a se fazer.

— Elizabeth – Joanna fala colocando uma mão sobre meu queixo de modo que eu encare seu sorriso. – O melhor a se fazer é permanecer aqui. Você está muito cansada e machucada para seguir viagem, sem contar que Mikaella jamais a perdoaria se fosse embora antes da festa. Sem contar que sua Família estiver realmente atrás de você, seja lá por qual motivo, o melhor a se fazer é conseguir aliados.

— Acha que alguém neste Palácio vai querer seu meu aliado? – pergunto sorrindo, sem conseguir conter o deboche.

— Os Deallor são seus aliados Elizabeth, não da sua Família – Joanna responde sorrindo como se a inocente da história fosse eu. – Mas como eu disse, essa conversa precisa ser mais reservada.

Antes que eu possa responder, uma criada se aproxima falando que precisa da aprovação da Rainha para algo e que Mika está sendo requisitada. Ambas olham preocupadas para mim sabendo que mesmo com o Palácio cheio eu provavelmente irei ficar sozinha uma vez que socializar não é o meu forte.

— Não se preocupem – falo me levantando e fazendo um esforço para conter minha careta de dor. – Irei para meu quarto. Preciso descansar antes da grande festa.

Mika sorri animada antes de se adiantar para segurar minhas mãos nas suas.

— Estou tão feliz que esteja aqui Effy! Vou mandar que lhe chamem para que possamos nos arrumar juntas, como nos velhos tempos.

— Eu adoraria – respondo antes de abraça-la e fazer uma reverencia, olhando as duas Deallor saírem do Salão. – Vitória?

— O horário do próximo remédio se aproxima – a moça responde ficando ao meu lado.

— Imaginei – falo fazendo uma leve careta. – Na verdade, eu tenho meus próprios remédios pra tomar. O melhor é ir ao meu quarto.

Vitória confirma e caminhamos mais lentamente agora, devido ao incomodo em minha coxa, ao som da voz animada da minha dama de companhia que me faz algumas perguntas com base no que ouviu pelos corredores me distraindo levemente.

— Eu não sabia que era tão conhecida – falo sorrindo levemente enquanto subimos lentamente as escadas.

Vitória sorri constrangida.

— São poucos aqueles que retornam com uma certa frequência para o Palácio, menos ainda aqueles que o fazem para ver os príncipes e a princesa – ela fala dando de ombros. – No fim do dia, as damas de companhia costumam conversar sobre suas experiências na cozinha e ao longo dos dois anos que estou aqui ouvi com uma certa frequência o nome da senhorita.

Sorrio sem mostrar os dentes, concordando. Apesar de ser conhecida pela criadagem por motivos diferentes pelos quais eu sou conhecida pelas famílias, ser conhecida não me deixa muito confortável. Faz com que eu sinta que não há um lugar do mundo para o qual eu possa fugir e viver anonimamente. Apenas uma garota sozinha numa casa, provavelmente motivo de curiosidade e fofoca na pequena cidade ou vila que jamais chegará perto de saber quem realmente ela é.

Suspiro antes de finalmente entrar no meu quarto e encontrar Lucy sentada numa poltrona costurando algo. Ela se levanta assim que nos vê e faz uma reverencia, que eu dispenso dizendo ser um ato desnecessário. Então, ambas as moças me ajudam na tarefa de trocar meu vestido, joias e sapatos por um conjunto de short, camiseta e pantufas macias.

Enquanto Vitória tira minha maquiagem, Lucy massageia meu coro cabeludo, pescoço e ombros, me relaxando de toda a tensão, cansaço e dor. Depois que tomo um comprido antiflamatório e outro pra dor, peço minha mochila com o intuito de tomar minhas Happy Pills, mas minha mão para sobre o fecho do zíper quando Enamor retorna.

— Não faça isso. As pílulas não são para conter suas emoções, mas para inativar neurônios em seu cérebro tornando-a incapaz de sentir e entrar em contato comigo.

Franzo o ceio.

— O que quer dizer com isso? — penso. – Se for assim, minha Família tem que saber da sua existência.

— Está tudo na ficha — Enamor responde simplesmente.

Por um momento me pergunto do que ela está falando até me lembrar do arquivo que peguei na casa de Stephan há menos de 24 horas, o qual eu nem sequer abri.

— A senhorita está bem? – Lucy pergunta me arrancando do meu devaneio.

Olho para seu rosto e vejo uma preocupação genuína em seus olhos, o que me faz pensar novamente no fato de que uma pessoa que me conhece há menos de cinco horas se importa mais comigo do que minha mãe. Talvez seja ossos do oficio, talvez seja real. De qualquer forma, machuca.

— Sim, só estava pensando – falo simplesmente decidindo arriscar e não tomar minhas pílulas.

Devolvo minha mochila pensando que eu realmente preciso dormir e que estarei com a cabeça mais organizada quando acordar, portanto será melhor ler a ficha depois. Lucy me ajuda a levantar e subir na cama particularmente alta. Deito sobre o lençol egípcio, afundando minha cabeça cansada de tudo no travesseiro macio, desejando no fundo não acordar.

A ultima coisa que vejo é Vitória sorrindo calmamente enquanto me cobre, ouvindo as cortinas sendo fechadas por Lucy ao fundo. Então, eu simplesmente abro os olhos. Como se em vez de quase cinco horas dormindo eu tivesse apenas piscado. Abro os olhos sem resquício de sono ou cansaço, apesar de saber muito bem que não posso correr uma maratona. Ou correr, na verdade. Dependendo, trocar o andar pelo arrastar elegante – se é que isso existe.

Me espreguiço sentindo um leve repuxar no meu braço esquerdo. Suspiro fundo, me sentindo descansada e me sento lentamente na cama com Lucy se aproximando de mim com um sorriso doce.

— Como a senhorita está se sentindo? – ela pergunta estendo um copo d´água e um comprimido.

— Melhor – falo depois de me forçar a engolir a bolinha do de 5mmg.

Lucy sorri antes de pegar o copo vazio e ir abrir as cortinas, de modo que a luz da tarde entre no quarto. Ela me informa que são quase duas da tarde de modo que a família real já almoçou, optando por me deixar descansar.

— Vou buscar seu almoço – ela fala voltando para meu campo de visão com uma bandeja em mãos. – Pode ficar alguns minutos sozinha?

Sorrio em deboche.

— É claro. Pode me alcançar a mochila antes de ir?

Lucy assente depositando a bandeja numa das mesas do quarto, indo pegar minha mochila no closet e colocando ao meu lado da cama, depois arrumando os travesseiros para me deixar mais confortável. Agradeço e em poucos segundos estou finalmente sozinha.

A companhia da família real é maravilhosa e as damas de companhia são muito atenciosas, mas desde que Enamor me lembrou do arquivo eu só consigo pensar no seu conteúdo e sei muito bem que só poderei lê-lo sozinha.

Abro minha mochila e pego a pasta pesada, cheia de papéis com o grande carimbo vermelho escrito confidencial na capa. Suspirando e sentindo minhas mãos tremerem, fecho os olhos buscando ficar calma.

Você está pronta para isso, Elizabeth. Esse arquivo irá responder questionamentos que você nem imagina que tem.

Respirando fundo, abro meus olhos no mesmo segundo em que minhas mãos abrem a pasta, revelando folhas e mais folhas com meu nome, imagens, dados, exames, experiências... Desde o momento do meu nascimento quando fizeram o teste d´o Corvo até meses atrás.

Eu sempre soube que era monitorada, que graças a entidade que represento tenho treinamentos e missões diferenciadas das dos meus primos. Por isso não estranhei as fotos do meu nascimento com informações sobre o mesmo, a imagem da bacia com água e meu sangue cristalizado comprovando que sou o Corvo, assim com dados que informavam meu peso, tamanho e outras coisas. Não estranhei quando nas próximas páginas haviam informações parecidas até meus cinco anos, com fotos minha na propriedade da Família, na Alemanha, assim como meu desempenho nos testes e provas, no meu conhecimento. Nem mesmo as anotações que informam que aos três anos eu já tinha a estrutura corporal de um atleta de elite me deixaram minimamente surpresa.

No fundo, sempre soube que aquilo existia. Meu avô Heinz, Stephan e até mesmo meu pai sempre estavam com uma prancheta nos momentos que dividiam comigo, sempre fazendo anotações. O primeiro choque veio quando virei a página que informava meu peso e tamanho no dia do meu aniversário dos meus cinco anos e a foto que a acompanhava não era minha versão numa festa ou mesmo na floresta, estudando ou fazendo algo parecido como nas outras. Era uma foto minha aparentemente dormindo com uma bota de caminhada em meus pequenos pés, uma calça de tecido leve e uma camiseta regata. Meus cabelos um pouco abaixo dos ombros estavam presos num rabo de cavalo e era possível ver a mão da minha mãe tentando passar a manga de um casaco feito com o mesmo tecido das outras peças por um dos meus braços.

