Um Cãoto escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 6
Capítulo VI




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A cidade parecia bem mais próxima do que eu imaginei. Mas cheguei! Um passo mais próximo de Luz! Mal podia esperar para encontrá-la, pai e mãe ficariam tão felizes! E ela também. Deve estar assustada.

Tentei seguir uma pessoa, mas ela brigou comigo. Era um homem. Tinha cheiro de cachorro, então ele tinha um cachorro! Mas me enxotou. Não sei porquê. Não fiz nada de mal, eu acho. Ou será que ele ficou assustado por ter um cão desconhecido atrás dele? Gritou "xô, passa!" e fez movimentos bruscos. Dei um pulo pra trás! Tomei um susto!

Ele seguiu seu caminho e eu atravessei a rua. Não tinha movimento de carros ali.

Dois dias depois e nada tinha acontecido. Nada havia sido encontrado, apenas a minha fome. Senti meu estômago como eu jamais havia sentido antes! Nem sabia que uma barriga podia doer tanto, mesmo sem estar machucada.

Encontrei uns sacos à noite. Rasguei tudo e tinha tanta comida que quando terminei, só consegui pensar em dormir. E como dormi! Acordei com um balde de água gelada pela manhã e alguém gritando.

— Vira-lata imundo! Vai rasgar lixo bem longe daqui, seu nojento cheio de pulga!

Outro susto.

Não entendi nada do que foi dito. Aquilo era lixo? O lixo de casa era diferente. E por que cheio de pulga?! Acho que ela não estava num bom dia. Ou numa boa vida. Imundo é bom?

Me sacudi e ela gritou um pouco mais. Abanei a cauda pra mostrar que tudo bem, que eu não ia mais fazer aquilo. Tentei dizer que era só fome. Que estava procurando por alguém, mas AI! TIA, NÃO ME, AI! NÃO! OK, OK, TÔ SAINDO!

Banho gelado pra acordar: ok

Baldadas pelo corpo: não tão ok assim!

Aquilo doeu! Não sei porque as pessoas fazem isso, eu sou um bom menino! Era só ela me acordar que eu logo sairia, o que custa pedir com educação? Pai e mãe não iam gostar nada disso se ficassem sabendo.

Agora eu entendi porque a tia pegou mamãe quando a encontrou. Passar por essas coisas uma vida inteira não parece ser legal.

Mas tem seu lado bom: CRIANÇAS! Sim! Brinquei com vários filhotes humanos em praças, corri, rolei, cavei, peguei seus brinquedos e até ouvi que alguém queria me levar pra casa. Só que eu já tinha casa. Saí de lá rapidinho! 

Então eu vi: um bicho esquisito com rabo pelado em um buraco num tronco de árvore.

— Hey! Amigo! - chamei. Não sabia se entendia latidos, mas arrisquei.

A coisinha estava se lambendo e, quando me ouviu e me viu aproximar, congelou.

Não sabia se estava olhando diretamente pra mim, aqueles olhinhos pretos eram difíceis de entender. Perguntei se havia visto uma gata peluda e bege por aí. A criaturinha saiu rindo - ao menos pareciam risos agudos e curtos - e sumiu de vista.

Tudo bem. Eu já estava seguindo o rastro de um cão e certeza que ele poderia me ajudar!

Após o que se pareceram algumas horas - não sou bom com essas coisas de tempo - cheguei em um lugar cheio de cadeiras e mesinhas na rua. Tinham muitos homens gritando e falando alto uns com os outros, hostis, mas pareciam felizes e alegres. Tinha comida em algumas mesas. COMIDA. Tentei a sorte e me aproximei.

— Esquece. - disse um cão preto, de pelo duro, deitado à esquina. - Eles não vão dar nada a você. Mas se quiser, tente o lixo mais à noite.

— Oi! - O preto me encarou. Ninguém mais parecia me ver, além dele de qualquer forma. Estavam todos muito ocupados pra isso, eu acho. - Estou procurando uma gata. Você a viu?

— Vejo vários gatos o tempo todo.

Sentei.

— Mas essa se chama Luz. Ela fugiu de casa.

— E?

— Ela é bege e tem as extremidades escuras, é bem peluda.

— E?

