À beira mar escrita por Jeniffer


Capítulo 1
Café com cinzas


Notas iniciais do capítulo

E assim, do nada, eu apareço com uma história nova.
Sem motivo nenhum, além do fato que eu precisava tirá-la da minha cabeça para poder escrever outras coisas.

Aproveitem. :)



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Caminhei até o refeitório com a lentidão e hesitação de quem tem poderosas cordas atadas a cada membro do seu corpo, constantemente puxando-o para trás. Minha cabeça girava com as milhares de palavras que Carol jogava para cima de mim, ricocheteando no meu crânio e me deixando com uma dor de cabeça insuportável. Meu corpo parecia pesar toneladas, cada osso um peso adicional, e parecia cada vez mais difícil arrastá-lo para frente. Eu me movia como um peso morto à deriva em um mar agitado.

— Você precisa fazer algo a respeito. – Carol repetia, talvez pela décima segunda vez, não tenho certeza, parei de contar quando passamos pela sala de recursos humanos. Sua voz, baixa o suficiente para que só eu a ouvisse; seus gestos, enfáticos o suficiente para que todos tentassem ouvir sua diminuta voz.

— Eu sei, Carol. Eu sei. – eu falava, mais baixo do que ela, despejando minhas pequenas palavras na xícara de café, esperando que o fato de engoli-las novamente me fizesse acreditar nelas.

— Hoje, Jane. Você precisa fazer algo ainda hoje. – ela colocou as mãos na cintura. Por um momento, me lembrei de minha mãe me dando uma bronca por ter adormecido e deixado as roupas no varal durante a chuva de verão que amenizou a temperatura naquela tarde de janeiro.

— Eu sei, Carol. Eu sei. – falei, sentando-me com ela na mesa mais afastada, aquela que tinha uma vista privilegiada da cidade aos nossos pés, como um castelo nas nuvens. – Você se importa de me deixar sozinha por alguns minutos? Eu preciso pensar.

— Jane, você precisa resolver essa situação e fugir não é uma solução. – sua voz ganhou um tom insuportavelmente repreendedor.

— Tudo bem. – levantei-me e peguei minha bolsa, afastando-me dela o mais rápido possível, desejando que ela não me seguisse.

Segui pelo corredor vazio, ouvindo o som dos meus saltos no piso como tiros em um seriado policial, até encontrar a saída de incêndio. Nenhum funcionário era permitido ali, mas ninguém realmente supervisionava isso, muito menos no horário de almoço. Sentei-me no segundo degrau, procurei meu maço de cigarros na bolsa e acendi um, protegendo-o do vento forte que fazia meus cabelos voarem. Tirei meus sapatos, coloquei meus óculos escuros e, com o copo de café em uma mão e o cigarro em outra, finalmente pude pensar.

Eu me lembrava do dia em que atendi a ligação do hospital, avisando que minha tia estava internada lá, em estado grave. Eu sabia o que tinha acontecido antes mesmo de desligar o telefone. Meu pai foi para o hospital, enquanto eu e minha mãe seguíamos para o apartamento de minha tia para buscar a filha dela, uma criatura pequena composta por um casaco grande demais para ela, uma boneca amassada, cabelos desgrenhados e muitas lágrimas, escondida na casa da vizinha. Eu mesma liguei para a polícia e forneci as fotos do marido dela, para que pudessem procurá-lo nos bares mais próximos.

“Homem nenhum vai encostar um dedo em mim deste jeito. Jamais. Eu nunca deixarei isso acontecer comigo”, foi a promessa que fiz a mim naquele dia, enquanto abraçava a pequena Nina e a fazia dormir no meu quarto. No entanto, aqui estou eu, escondida na saída de incêndio da empresa, com uma dor aguda em meu braço esquerdo no exato ponto em Peter me agarrara ontem à noite, além de uma echarpe insuportavelmente quente para o dia de hoje, escondendo o desenho perfeito de seus dedos em meu pescoço.

Carol estava certa, é claro. Eu precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa. Eu precisava fazer tudo o que não fiz ontem. Eu precisava apontar meu dedo na cara de Peter e dizer que ele era um maluco controlador e possessivo que precisava de tratamento psiquiátrico. Eu precisava trocar as chaves da porta e jogar todas as coisas dele pela janela, gritar até que ele saísse do meu apartamento, da minha vaga na garagem e da minha vida. Eu precisava reagir.

Joguei as cinzas do cigarro dentro do copo que mantinha meu café intocado, e então acendi outro, observando a cidade, tão aparentemente calma daquele ponto. Utilizei minha melhor qualidade profissional para analisar a minha situação, aproveitando a minha capacidade de visualizar as possibilidades e consequências de cada ato que me garantira sucesso em meu trabalho. Em todos os cenários que previ, nenhum deles envolvia Peter. Quando terminei meu cigarro, bebi o café em um único e longo gole, sentindo o gosto das cinzas em minha língua como se não fosse nada novo.

Pedi que Carol me levasse para casa no final do dia. Ela dirigia rápido demais e refreei a vontade de pedir que ela diminuísse a velocidade e prolongasse aquele momento de calmaria. Em compensação, ela não disse nada até finalmente chegarmos ao meu prédio. Respirei fundo e reuni a pouca coragem que eu tinha guardada no bolso e abri a porta do carro.