Foram com aquelas roupas que eu acordei na floresta, horas depois. Peguei a foto com as minhas mãos tremendo levemente e contra a luz era possível ver que algo estava escrito no verso, de modo que virei à fotografia onde pude ler, na caligrafia bonita do meu pai, a frase ‘’Elizabeth, 07/05. Ultima noite na propriedade Schneider’’. Com o ceio franzido, coloquei a fotografia na pasta e peguei a folha que a acompanhava com meus dados onde pude ler nas anotações que eu havia feito minha ultima refeição antes de ser sedada.

Largo a folha e encaro o vazio, tentando lembrar-me da primeira noite. O medo, o pânico e a confusão logo me dominaram. Como eu disse, não é normal que as crianças tenham memória de longo prazo tão jovens, mas o medo de estar num local desconhecido, sozinha somadas a confusão fizeram com que eu me lembrasse daquele momento como se tivesse sido ontem. Forçando mais minha memória até lembrar do que minha versão de cinco anos lembrava que tinha acontecido antes de ir a floresta e a única imagem que me veio era minha mãe sorrindo enquanto me secava após o banho.

Era cedo demais para dormir uma vez que havíamos acabado de jantar com o resto da Família e lembro de ter resmungado porque queria ir com Tommy e os outros ouvir as histórias de Heinz, mas Leona foi irredutível e me levou para tomar banho. Ela brincou tanto comigo, me enchendo de beijos e me fazendo rir que não me importei de não estar com meu irmão, mas resmunguei quando ela me deu a mamadeira dizendo que não queria dormir.

— Seja boazinha, meu amor – ela falou com sua voz doce, me pegando no colo e sentando na poltrona do quarto, mesmo eu estando apenas com a toalha molhada do banho. Ela mexia em meu cabelo enquanto eu mamava de modo que tinha dormido antes de chegar na metade da mamadeira.

Agora sabia que isso não tinha acontecido porque eu estava cansada, mas sim porque havia um sedativo no meu achocolatado. Que Leona não me vestira antes porque não teria como explicar as roupas de camuflagem que colocou em mim e seria um trabalho inútil me vestir com o pijama para logo em seguida ter que tirar. Pisquei meus olhos e percebi que grossas lágrimas escorriam pelas minhas bochechas, minha vista estava embaçada e eu tremia.

— Ela estava lá – falei com a foto em minhas mãos.

A mão de Leona com seu anel de casamento era reconhecível de longe.

Sim, estava.

— Como ela pode fazer isso comigo? Como pode fingir que me amava e que também se importava comigo enquanto eu amava sabendo que assim que eu dormisse iria me arrumar para ser largada no outro lado do oceano? – falei soluçando.

É como se Enamor suspirasse antes de responder.

Sendo sincera, isso é quase nada comparado com o que vem depois. Ou até mesmo antes.

Suspirando tentando me controlar e sabendo que tenho pouco tempo até Lucy ou uma das outras aparecerem, coloco a foto dentro da pasta tentando lidar com a decepção e volto a folear o documento.

Obviamente, Enamor está certa. A traição de Leona Manson é nada comparada a traição de Stephan ou meu pai. Fotos minhas na floresta – quando eles sempre disseram que minha localização era desconhecida – somadas a anotações do meu desempenho não me deixaram tão surpresa quanto as páginas que vem após os meus dez anos, quando eu retornei para ‘’casa’’. As coisas ficam piores após a morte de Tommy e me sinto burra por acreditar que toda aquela confusão, raiva, falta de memoria dos meses subsequentes era devido ao choque e ao luto.

De repente as peças começam a se encaixar na minha cabeça e eu percebo que quando fui ao gabinete do meu pai, em maio, e ele conversou comigo a conversa foi como um borrão. Eu me senti área e mais tarde, quando tentava repassar o dialogo na minha cabeça, tudo não passava de um borrão. Até hoje eu atribuía isso ao fato do conteúdo da conversa, mas agora algo me diz que-

Eu estava lá, não você – Enamor fala. — Albert me convocou. É por isso que você não lembra da conversa.

Para minha própria surpresa, saber disso não me surpreende. Eu deveria saber que algo assim iria acontecer. Com a Família que tenho nada é somente o que parece.

Depois de folhear a página diversas vezes, lendo e relendo, junto tudo e guardo dentro da minha mochila, encarando o teto por minutos a fio. As lágrimas não escorrem mais. Não estou triste ou surpresa. Estou com raiva. Raiva da minha Família. Raiva de mim.

Apesar de tudo, eu entendo o lado de Stephan. Com cinco filhos, sendo Clarice a única menina, ele tinha muita esperança em sua prole. Mesmo sendo o mais velho de três, Stephan não foi treinado para ser o herdeiro, mas ficou satisfeito quando Matthew nasceu e Heinz viu nele o potencial necessário. Charlie veio logo em seguida e tomou o posto de conselheiro enquanto Clarice fora deixada de lado por ter ‘’fracassado’’ no dever de ser o Corvo. Mas Stephan não desistiu. Na esperança de ter mais uma filha e que esta viesse ‘’abençoada’’, teve George que virou paraplégico depois de um acidente e por fim Alexander.

Porém, antes que ele pudesse engravidar Norma mais uma vez, meu pai teve meu irmão e eu. O Corvo na sua primeira tentativa, o que tornaria Thomas o herdeiro uma vez que os filhos daquele que tem o Corvo são considerados mais fortes. Stephan teve cinco filhos em cinco tentativas e seu irmão mais novo teve dois numa tentativa. Dois que tiraram o posto de todos os outros que os antecederam.

Portanto, sua raiva para comigo é compreensível e explica porque meus tios e primos, com exceção de Alex e George, não ficaram exatamente tristes quando a doença de Tommy foi descoberta, o que trouxe Matthew novamente para o jogo.

Mas eu não entendo as razões do meu pai. Graças a mim Albert quase foi pai do herdeiro e talvez ele culpe o problema de Thomas por ter lhe arrancado isso, mas descontar em mim? Não que eu esteja reclamando, prefiro saber que a pessoa vista como experiência sou eu e não Thomas, mas mesmo assim, isso não faz o menor sentido. Não explica como ou porque meu pai decidiu fritar meu cérebro, me congelar, me aquecer, me furar, injetar e extrair coisas do meu corpo.

— Enamor? Por que... Por que você está aqui?

Já disse, sou a ponte entre você e o Corvo.

— Como assim a ponte entre eu e o Corvo se eu sou o Corvo?

Enamor suspira.

Não. Você é Elizabeth Naomi Manson Schneider. Você nasceu com o poder D´o Corvo ou seja lá como chamam, mas você não é ele. Enfim. Se quer respostas de por que Albert fez o que fez, deve perguntar a ele porque eu sei muita coisa, mas não sei tudo.

Confusa e com o inicio de dor de cabeça suspiro e fecho os olhos, apertando a ponte do nariz quando a porta abre revelando Lucy com uma bandeja em mãos seguida por Vitória e uma enfermeira que não conheço.

— Está bem, senhorita? – Lucy pergunta colocando a bandeja sobre a mesa onde irei almoçar.

— Só com o inicio de uma dor de cabeça – falo jogando a coberta para o lado.

A enfermeira se aproxima pedindo licença antes de me examinar e constatar que não estou com febre e pareço mais corada.

— Após o almoço retornarei para colocarmos a senhorita no soro – ela fala. – Vai fazer efeito mais rápido que as pílulas.

Aceno com a cabeça e levanto com a ajuda de Vitória enquanto Lucy abre a porta para a enfermeira. Sento-me a mesa e coloco o pano sobre o colo no mesmo segundo em que Vitória ergue a tampa da bandeja revelando um prato com alface, brócolis e cenoura, macarrão com cogumelos e queijo, salmão assado com algumas sementes pretas que não identifico e uma salada de frutas com kiwi, morango, banana e maçã de sobremesa.

— Quantas pessoas vão comer comigo? – pergunto sorrindo enquanto pego meu garfo.

— O Palácio quer se certificar que a senhorita se recupere logo – Vitória fala sorrindo e faço sinal para que ela se sente a minha frente.

— Vamos lá, não pode me deixar comendo sozinha – falo insistindo.