— Você a viu?

— Sei lá.

— Se você a vir, peça para que volte logo, ok?

— Ok.

Levantei e segui meu caminho, satisfeito comigo mesmo. Ter ajuda é o que move o mundo! Ok, ele parecia um pouco desanimado e nada interessado, talvez por ser velho, quem sabe?

O tempo estava fechado, consegui chegar em algum lugar mais movimentado da cidade, com muitos cheiros e parecia fácil se perder, as pessoas caminham em várias direções. Notei alguns pombos - vi muitos poucos de onde moro, são engraçados.

Algumas pessoas me faziam carinho, outras me cumprimentavam e falavam comigo. Consegui alguns bons restos de comida, tipo um resto de pastel MARAVILHOSO de carne! Já disse que eu amo carne? Nunca comi pastel na minha vida. 

Tinha uma coisa redonda que esguichava água pra cima do centro. Tomei um pouco daquela água. Tá, tomei um monte daquela água! Eu estava morrendo de sede!

Pronto pra seguir meu caminho e AI, CARAMBA! Mas que mania que as pessoas têm de bater do nada, tanta surpresa por aí pra fazer e AI, MEU FOCINHO! O cara tá armado com um jornal e gritando coisas que eu não consigo entender e AI! Corri. O que mais eu podia fazer? Arrancar o jornal dele? É, talvez numa próxima vez. Eu adoro rasgar jornal! Jornal é bom! Faz um barulho legal também! Mas eu corri muito e tudo que eu ouvi foi um barulho agudo, uma buzina e... Nada.

Quando acordei tinha um zé povinho na minha volta. Acho que o carro me atingiu, mas eu estava bem. Abanei o rabo pra avisar que tudo bem. Levantei e corri.

Não podia deixar que me pegassem, Luz precisava de mim! Afinal de contas, nem foi nada, o homem estava devagar. Estou ótimo!

Na verdade, acho que as pessoas à volta ficaram espantadas. Elas não sabiam, mas eu ri!

E de repente, chão! Fui derrubado por outro cachorro! Ele estava em cima de mim, me mordendo e rosnando. Chutei ele, rolei e levantei. Ele estava com os pelos eriçados e... acho que era uma menina. Baixei a cabeça, botei as orelhas pra trás, apertei os olhos e recuei. Tentei mostrar que estava tudo bem, relaxei os músculos, abanei a cauda e sorri.

Ela disse que aquele era seu lixo; mas que lixo? Procurei em volta. Tinha um acumulado de lixo delicioso atrás de mim - na direção em que eu estava correndo. Mas poxa, nem tinha visto! Parece que lixo é uma coisa preciosa desses lados da existência, lá em casa a gente não liga muito pra essas coisas. Olhei novamente pra ela que mandou eu ir embora. Perguntei se ela tinha amigos. Ela não entendeu. 

— Quê?

— Estou procurando uma gata, você a viu?

Então ela se aproximou de mim pra me cheirar. DEIXEI, ÓBVIO! Aproveitei e cheirei-a também! Parecia ser pouca coisa mais velha que eu. Será que ela conta idade?

— Não procuro por gatas. Onde você está indo, loirinho?

— Não sei. Tenho que encontrá-la.

— Por quê?

Contei a história da fuga, de como vivemos juntos desde que me lembro por cachorro e como ela estava infeliz com a mudança de casa.

— Você tem humanos? 

— Tenho! Dois! Eles são divertidos e engraçados, mas ficaram muito tristes com a sumida de Luz, então eu decidi vir buscá-la e...

— Por quê?

Não entendi. Como assim por quê? Porque éramos amados e amávamos, porque era bom, porque era nossa vida. O que eu poderia responder?

— Hein?

— Humanos são as criaturinhas mais cruéis e sujas que existem. Deixe ela por aí, deve estar sendo feliz ou se escondeu para morrer em paz, bem longe desses monstros pelados.

— Que horror! Pare com isso!

— Com a verdade? Own, o cachorrinho da mamãezinha vive no mundinho dos unicórnios coloridos e saltitantes?

— O que são unicórnios? Unicórnio é bom? É de comer? - A cadela sacudiu a cabeça em sinal de impaciência. - Qual o seu nome? Você tem unicórnios?