— Eu vou subir em cinco minutos, ok? – Carol falou, interrompendo-me. – Eu vou subir e ajudá-la com o que precisar. Você só tem cinco minutos, nem um segundo a mais.

— Chame a polícia, Carol. – falei, olhando para o nada.

— O que?

— Chame logo a polícia. Eu o conheço bem o suficiente para saber que ele não vai aceitar o que estou prestes a dizer. – puxei a echarpe com uma raiva que eu não tinha percebido estar carregando até agora. – Se ele foi capaz disto só porque eu fui ao aniversário da minha mãe sem ele, o que você acha que ele é capaz de fazer quando eu disser que estou terminando com ele?

— Você tem razão. – ela disse, procurando o seu celular. – Fique aqui até que eles cheguem, tudo bem?

Eu ouvi suas palavras, mas já estava fora do carro. Carol me chamou, abrindo a porta gritando para que eu voltasse para a segurança do carro, mas eu apenas continuei caminhando.

— Apartamento 407. – falei para ela, antes de entrar no prédio.

Quando saí do elevador, minhas pernas tremiam e meus olhos procuravam por rotas de fuga. Encontrei a porta do apartamento apenas encostada, e eu abri com muito cuidado, tentando calcular se eu teria tempo de correr de volta para o elevador antes que as portas se fechassem. Peter estava na sala, sorrindo para mim com um buquê de flores nas mãos. A mesa de centro decorada com velas e flores, pratos com uma comida que cheirava muito bem e um vinho acompanhado de duas taças.

— O que é isso? – sussurrei.

— Um pedido de desculpas. – ele disse, uma alegria quase idiota em sua voz. – Clichê, eu sei, mas é o melhor que eu podia fazer. Bem, o mínimo que eu podia fazer depois de...

— Vá embora. – eu falei, minha voz baixa, mas cheia de uma determinação que eu não conseguia identificar de onde vinha, interrompendo a frase dele.

— O que? – ele riu, como se não acreditasse que eu tivera a audácia de interrompê-lo. Ele odiava ser interrompido.

— Vá embora. Pegue todas as suas coisas e vá embora daqui. – eu tentei controlar o tremor que ameaçava destruir minha voz como um terremoto destrói uma casa. – Eu não quero vê-lo, não quero você perto de mim... nunca mais.

— Você está... Você está terminando comigo? – ele me olhava com a surpresa de quem ouvia uma língua nova pela primeira vez, ou até uma piada muito engraçada depois de uma tarde tediosa.

— Estou. – ergui minha cabeça, exibindo meus hematomas. – Eu já deveria ter terminado com você há muito tempo, Peter. Você é um maluco controlador e...

Peter virou a mesa em um segundo de pura e completa raiva, gritando como uma criatura enjaulada ansiando liberdade, o vinho escorrendo pelo chão como se as flores estivessem sangrando.

— Você não pode terminar comigo! – ele gritava. – É você quem fica por aí transando com outros homens, e eu não terminei com você! Quem você pensa que é, Jane?! Você não vai terminar comigo!

— Eu estava no aniversário da minha mãe, seu idiota! Você é quem criou essa ilusão de traição, não eu! – respondi, gritando também. Por um breve segundo me preocupei em estar assustando a senhora Claire do apartamento ao lado, mas logo deixei este pensamento de lado. Eu queria gritar, queria assustá-la. Queria que mais alguém neste prédio se sentisse tão assustado quanto eu me sentia perto de Peter.

— Você é uma mentirosa! – ele urrou, atravessando a sala em passos largos.

Eu havia errado em meus cálculos. A porta do elevador já havia se fechado e eu não consegui alcançar as escadas antes que Peter me agarrasse pelos cabelos e me jogasse no chão. Eu gritei, gritei tão alto quanto pude, até que ele tapou minha boca, seu corpo sobre o meu, forçando-me a ficar no chão. Peter era muito mais forte do que eu, e o fato de eu não ser uma pessoa violenta e não saber lutar não me ajudava muito. Pensei ter ouvido uma porta abrir e fechar, e eu amaldiçoei o vizinho que decidira abster-se daquela situação.

— Parado! – eu ouvi alguém gritar e então todo o peso de Peter foi retirado de cima de mim e eu respirei como dificuldade.

— Me solte, seu desgraçado! – eu ouvia Peter gritar, mas eu estava mais preocupada em tentar respirar.

— Você está bem, senhora? – alguém perguntou, ajudando-me a levantar. Quando finalmente consegui focar minha visão na pessoa, vi uma policial à minha frente, olhando-me de maneira preocupada. Outros dois policiais colocavam algemas em Peter, enquanto ele se debatia no chão. Carol apareceu nas escadas, ofegante pela corrida e veio até mim.

— Jane, você está bem? – eu me senti culpada pelas lágrimas que rolavam pelo seu rosto, então tentei exibir um sorriso fraco para acalmá-la.

— Estou, sim. Não se preocupe. – evitei olhar para Peter, mesmo sabendo que ele me fuzilava com seu olhar. – Vocês chegaram a tempo, obrigada.

— Nós nunca vamos nos separar, Jane! Você está me ouvindo?! Nunca! – Peter gritava, enquanto os policiais o forçavam a se afastar, descendo as escadas de um jeito desajeitado. – Eu nunca vou abandonar você!

Quando a voz dele finalmente desapareceu, eu desabei em uma pilha de lágrimas e tremores, com um pequeno alívio nos ombros.


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