Vitória lança um rápido olhar para Lucy antes de se sentar. Sorrio para ela e ofereço meu prato, mas a dama nega dizendo que já almoçou. Lucy abre as portas francesas que dão acesso a sacada de forma que a brisa de verão entre pelo quarto e nos refresque uma vez que a mesa está do lado da mesma.

Olho pela janela e vejo os jardins bem cuidados em estilo francês do Palácio assim como o Mar Negro trazendo a brisa com gosto de mar. Após uns minutos em silêncio em que eu como, Lucy arruma minha cama e Vitória torce as mãos, a ultima pergunta:

— Como é lá fora?

Franzo a testa, confusa e paro o garfo a caminho da boca, desviando os olhos da fonte em que um passarinho se banha para encarar Vitória que cora.

— Não faça um interrogatório a senhorita Elizabeth, Vitória! – Lucy exclama interpretando errado minha reação.

— Não, tudo bem – me apresso a falar abaixando o garfo. – Eu só fiquei confusa com a pergunta. O que quer dizer com lá fora?

Enquanto ela pensa eu volto a comer.

— Fora de Infrante – ela responde dando de ombros.

Franzo minha testa.

— Isso é muito aberto. Você tem que ser especifica Vitória porque não quero ser obrigada a responder que o mundo é imenso e cada lugar é único.

— Certo – a loira fala. – Eu não sei... Talvez a senhorita possa escolher algum lugar? Ah! A família real sempre fala sobre um tal de Acampamento... A senhorita sabe do que se trata?

Sorrio.

— Sim, eu sou a Líder dele – falo orgulhosa. Vitória sorri e se inclina para frente. – O Acampamento fica no Canadá, perto de Toronto e só é possível chegar até ele de trem. É cercado por montanhas tão altas que o topo delas têm neve mesmo no verão, a floresta com seus rios e cavernas é imensa, cheia de animais como os que representam as cinco Irmandades. Temos Chalés, vilas e uma biblioteca imensa.

Paro por um momento com meu olhar vago, lembrando do lugar que mais me sinto acolhida enquanto dou mais algumas garfadas.

— Parece um lugar maravilhoso – Vitória fala com um ar sonhador.

— E é. Eu o considero o paraíso na Terra.

— A senhorita falou algo sobre animais que representam as Irmandades?

— Sim, são cinco no total. A Raposa, de qual eu sou a Líder, o Lobo, Urso, Coruja e Búfalo. Durante a temporada nos selecionamos os novatos, que chamamos de Larvas, para as Irmandades e competimos entre nós pela Taça das Irmandades que garante a honra e a glória ao Chalé que a ganha e ao seu Líder o posto de Líder do Acampamento.

— Então sua Irmandade venceu na temporada passada e por isso a senhorita é Líder das Raposas e do Acampamento?

— Isso – falo sorrindo ao mesmo tempo em que alguém dá uma batida leve na porta e quando olhamos podemos ver Mika acompanhada por sua dama de companhia uma vez que o acesso para o corredor está aberto.

— Effy é a Líder do Acampamento desde os 13 anos – ela fala sorrindo e entrando.

Lucy e Vitória levantam como se tivessem levado um choque e fazem uma reverencia enquanto eu apenas aceno para que ela se aproxime e sorrio.

— Mika era da Irmandade Búfalo enquanto Kairo chegou ao posto de Líder dos Lobos – comento.

— Kairo sempre teve uma áurea de líder – Mika fala.

Aceno afirmativamente com a cabeça colocando os talheres em meu prato vazio e pegando a tigela com as frutas enquanto minha amiga senta ao meu lado.

— Como você está?

— Melhor, obrigada.

Ela assente.

— Meus pais querem falar com você.

— Imaginei – falo colocando algumas frutas na boca.

— Pensei que depois da reunião podíamos nos arrumar juntas, em meu quarto. Como nos velhos tempos.

Sorrio diante dessa perspectiva me agarrando nessa futura experiência prazerosa. Mikaella se levanta imediatamente e começa a dar ordens as criadas enquanto eu como calmamente. Apesar de não ser a futura herdeira do trono real e não gostar de comandar como Kairo, a princesa de Infrante sabe fazer as pessoas se mexerem para que seus projetos aconteçam.

— Lucy, chame uma enfermeira, por favor. Vitória e Célia, peguem tudo o que Elizabeth precisará para se arrumar e levem ao meu quarto – ela disse tocando um sininho que logo trouxe um mordomo que ficou encarregado de chamar mais criadas.

Eu observo tudo silenciosamente, me aquecendo pela luz do sol que entra no quarto enquanto mastigo, feliz por pela primeira vez em semanas não ser quem está ditando ordens aos quatro ventos. Quando eu deposito minha vasilha vazia na mesa, a mesma enfermeira de antes entra no quarto e espera que Linda e Vitória me ajudem a trocar o pijama por um vestido mais adequado, escovar os dentes e pentear os cabelos.

— Não é necessário me maquiar – falo saindo do banheiro. – Logo estarei no quarto de Mika para me arrumar para a festa, portanto é inútil me maquiar agora para tirarem tudo em menos de uma hora.

Apesar da cara de contrariada, Linda não argumenta e apenas volta ao closet para ajudar as outras. A enfermeira se aproxima e conecta o soro no meu antebraço esquerdo, pendurando o pacote com o liquido num suporte móvel, medindo minha temperatura logo em seguida e constatando que os curativos deverão ser refeitos logo que eu chegar aos aposentos de Mikaella.

Após mais alguns minutos com algumas pílulas e mulheres entrando e saindo do meu quarto, estou com Mika, Vitória e Célia caminhando pelos corredores do Palácio em direção ao terceiro andar e ao escritório do rei.

Assim que paramos na frente das portas duplas de madeira escura um dos guardas entra no aposento enquanto o outro nem sequer se mexe depois da típica reverencia. Logo estamos adentrando o aposento e eu faço uma reverencia graças ao fato de que Vitória carrega meu suporte com o soro, apesar dos meus protestos.

— Elizabeth – o rei fala se levantando e vindo em minha direção.

— Majestade.

O rei é um homem alto e imponente, uma figura que demonstra poder e segurança. Kairo é muito parecido com o pai sendo a pele em tom de oliva do último a maior diferença.

— É uma pena que tenhamos nos encontrado nessas circunstancias, mas minha família e eu estamos felizes em recebe-la – ele fala apertando minha mão no momento que as damas de companhia se retiram.

— Agradeço muito por isso, majestade. O senhor e sua família salvaram a minha vida.

O rei sorri enquanto Kairo, que estava de pé perto da sua mesa, adianta em nossa direção dizendo que talvez seja melhor eu sentar enquanto esperamos Alec e a rainha que não tardam a aparecer. Logo o rei está sentado em sua cadeira de couro impotente atrás de sua mesa e eu estou sentada a sua frente com a rainha ao meu lado. Alec está com os braços cruzados atrás do pai e uma expressão cansada em seu rosto após as horas de reunião, mas ele faz uma careta para mim demonstrando que está tudo bem.

Mika senta-se a mesa de Kairo com o futuro rei parado entre o pai e a irmã. Como sei que não estamos ali para falar frivolidades e que a família esperou quase um dia para ouvir minha história, abro a boca e vou direto ao ponto, omitindo as partes que ninguém além de mim mesma – e Enamor – precisam saber.

Conto a eles como Joey Black invadiu o Acampamento no sábado à tarde e todos os eventos que se sucederam a este fato – nossa luta, sua entrega aos Piratas, minha ida a Califórnia, a visita de Stephan finalizando com a informação de que ele tentou me matar e foi por isso que levei tiros e fugi para Infrante.

— Acredito que os Black estão se movendo para causar uma retaliação a morte de Joey uma vez que ela está ligada a mim e, portanto, a minha Família – falo finalizando. – Porém, uma vez que Stephan tentou me matar eu não sei exatamente em que pé estou. Não sei se tenho proteção, aliados ou se minha Família fará algo a respeito. Tentarei entrar em contato com Heinz em breve.

Um silencio pesado cai após os minutos do meu monologo. Mikaella está com uma cara horrorizada diante da capacidade que minha Família tem de acabar com a vida dos outros. Alec está com a cara fechada, braços cruzados sobre o peito e me encara, avaliando a situação. Kairo olha para o pai que batuca os dedos na mesa de carvalho, olhando o tampo da mesma sem de fato enxerga-la. Por fim, a rainha segura uma das minhas mãos enquanto eu mantenho minha expressão neutra.

— Elizabeth – Joanna fala com sua voz suave. – Eu nem sei como deve estar se sentindo diante das atitudes de sua própria Família... Eu sinto muito querida.