— Pode me chamar de Coisa. É como o pessoal do barraco me chama, mesmo.

— Pessoal do barraco?

— Olha, carinha, você não está mais na sua casa, no seu lugar seguro comendo aqueles troços secos e farelentos, ok? Aqui é cada um por si.

— Mas sempre me disseram que cães eram sociais e tinham matilhas e...

Coisa me interrompeu com um latido de não e um rosnado impaciente, ela ainda estava eriçada. Continuou dizendo que isso era uma interpretação das pessoas, mas que quem curte viver em grupo são os gatos, cães até podem fazer uma amizade ou outra, mas não existe essa coisa de matilha, somos seres sociais, mas formação de matilha era quase como formação de quadrilha com humanos - alguns formam grupinhos e se dão bem, a maioria não liga pra isso.

— Humanos se acham tão espertões, mas só por serem arrogantes. Nunca têm a humildade e a sensibilidade de imaginarem a possibilidade de estarem errados. Mas eu não vou te dar uma aula sobre eles, afinal, quem tem dois é você.

Ela foi cheirar uma graminha. Fui atrás.

— Você me ajuda a procurar por Luz? - eu quase consegui ver ela pensando enquanto cheirava aquela graminha e fazia um xixi nela.

— Não sei. Posso? Não estou fazendo nada da minha vida sem ser sobreviver, mesmo. Talvez. De onde você veio?

— Dos trilhos dos trens! - lembro que aprendi o que era um trem com a Luz. E com alguns filmes antes de dormir... 

— Tudo bem, posso te levar de volta se você desistir. Não fica a muitos dias de caminhada. Vamos achar essa fugitiva de prisão!

Prisão? Não entendi. Perguntei, é claro. Quero saber tudo! E decidi chamá-la de Pipa. Combinava mais com a pelagem bicolor dela. Ela era uma cadela de pelo curto, de olhos cor de mel, focinho marrom e manchas marrons pelo corpo branco, não lembro de ter visto coisa igual antes; sim, foi uma piada.

Disse que viver com dois humanos, preso em uma casa, submetido a regras e a um cotidiano obrigatório era como em uma prisão humana. Você não tem liberdade, na opinião dela, de ir e vir, nem independência alguma e nem autonomia - não entendia nada dessas palavras, mas ela tinha um vocabulário muito bom.

E quando não era tratado como um prisioneiro, atado à correntes, em uma caixa com goteiras sem poder se abrigar do frio "porque nem uma casinha com paredes, mais compridinha, com uma entrada lateral em vez de central os humanos estúpidos são capazes de fazer, acham que uma caixa é o suficiente, você fica com escoriações nos cotovelos e dor nas costelas, mas eles não se importam", agiam como se você fosse um retardado, "é claro que você não sabe o que é 'retardado' porque você provavelmente é um, loirinho". Retardado parecia ser bom!

Andávamos pelos bairro e acabamos entrando em lugares assustadores, becos com cães agressivos ou lugares com pessoas sujas e com cheiros fortes que dormiam na rua, perguntávamos a todos que podíamos sobre Luz, até que encontramos um cavalo - SIM, UM CAVALO, EU NUNCA TINHA VISTO UM ANTES, MUITO MENOS TÃO DE PERTO! FIQUEI UM TEMPÃO CORRENDO EM CÍRCULOS EM VOLTA DELE, até Pipa se irritar comigo - que disse ver vários gatos com as características de Luz. Ele não sabia qual era Luz, mas disse que tinha um grupo de gatos - uns 180 - próximo dali, no centro, e que eles saberiam dizer melhor.

E fomos, é claro.

Pipa era uma ótima companhia e separava os melhores lixos, sabia os melhores points— como ela chamava - e quando estava de bom humor brincávamos um pouco. 

Também sabia quando ia chover pelo faro, temperatura e direção do vento - acho que ela tem superpoderes! - então nos recolhemos mais cedo naquele dia. Ela encontrou uma toca maravilhosa pra gente! Um lixão que ficava um pouco fora da nossa rota, mas tinha as melhores caixas de papelão e madeira pra nos escondermos.

Não sei o que seria de mim sem Pipa!


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