Eu sorrio de lado e sem me conter, levanto me afastando de sua expressão de pena. Meu movimento repentino tira todos de seus transes de modo que passam a me encarar enquanto dou a volta na minha cadeira e paro atrás da mesma com minhas mãos apoiados na parte superior do encosto.

— Está tudo bem – falo. – Na verdade, é irônico estarmos surpresos levando em consideração que eu sou o Corvo e todos aqui conhecem a lenda e o significado disso.

— De fato – o rei fala simplesmente, recebendo um olhar surpreso de Mika e sua mãe.

— Como já disse a Rainha, acredito que Infrante corre perigo apenas pelo fato de eu estar aqui uma vez que se minha Família de fato decidir me atacar, seus aliados deverão fazer o mesmo – falo.

— E eu repito que nós somos seus aliados e não de sua Família – Joanna fala.

Eu aceno, agradecida por suas palavras.

— O quer dizer com se minha Família e fato decidir me atacar? - Kairo pergunta.

— Eu ainda não sei se foi uma atitude isolada de Stephan ou algo acertado com o restante. Ele nunca gostou de mim, então não ficaria surpresa e para mim não faz sentido minha Família querer me matar uma vez que sou quem sou.

Kairo assente, pensativo.

— Independentemente disso, precisamos estar preparados para sermos atacados – Alec fala saindo de trás da cadeira do pai e se adiantando. – Sabe se tem mais aliados, Effy?

— Passei minha situação e ordens para Billie Pirate e até onde sei estas estão sendo cumpridas.

— Vamos esperar um sinal mais claro antes de contar com os Piratas – ele fala. – Está supondo que terá apoio de todas as famílias que estão no Acampamento?

— Não. Dylan está lá e não tenho certeza do que sabe, mas os Black com certeza não vão parar isso apenas porque namoro o agora herdeiro deles.

— O que é uma pena – Kairo fala.

— No que está pensando, Alexandre? – o rei pergunta quando Alec apoia as mãos em punho em sua mesa.

— Farei uma reunião com o capitão e o chefe da guarda agora mesmo. Precisamos conseguir mais aliados, por isso Kairo-

— Já estou trabalhando nisso – o mais velho responde mexendo na papelada de sua mesa enquanto Mika se levanta para ficar de pé ao meu lado.

— Por enquanto tudo que podemos fazer é nos prepararmos e agir normalmente – Joanna fala também se levantando. – Estamos com visitas, precisamos manter as aparências.

— É prudente deixar veículos e rotas de fuga preparados – falo. – Refúgios equipados, as damas de companhia avisadas assim como todo o pessoal que trabalha no Palácio. Uma vez que não podemos dizer aos visitantes o que está acontecendo, suas companhias têm que estar preparadas para leva-los ao refúgio mais próximo.

Todos assentem. O rei se levanta e nos dispensa com este gesto, pedindo que Alec chame um mordomo quando sair. Mika e eu fazemos uma reverencia, mas antes de me retirar falo:

— Agradeço o apoio, majestades.

— Mais vale um corvo na mão do que dois voando – o rei fala sério.

Aceno com minha expressão neutra e sigo Mikaella para o corredor.

— O comentário de papai foi rude – ela fala quando estamos descendo as escadas.

Sorrio.

— Talvez, mas não deixou de ser verdadeiro.

— O quer dizer com isso? – Mika pergunta confusa.

Suspiro me apoiando no corrimão. Vitória e Célia apareceram assim que saímos do escritório do rei de modo que não preciso me preocupar com segurar meu soro.

— Mika, você ouve as lendas das famílias desde sempre. Qual te assusta mais?

— A da sua Família – ela fala rapidamente.

— E por que?

— Bom, não é exatamente por causa das lendas, se fosse olhar por esse ângulo com certeza as dos Piratas dão mais medo. É mais pela junção das lendas com as tradições.

— Exatamente. Todas as famílias têm lendas e tradições. Mas sabe porque a lenda d´o Corvo é amplamente divulgada, mesmo nas famílias inimigas? Porque por mais orgulho que cada família tenha da sua história, mesmo as famílias consideradas mais sanguinárias não conseguem se imaginar mandando um dos seus para a floresta sozinho. Muito menos uma criança. É a junção da lenda com a tradição que faz a história d´o Corvo ser tão temida e respeitada.

‘’A figura d´o Corvo é respeitada não porque apresenta um agouro de morte, mas porque todos acreditam que uma pessoa abandonada na floresta por sua própria Família por anos, tendo que fazer de tudo para sobreviver não teme fazer nada. Não hesita diante de nada. A lenda, a tradição somadas ao fato de que são pouquíssimas as famílias que me conhecem, faz com que eu seja acima de tudo, temida. É por isso que mais vale um corvo na mão do que dois voando, apesar de que nunca há mais de um Corvo’’.

Ficamos o restante do trajeto até o quarto de Mika em silencio. Posso ver que minha amiga está pensativa quando entramos em seus aposentos e Vitória fala que preparará meu banho primeiro uma vez que eu tenho curativos, portanto demorarei mais.

— Como você conseguiu? – Mika pergunta olhando pela janela do seu quarto enquanto eu estou sentada num dos sofás.

— Conseguiu o que?

— Sobreviver na floresta.

— Eu fui treinada.

— Eu sei – ela fala finalmente se virando para mim. – Mesmo assim. Você estava na floresta, sozinha, confusa... Como passou da primeira noite? Não ficou com medo?

Sorrio, apesar de não haver graça.

— Eu passei cinco anos da mina vida na companhia da minha Família tendo refeições quentes cinco vezes ao dia, uma cama confortável para dormir e uma casa enorme com um jardim maior ainda. Mas eu nunca aproveitei nada daquilo. Algumas coisas porque para mim eram tão normais que só passei a dar valor quando tinha que caçar para comer ou dormir num saco térmico no chão. Outras porque enquanto meu irmãos e primos desfrutavam, eu estava seguindo meu cronograma sem nem saber o porquê daquilo. Sabe quando eu descobri que era o Corvo e consequentemente o porquê de tudo aquilo? Logo após a morte de Tommy quando comecei a visitar algumas famílias e as crianças me olhavam estranho, com medo.

‘’Eu passei cinco anos numa casa cercada de segredos e mentiras. Nunca me falaram porque eu não podia brincar com os outros, porque eu tinha que dormir na floresta e os outros não, porque eu não podia demonstrar minhas emoções e deveria controla-las enquanto Clarice chorava apenas porque sua boneca caiu no chão. Porque eu tinha que saber cinco idiomas quando Matthew mal falava alemão. Quando acordei na floresta, sozinha, o primeiro pensamento que tive foi de que tinha sido sequestrada, de que a casa tinha pego fogo, de que alguma coisa grave tinha acontecido porque a ideia de que minha própria mãe me largara ali era... Inaceitável. Depois de uma semana, quando achei a estrada e descobri que estava muito longe da Alemanha eu simplesmente soube. Soube que assim como na lenda eu havia sido largada na floresta, mas o pensamento de que eu era o Corvo nunca me ocorreu. Na minha cabeça, minha Família me odiava e era por isso que eu não podia ser criança como os outros. E na lenda, o Corvo é a figura mais importante da Família. Respeitada, adorada. Se eles me odiavam, obviamente não podia ser eu.’’

‘’Você perguntou como eu consegui. Simples. Mesmo com todo o treinamento eu jamais teria conseguido se não fosse por um motivo: na floresta eu era eu mesma. Sem regras, sem ordens, sem cronogramas. Apenas eu explorando, conhecendo paisagens, animais. A floresta foi o único lugar em que eu senti ser eu mesma. Sem julgamentos, sem Família. Livre. E vou ser sincera Mika. Eu havia esquecido dos Schneider, dos Manson e de toda essa droga antes mesmo de completar um mês cercada por árvores. Às vezes penso que preferiria que eles nunca tivessem aparecido para me buscar. Eu nunca saberia a merda de vida que Tommy levou. Ele não teria morrido como morreu. Mas então penso que podia ser ele no meu lugar, no pós aniversário de dez anos, quero dizer. E então agradeço por ele ter se afogado. ’’

Paro de falar quando ouço Mikaella soluçar. Ergo meus olhos da tatuagem símbolo da minha Família no meu antebraço esquerdo para encarar seus olhos castanhos claros vermelhos assim como seu nariz.

— Eu sinto muito Effy.

Sorrio.

— Não sinta. Aqueles cinco anos foram os mais felizes da minha vida. Provavelmente se Tommy estivesse comigo eu nunca teria voltado.

As lágrimas continuam a escorrer pelas bochechas da princesa, mas nada posso fazer para para-las. A verdade é uma coisa bela e terrível, e portanto, deve ser tratada com grande cautela. Não posso mentir sobre minha história mesmo que isso faça as pessoas se sentirem melhor com elas mesmas. Eu sou quem sou graças as experiências – literalmente –, pelas quais passei. Nenhuma mentira vai mudar isso. Enamor é a maior prova que mesmo as melhores mentiras acabam sendo revelas. Às vezes, pela mesma pessoa que contou a mesma falsa história milhares de vezes.

Levanto-me com a intenção de abraça-la, mesmo sentindo minhas pernas tremendo e minha vista escurecer. Atribuindo isso ao movimento repentino e acreditando que iria passar rapidamente, dou dois passos em sua direção sentindo a brisa do verão arrepiar minha pele de frio e meus joelhos parecendo gelatinas. A próxima coisa que sinto é o tapete macio contra minha bochecha e Mika gritando meu nome.

***

Um pano molhado com água gelada era passado em minha testa. O ambiente estava silencioso, sendo possível ouvir o barulho de água se mexendo não muito longe e duas respirações perto de mim. Devido aos eventos dos últimos dias, meu corpo logo se tenciona, a confusão dando lugar ao estado de alerta.

Você está em Infrante. Desmaiou devido a infecção na sua perna — Enamor me informa num ar levemente entediado.

— Isso tem quanto tempo? – pergunto mentalmente, como se falasse com a minha consciência.

— Uns vinte minutos. Colocaram você na cama, chamaram uma enfermeira que agora está tentando acordar você enquanto Vitória tenta se distrair arrumando suas coisas. Mika está no banho e os Piratas mandaram um sinal para você.

Com isso, abro meus olhos de supetão e agarro o punho fino que pertence a pessoa que imediatamente para de passar o pano em minha testa.

— Vamos sempre nos encontrar com você me atacando? – Missa pergunta mau humorada, tentando se soltar do meu aperto.

— Onde está? – pergunto soltando-a imediatamente ao me lembrar dos machucados que ela tem na região que eu aperto.

— Onde está o que? – Missa pergunta colocando o pano dentro de uma vasilha de prata e apertando levemente seu punho.

Antes que eu possa responder, porém, minha mochila começa a fazer barulho e Vitória a traz rapidamente para mim. Abro o zíper e pego meu walkie talkie onde posso ouvir a voz de Billie.

— Pirata para Corvo. Câmbio.

— Aqui é o Corvo – falo rapidamente. – Câmbio.

— Effy, finalmente! – ela exclama parecendo aliviada. – Estava quase desistindo de entrar em contato. Câmbio.

— Tive algumas complicações com um dos ferimentos – falo e recebo um olhar questionador de Missa. – Qual é o problema? Câmbio.

Após um minuto inteiro de silêncio, Billie aperta o botão, mas não fala imediatamente de modo que consigo ouvir sua respiração assim como a de outra pessoa.

— Fiz o que você mandou. Tom está aqui, Sigrid pediu que sua família proteja Joe... Effy... Quando entramos em contato com nossas famílias para fazer o que você mandou, eles nos passaram informações. Na verdade, estão mais para boatos. Enfim. Estão dizendo que seu tio tentou te matar.

Não sei se o silêncio que se seguiu era porque ambas esperavam uma confirmação dos boatos ou por qualquer outro motivo, mas como Billie não disse a palavra que finaliza sua hora na conversa, mantenho meu silêncio. Posso sentir a atmosfera ao meu redor pesar assim como os olhares de Missa e Vitória sobre mim.

— Effy... É verdade? Câmbio – e dessa vez é Sigrid quem fala.

— Primeira regra, Billie – falo me referindo ao fato de que ela deveria ter perguntado se eu estava num local seguro e com pessoas de confiança antes de fazer perguntas delicadas. – Mas sim. É verdade. Câmbio.

Vitória se mexe de forma incomodada, desviando os olhos para o vestido enquanto Missa não se move. A primeira tem os olhos arregalados, as mãos tremendo levemente enquanto Missa – que já sabia desse fato uma vez que estava comigo quando fiz a ligação para Billie naquela madrugada – não demonstra nenhum sentimento. Mais rápido do que eu esperava, a voz de Billie volta a soar pelo aparelho.

— Os Pirate e os Solbakk estão do seu lado Effy. Espero que saiba disso. A encomenda que enviei representa nossa fidelidade. Câmbio.

— Agradeço profundamente pelo apoio, Billie. Conversaremos mais sobre no futuro. Deixe tudo pronto, não pretendo demorar para retornar – falo pensando no que posso ou não falar para Billie sem ser olho no olho quando um pensamento cruza minha mente e por mais que tente reprimi-lo, não consigo. – Billie? Ele sabe? Câmbio.

Não preciso falar seu nome para que a Pirata saiba a quem me refiro. Billie suspira e posso ouvir Sigrid cochichar algo.

— Eu não sei Effy, realmente não sei. A família dele tem ligado com certa insistência, mas eu não sei sobre o que eles conversam. Dylan claramente ficou preocupado quando falei da nossa última conversa e está trabalhando bastante nos planos que temos para o Acampamento. É só isso que sei. Desculpe. Câm-

Antes que ela possa terminar, ouço um barulho de movimentação antes da linha ficar muda e Sigrid surgir falando:

— A família dele sabe que foi você quem invadiu a casa e deixou Joey lá – ela fala e de repente é como se o mundo tivesse entrado em câmera lenta. – Dylan comentou isso conosco, mas não parece estar inclinado a acreditar uma vez que os Black odeiam você desde sempre. Dylan está mais inclinado a acreditar em você no que na própria família-

— O que é uma pena uma vez que os Black estão certos – falo simplesmente, interrompendo-a. – Essas informações já são o suficiente, Sigrid. Obrigada. Câmbio, desligo.

Desligo o aparelho quando Célia e Mikaella saem do banheiro sendo que a última está enrolando num roupão com os cabelos molhados. Assim que me vê sentada, Mika sorri parecendo aliviada, mas antes que possa falar algo Missa pergunta:

— Era sobre isso que queria saber quando acordou? A encomenda que chegou quando estava desacordada? – aceno em confirmação e sua testa se franze ainda mais. – Como poderia saber?

Apenas dou de ombros.

— Você está pálida – Missa fala pegando minha mochila num claro gesto para que eu guarde o aparelho dentro dela. – A conversa não foi muito boa para você. Como está se sentindo?

Depois de falar que estou bem, tentando controlar o tremor na minha voz diante da perspectiva de Dylan saber que eu deixei a cabeça do seu irmão como presente para a senhora Black e que ele provavelmente me odeia. Não posso dizer a ele que não fui eu, mas Enamor. Como ele poderia acreditar se nem eu mesma entendo?

— ... a febre voltou devido a infecção na coxa que não está totalmente curada – volto a realidade com Missa falando enquanto arruma as coisas, sem me olhar. – Ela desmaiou por causa disso, mas o soro somado a pomada que irei passar após o banho ajudarão na recuperação.

— Ela vai poder ir à festa? – Mika pergunta preocupada enquanto senta defronte a penteadeira.

— Sim, mas se vossa alteza não se importar gostaria de estar junto caso algo aconteça.

— Claro, você é bem-vinda Missa.

Mikaella fala aquilo de forma tão natural que não percebe o impacto de suas palavras em Missa, mas esta não permite que sua carranca fique fora de ar por muito tempo. Me estendendo um comprimido e um copo d´água ela me encara e eu retribuo o seu olhar enquanto Vitória se aproxima para guardar minha mochila e depois me ajuda a levantar e caminhar até o banheiro.

— Eu quero ver a encomenda – falo enquanto ela me ajuda a tirar a roupa.

— Claro senhorita – Vitória fala sorrindo, mas percebo que o fato do meu tio ter tentado me matar paira no fundo da sua mente.

Vitória se retira enquanto a banheira enche e eu aguardo pacientemente, tentando não olhar para meus ferimentos. Ela retorna não muito tempo depois carregando uma caixa grande com um laço vermelho e dois furos nas laterais, fechando a porta antes de desligar a água. Pego a caixa e a apoio em meu colo, surpresa por seu tamanho e me pergunto se Billie ou Sigrid se lembraram de algo que disse há tempo sobre Mika. O conteúdo da caixa se resume em nada mais nada menos do que num gato branco com manchas marrom claras em seu pelo e com isso eu sei que uma delas se lembra do amor da princesa pelos gatos.

Sorriu olhando para o bichano que está dormindo provavelmente devido a um sedativo que os Piratas deram para ele. Sem me conter, passo a mão em seu pelo macio antes de tampar a caixa e com a ajuda de Vitória, que soltou uma exclamação animada quando viu o animal. No mesmo instante em que o laço é finalizado, Linda bate na porta pedindo para Vitória abrir e se apressar.

— Ela vai se atrasar! – Linda exclama entrando no banheiro depois de Vitória se retirar para colocar a caixa de volta ao quarto.

— A culpa não é da Vitória – falo. – Eu passei mal.

— Sinto muito por ouvir isso senhorita – Linda fala enquanto começa a esfregar as minhas costas. – Está melhor?

Depois da minha confirmação, Linda e Vitória começam a conversar sobre qual penteado e vestido devo usar ao mesmo tempo em que me esfregando, me ajudam a secar o corpo e depois passam cremes em toda a extensão da minha pele, me deixando com o cheiro doce de algo que não identifico, mas que gosto. Quando retornamos ao quarto encontramos Lucy e as outras damas de companhia de Mikaella que a ajudam a se arrumar.

Ouvir a conversa das damas sobre os guardas do Palácio me fez esquecer por uns momentos meus problemas enquanto Mika e eu riamos dos seus comentários, principalmente quando elas pediam nossa opinião.

— O que acha senhorita? – Vitória pergunta enquanto enrola meu cabelo. – O guarda Caleb é bonito ou apenas bem arrumado, como Linda não para de insistir?

Eu rio.

— Não sei, eu não conheço nenhum guarda Caleb.

— Não sabe o que está perdendo – Mika solta fazendo todas as damas e eu rirmos.

— Ok, a senhorita não conhece os guardas – Lucy, que está pintando minhas unhas, fala. – Então nos diga, qual é o seu tipo de homem?

A pergunta me faz rir de modo que Linda acaba passando batom em meus dentes e ralhando com as outras damas que aparentemente ‘’esqueceram sua função’’.

— Isso Effy, conte para nós! – Mika exclama animando as mulheres.

— Bom, eu namoro tem quase dois anos – falo e os murmúrios animados me fazem sorrir igual uma idiota apaixonada.

Ignorando o revirar de olhos da Missa ao fundo, que após passar uma pomada verde com cheiro forte de plantas em minha coxa se sentou num dos sofás, e o sentimento de que meu namoro está se desfazendo para a felicidade da senhora Black, começo a falar sobre Dylan enquanto as damas terminam de nos arrumar para a festa.

***

A festa estava sendo um sucesso. Convidados de todo o mundo estão presentes no salão ricamente decorado para o aniversário de 18 anos de Mikaella Deallor. Mika está com seus cabelos castanhos cacheados meio presos com a coroa dourada sobre a cabeça. Os olhos castanhos claros e a pele morena estão ótimos com a maquiagem dourada e a sandália de salto da mesma cor. Por fim, o vestido vermelho se destaca no meio da multidão com a saia lisa comprida movimentando-se de um jeito elegante conforme Mika anda, mas o destaque ficando realmente para a parte superior da roupa. Sem mangas, o tecido da mesma cor da saia cobre os seios e a barriga da princesa, sendo toda a parte superior, isto é, do pescoço a cintura, coberto por um tecido de um vermelho mais escuro que é fino de modo que é possível ver a pele da princesa sob as partes em que as pedras douradas e vermelhas não cobrem. As joias douradas em seus braços, dedos e orelhas apenas complementam e finalizam mostrando todo o poder dos Deallor.

Suspiro mais uma vez do meu canto, ao lado de uma das pilastras, e tomo um gole de champanhe da minha taça. Por mais que tenha tentado me enturmar e manter o sorriso, em parte para a felicidade de Mika e em parte porque é o meu dever como representante da minha Família, a pulsação da minha perna me distraí assim como os mil problemas em minha cabeça e a o ataque iminente. É claro que o fato das demais pessoas do salão me encararem como um alienígena, uma vez que o símbolo d´o Corvo está a mostra, não ajuda em nada no meu desconforto.

— Você está bem? – alguém pergunta parando ao meu lado.

Desvio meus olhos do grupo de mulheres rindo e jogando seus cabelos sobre o ombro na esperança de conseguir algum pretendente para encarar Alec com seu próprio copo de champanhe em mãos.

— Já estive melhor assim como já estive pior – digo sorrindo sem mostrar os dentes.

— Imagino que o fato de Missa ficar bufando e falando como essas festas são inúteis não ajuda.

— Não muito – concordo olhando para a enfermeira parada não muito longe com Vitória. – Como se conheceram?

— Troquei algumas palavras com ela quando fui visitar você na enfermaria. Mudando de assunto, seu jato está abastecido e pronto para uso. Tomei a liberdade de mandar limpá-lo e devo dizer que é uma surpresa que esteja de pé depois de derramar todo aquele sangue.

Dou de ombros, ignorando o fato de que apenas naquele encontro seria impossível Alexandre saber sobre a personalidade de Missa e a clara tentativa fracassada de mudar de assunto de maneira sutil.

— Você não imagina o quão profundas estão minhas olheiras.

— Por favor, me diga que você precisa sentar para que eu, como um cavalheiro, possa acompanha-la e fazer o mesmo – Kairo fala se aproximando.

Eu rio e confirmo com a cabeça.

— Se isso fizer os príncipes felizes.

— É por isso que você é minha pessoa preferida fora desses muros – Alec fala colocando minha taça vazia na bandeja de um garçom que passa e estendendo o braço para mim.

— Só fora desses muros? – pergunto falsamente emburrada, ignorando seu braço e aceitando o de Kairo.

— Não quero correr o risco de minha mãe ou Mika ouvirem – ele fala pegando delicadamente minha mão direita para enlaçar em seu braço.

— Claro, claro – falo ironicamente caminhando com um príncipe de cada lado e recebendo ainda mais olhares. Ótimo, realmente ótimo. – Mas voltando ao principal. O que fez o príncipe herdeiro largar o maravilhoso debate com os mexicanos para nos dar o prazer de sua companhia?

Kairo suspira.

— Estou cansado de falar de acordos, negócios e trabalho o tempo todo. Aproveitei o medo e respeito que eles têm por você para me livrar.

— Obrigada pela parte que me toca – falo irônica me sentando na cadeira puxada por ele. – Além de assustadora você admite que está me usando para se livrar de assuntos chatos e sentar.

Alec e Kairo riem, cada um sentado de um lado defronte à mesa redonda com a toalha de linho.

— Contra fatos não há argumentos – Alec fala aceitando duas taças de champanhe, uma para mim e outra para ele, enquanto Kairo perguntava das entradas que começaram a servidas.

— Contanto que ninguém venha me tirar para dançar, estou bem.

— Uma pena porque você está muito elegante hoje – Kairo fala passando os olhos castanhos pelo salão antes de pousa-los em mim.

Suspiro e faço cara de sofredora.

— Eu sei! Maldito sejam os alemães, suas armas e sede pela morte.

Passo as mãos pela minha saia preta que graças as várias camadas parece ser mais uma nuvem negra que me cobre até os pés em vez de uma simples saia. A parte superior é formada por uma renda preta com várias rosas trabalhadas com pequenas pedras espalhadas pelo tecido, sendo que nas partes em que não há rosas minha pele branca fica a mostra. As mangas compridas, assim como a saia cobre meus ferimentos sendo o decote em V, que vai até um pouco acima do umbigo, deixa parte do meu busto e seios à mostra. Meu cabelo escuro preso num coque trabalhado com folhas prateadas deixa meu pescoço comprido a mostra assim como a gargantilha, colar da Raposa e parte da minha tatuagem no busto.

Inconscientemente, pouso minha mão na tatuagem onde o desenho de um corvo negro sobrevoando em meu busto vai de um ombro a outro. A tatuagem em meu antebraço esquerdo, que é um corvo com ambas as asas para cima em pleno voo com as garras a mostra, está no antebraço de todos os membros da minha Família. Nós a ganhamos logo após completarmos nossa primeira missão, o que acontece por volta dos dez, onze anos. Porém, a tatuagem em meu busto é apenas minha e mostra a todos que eu sou O Corvo.

— Você sabe que é metade alemã, certo? – Kairo pergunta antes de morder um canapé.

— É por isso que afirmo com tanta segurança que somos sedentos por cadáveres.

— A senhorita não tinha dito morte? – Vitória pergunta se aproximando, o ar confuso.

— Morte implica em cadáveres – eu falo pegando um canapé e sorrindo. – E antes que pergunte, pela vigésima vez, eu estou bem.

Vitória sorri timidamente e acena com a cabeça.

— Fico feliz em ouvir isso – ela fala antes de voltar a companhia de Missa.

Alguns minutos mais tarde, quando Kairo, Alec e eu comemos alguns canapés e bebemos, conversando sobre minhas outras visitas a Infrante, Mika se junta a nós e senta à minha frente com um sorriso enorme, contagiando até mesmo a minha pessoa.

— Esse é um dos dias mais felizes da minha vida! – ela exclama. – Estou tão feliz que esteja aqui Effy, mesmo que sejam nas atuais circunstâncias.

— Também estou feliz – falo sorrindo. – O que me lembra que ainda não lhe dei parabéns e nem seu presente.

Mika bate palmas animadas enquanto faço sinal para que Vitória traga o presente. Assim que a caixa está em minhas mãos e os irmãos me olham curiosos, levanto-me e falo enquanto passo por Kairo para chegar até minha amiga.

— Não sei se o melhor momento para isso é agora por causa do barulho a da quantidade de gente, mas nem eu nem seu presente podemos esperar mais. Feliz aniversário Mika!

A princesa me lança um olhar entre o relutante e o curioso ao mesmo tempo que sorri quando lhe estendo a caixa. Mika desfaz o enorme laço e tira a tampa da caixa onde, para minha alegria, o gato está acordado e olhando minha amiga com grandes olhos esverdeados.

— Ele é lindo! – ela exclama abrindo um sorriso ainda maior e pegando o felino no colo que mia antes de colocar a pata no nariz de Mika, que ri.

— Um gato? – Kairo pergunta não muito feliz uma vez que não gosta de animais no geral.

Coloco uma mão em seu ombro antes de me sentar, dando tapinhas na região para consola-lo.

— Lide com isso assim como lidou no Acampamento – falo sorrindo.

Mika se levanta e vem me abraçar, agradecendo pelo presente enquanto o gato que não passa de um filhote mia satisfeito. Logo em seguida, Alec, Mika e um relutante Kairo começam a pensar em nomes enquanto eu faço carinho no bichano que está no meu colo.

— Alteza? – Vitória pergunta se aproximando com Missa em seus calcanhares e eu rio quando os três olham fazendo minha dama de companhia corar. – Princesa Mikaella. A Rainha está lhe chamando para a primeira dança.

Kairo suspira se levantando e estendendo o braço para Mika, sabendo que ele deverá dançar com ela. A princesa, que está de pé atrás da minha cadeira, se aproxima quando me levanto para fazer carinho no gato ainda sem nome, mas estou prestando atenção no guarda que veio o mais sutilmente possível falar com Alec que está parado ao meu lado. De repente, é como se o mundo entrasse em câmera lenta quando vejo pelas janelas os homens e mulheres usando farrapos passarem correndo pelo jardim, invadindo o Palácio carregando armas.

— Todo mundo pro chão! – grito em uníssimo com Alec, empurrando o gato para os braço de Mika antes de puxar ela e Missa para o chão comigo.

O minuto de confusão das pessoas perto de nós somado ao barulho da música e das conversas impede que todos os convidados nos ouçam e obedeçam. Tempo suficiente para os tiros e a gritaria começarem. O alarme do Palácio começa soar alto e constante, como uma sirene. Olho ao redor desesperada, com Missa e Mika sob meus braços. Alec não está muito diferente falando rapidamente com Kairo.

— Segure o gato – falo para Mika que aperta o animal contra o peito. – Missa e Vitória, protejam a princesa.

— Onde você vai? – Mika pergunta alto atraindo a atenção dos irmãos.

Me solto do seu aperto em meu punho e me levanto, ficando curvada em sua direção.

— Levem-na para o meu jato – falo antes de olhar os príncipes. – Alec, preciso de armas.

O garoto de 16 anos com cabelos castanhos ondulados e olhos castanhos escuros determinados como os de um tenente devem ser no momento da batalha. Alexandre logo está de pé chamando seus guardas e colocando ordem, pedindo armas. Logo algumas espadas e pistolas são entregues. Pego uma e entrego a Kairo.

— Proteja as meninas. Leve-as para o jato – falo antes de soltar totalmente a arma.

Kairo assente e faz sinal com a cabeça caminhando apressadamente para a saída com Vitória que puxa Mika pelo braço mesmo com os protestos da princesa, sendo seguidos por um grupo de guardas.

— Vá! – falo para Missa antes de atirar no pé de um homem que estava chegando perto demais.

— Me dê uma arma – ela fala simplesmente.

Atiro duas vezes acertando duas cabeças que estavam perto demais de alguns convidados que corriam para a saída antes de desviar meus olhos para encarar os olhos verdes claros da enfermeira que me encara com um misto de raiva, apreensão e desafio. Suspiro sabendo que não tenho tempo para avaliar sua capacidade e o máximo que posso fazer é ameaça-la.

— Se acertar um inocente eu acabo com você – falo antes de lhe entregar a penúltima pistola.

Missa me fuzila antes de correr em direção a saída que os Deallor e Vitória passaram a pouco, acertando a perna de um rebelde e o tronco de outro. Viro-me em direção a Alec que dita regras para os soldados enquanto o capitão faz o mesmo do lado de fora.

— Achem meus pais! – ele exclama. – E protejam o caminho até os refúgios e os jatos.

— Alec, eu preciso pilotar – falo. – Mas não posso deixa-lo sozinho.

— E você sabe que eu não vou abandonar o Palácio – ele fala antes de atirar em alguns rebeldes enquanto percorremos o caminho para o lado de fora. – Meu pai vai precisar de mim-

— Vivo e seguro – falo interrompendo-o.

— Eu não vou embora.

Antes que possa retrucar, um guarda se aproxima falando que o rei e a rainha estão seguros no refúgio assim como boa parte dos convidados. Os gritos diminuíram, mas os rebeldes com trapos ainda estão fazendo bagunça, atirando para tudo e quebrando coisas. Durante todo o tempo os guardas, Alec e eu estamos em movimento, atirando e lutando.

Meu braço esquerdo pesa toda vez que o choque do disparo percorre o caminho até meus ombros, mas a adrenalina impede que eu permaneça parada mesmo com minha perna e cintura incomodando.

— Aparentemente são dois grupos, um vestido farrapos e causando confusão e o outro muito bem preparado. Não sabemos se estão juntos, mas o segundo entrou pelo sul. Mataram todos pelo caminho – um soldado está falando quando saímos do salão.

— Foi na enfermaria que soaram o alarme, todos que estavam trabalhando no local estão mortos – um segundo fala e pela plaquinha em seu uniforme sei que ele é o famoso soldado Caleb.

Alec assente coçando as bochechas, frustrado. No corredor as coisas estão mais caóticas. Apesar de boa parte dos convidados já estarem nos refúgios assim como os funcionários, guardas e invasores batalham de modo que gritos, disparos, vidro estilhaçando e coisas quebradas fazem barulho nos cercando por todos os lados, corredor após corredor. A adrenalina corre pelo meu corpo e por alguns minutos esqueço todos os meus ferimentos, saindo do torpor quando Enamor fala:

Você está se distanciando da área dos jatos. Não adianta nada eles chegarem na pista se não sabem fazer aquilo funcionar.

— Alec! – exclamo ignorando a voz na minha cabeça quando um dos rebeldes que não está usando farrapos, mas faz parte do grupo dos bem equipados atira em um guarda passando pelo cerco ao nosso redor.

Porém, para a minha surpresa ele aponta a arma para mim. Portanto, sou obrigada a entrar num combate corpo a corpo quando o príncipe se vira e os guardas o puxam, tirando-o da linha de fogo ao mesmo tempo que apontam suas armas.

— Não atirem! – Alexandre ordena com ele mesmo apontando a arma.

Amaldiçoando meu vestido, enlaço minha perna direita no braço direito do homem puxando-o para baixo, dando uma cotovelada com meu braço direito em seu nariz fazendo sangue jorrar. O homem atira, acertando o chão no mesmo instante que minha perna solta seu braço dando uma joelhada em sua barriga, fazendo-o perder o ar e se inclinar para frente. Uso o momento para enlaçar minhas pernas em seu pescoço, dando um giro de modo que eu esteja por baixo, trazendo-o para o chão junto comigo, puxando seu braço direito numa posição desconfortável até que ele solte arma, sufocando graças o aperto das minhas coxas em sua garganta.

Quando o homem está imobilizado, dois dos guardas se aproximam para prendê-lo. Ao contrário do esperado, permaneço no chão.

— Apenas uma luta e já está acabada? – Alec pergunta se aproximando com um sorriso nervoso.

Solto um resmungo. Minha perna queima assim como meu braço esquerdo, ambos competindo para ver quem pulsa mais e pesa mais ao passo que a minha cintura parece rasgar. Me sinto uma inútil por não conseguir levantar sozinha, pensando em como vou arrastar Alec até o jato e colocá-lo no ar se não consigo levantar minha bunda do chão de mármore.

— Effy? – meu amigo pergunta parecendo preocupado enquanto me estende a mão.

— Não consigo levantar.

Sem falar nada, Alec me coloca sobre os ombros, fazendo com que meu braço direito segure minha perna na frente do seu corpo quando ele começa a andar na direção contrária a que íamos inicialmente.

— Me dê uma arma – falo e Alec me passa sua pistola.

Em menos de quinze minutos, quando eu atirei em pelo menos 20 homens, voltamos para o salão em que há poucos minutos a festa de aniversário de Mikaella ocorria e onde agora há apenas corpos com uma pitada de destruição. Cruzamos o salão e logo a brisa do verão nos toca me informando que estamos perto do jato e para minha alegria, os rebeldes parecem estar mais focados na parte interior do Palácio.

Esse pensamento mal cruza a minha mente quando ouço passos e vozes se aproximando antes de uns dez invasores surgirem no final do corredor. Alec e os guardas apressam o passo, mas as balas começam a voar ao nosso redor antes que cheguemos no jato.

Os guardas fazem cobertura enquanto Alec corre comigo e apesar de ser mais alto e forte do que eu, a tarefa não é tão rápida quanto seria se estivéssemos ambos sobre as pernas. Atiro algumas vezes, mas suspendo o ato quando os guardas fecham ainda mais a barreira, juntando-se com os guardas que já estavam ali, protegendo o jato. Provavelmente atraídos pelo barulho, Kairo e Missa aparecem na entrada da aeronave, descendo as escadas quando Alec me coloca no chão.

— Ajude Effy a entrar no jato – ele fala a Missa pegando a arma das mãos da garota que é mais baixa que nós dois.

Parecendo querer argumentar, mas lembrando que a) Alexandre é o príncipe b) tenente do exército aos 16 anos e c) ela é enfermeira antes de tudo, Missa me ajuda a subir as escadas e me arrastar até a cabine enquanto os irmãos ficam aos pés da escada atirando.

Passo por Mika que está encolhida numa das cadeiras com Vitória incrivelmente pálida ao seu lado e aperto o passo. Sento na poltrona e ligo o motor, apertando o botão para que todos apertem os cintos antes de colocar os fones.

— Faça-os entrar – falo apertando meu cinto e entrando em contato com a torre.

Sem que eu precise repetir, Missa dá meia volta e para no topo da escada. Me concentro no meu trabalho e começo a lentamente nos mover para trás, aumentando a velocidade quando um Alec raivoso e um Kairo estressado entram no jato, sendo que o ultimo apertou o botão responsável por encolher a escada e fechar a porta.

— Do que precisa? – Alec pergunta sentando na cadeira de copiloto quando nos coloco na pista.

— Consiga a liberação – falo entrando na pista e nos colocando na direção da América mesmo sem a permissão de decolar da torre, portanto, correndo o risco de ser abatida.

Usando toda sua influência, Alexandre consegue a permissão e informa que o Palácio está sendo atacado, pedindo reforços no exato momento em que eu acelero pela pista onde cinco rebeldes estão atirando em nossa direção, com os guardas ao longe temendo atirar e acertar o jato.  

Seus cortes de cabelo, roupas e movimento dos lábios fazem com que eu esqueça por um momento que estou prestes a atropela-los. Meu cérebro se desvia do perigo imediato, colocando-o em segundo plano quando em primeiro fica a função de reconhecer o que eles falam por meio da leitura labial.

— Herr Schneider will den Raben am Leben!

— Malditos alemães – resmungo antes de fazer o jato levantar voo.

Minutos depois a aeronave está na altura necessária para que Kairo consiga tirar o cinto e vir até a cabine com Missa nos calcanhares. Tiro os fones enquanto Alec continua no comando.

— Como vocês estão? – pergunto.

— Mika está nervosa, mas infelizmente todos estamos acostumados com os ataques. Dessa vez o grupo parecia estar procurando algo, então não foi extremamente complicado passar por eles.

— Eu deveria ter ido embora quando acordei pela manhã – falo tirando meu cinto e levantando, passando pelos dois em direção ao local onde Vitória e Mika estão sentadas.

A princesa está pálida, as mãos fazendo carinho no pelo macio do gato que repousa em seu colo. Os olhos cheio d´água de Mika fazem com que eu me sinta ainda mais culpada. Vitória está sentada ao lado dela segurando minha mochila no colo com uma mão e com a outra envolve uma das mãos de Mika, tentando acalma-la com palavras tranquilizadoras.

— O Rei e a Rainha estão bem – ela fala. – Tenho certeza disso.

— Eles estavam no refúgio antes de sairmos – falo pegando minha mochila e procurando o walkie talkie. – Eles estão bem. Não estavam atrás deles.

— Como sabe disso? – Missa pergunta.

— Havia dois grupos. Um era alemão e estava atrás de mim. Lutei com um deles e repassando agora, vários outros tentaram me acertar enquanto o outro parecia apenas querer causar pânico. A culpa do ataque de hoje é minha.

— Então quer dizer que enquanto estivermos com você temos um alvo nas costas? – Missa pergunta de modo a transparecer sua raiva.

— Missa! – Vitória exclama.

— Tudo bem – falo com o aparelho em mãos. – Missa está certa. Preciso deixar vocês em um local seguro. Longe de mim.

— Elizabeth, não comece! – Mika fala e para minha surpresa sua raiva está firme e transmite raiva. – Não vamos abandona-la. Sabíamos do risco de ter você por perto e mesmo assim decidimos mantê-la no Palácio e nos declaramos seus aliados. E aliados não fogem quando as coisas ficam ruins!

Suspiro.

— Mika está certa – Kairo fala num tom calmo, indo se sentar numa das poltronas. – E de qualquer forma, todos sabemos que o lugar mais seguro é ao seu lado.

Decidindo que posso discutir isso depois de definir nosso destino, ligo o aparelho e digito a linha de Sigrid.

— Cervo falando. Câmbio.

— Sigrid, o Palácio foi atacado. Preciso de um destino seguro para pousar com o jato – falo. – Os Deallor estão comigo. Câmbio.

— Destino final? Câmbio.

Hesito não olhando ninguém ao meu redor.

Leve-os para o Acampamento – Enamor fala. – Eles estarão seguros e poderão ajudar.

Suspiro antes de falar.

— Acampamento.

Sigrid demora quase três minutos e quando volta a falar, não sinto o alivio que imagino.

— Billie acabou de me informar que seu pai quer vê-la imediatamente. Sugiro que pouse em Toronto e mande os Deallor para cá e depois siga para Ottawa. Câmbio.

— Não vamos deixa-la ir enfrentar sua Família sozinha – Kairo fala.

— Não sabemos com toda a certeza se é apenas Stephan ou todos os membros, mas é melhor não arriscar – Mika concorda. – Vamos com você para Ottawa e depois para o Acampamento.

— Mas se for toda a minha Família, estarão em perigo me acompanhando uma vez que desde que entraram no jato a localização de vocês é desconhecida – falo.

— Vamos com você – Kairo fala irredutível.

Suspiro.

— Estamos indo para Ottawa. Deixe tudo preparado para irmos para o Acampamento – falo pelo walkie talkie. – Se não chegarmos até domingo à noite, vocês sabem o que fazer. Câmbio, desligo.

Suspirando, guardo o walkie talkie e retorno para a cabine com minha mochila em mãos, jogando-a perto da minha poltrona antes de sentar ao lado de Alec que me olha meio emburrado.

— Desculpe – falo colocando o cinto. – Sei que queria ficar lá.

Alexandre suspira pesaroso.

— A culpa não é sua e de qualquer forma, não posso ficar me lamentando. Devo ser útil onde precisarem de mim e no momento, você e meus irmãos precisam. Enfim, para onde vamos?

Dou um sorriso falsamente animado.

— Participar de uma calorosa reunião feita pela minha Família – falo ironicamente.


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Notas finais do capítulo

Tatuagem da Família da Effy: https://i.pinimg.com/564x/32/7b/9f/327b9f22f6cda17dd052f39dcd7b4bbe.jpg

Acredito que seja isso. Obrigada por lerem!
N esqueçam de comentar nem q seja pra me falar onde vão passar as festas de fim de ano hahah
XOXO,
Tia Mad.