Ébano, Neve e Sangue escrita por Claudia Carvalho


Capítulo 3
1.Ao Cair da Neve




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O lago estava congelado. Mas dessa vez estava impenetrável. Isabella não sabia caçar, e com o inverno cada vez mais rigoroso na floresta, era óbvio que não seria fácil conseguir peixes. Frutas e outros vegetais estavam fora de cogitação ─ a neve não poupara nada, nem ninguém.

A jovem não podia voltar para casa de mãos abanando. Sua mãe estava de cama, precisava de comida de verdade. Isabella começou a analisar o lugar em busca de algo que pudesse usar para abrir um buraco no gelo, quando ouviu um ruído de carruagem que se sobressaía no silêncio típico da estação.

Ela ergueu a barra de seu pobre, porém quente, vestido azul e correu para o meio das árvores. Sua intuição lhe dizia que para que não se deixasse ser vista.

Os cavalos pararam à beira do lago e cocheiro correu para abrir a porta. Uma menina cuja aparência indicava que teria pelo menos cinco anos de idade saiu correndo em direção ao gelo.

─ Não corra ─ advertiu uma voz feminina. A mulher saiu do carro, ajudada pelo cocheiro. ─ Rubra Rosa!

Isabella estava paralisada. Metade da família real estava ali, na sua frente. Os bondosos e inalcançáveis reis. A pequena princesa Rubra Rosa e a doce e gentil rainha Sophia. Mas aquilo... Um volume em seu ventre? Parece que mais um monarca estava a caminho. Mais uma cria do sábio e corajoso rei Serafim.

A garota cuspiu na neve. Seu asco pela realeza era algo que a loira nunca fez questão de esconder - e algo pelo qual sua mãe sempre a repreendia.

─ Nosso reino podia ser um lugar muito pior, Ella ─ advertia sua mãe. ─ Deveria agradecer pela bondade dos nossos governantes.

─ Se eles são assim tão bons, porque nos deixam viver na pobreza e não enviam um médico para cuidar da senhora?

Esse argumento geralmente encerrava a discussão, às vezes acrescentando um balançar de cabeça da matriarca.

A princesa ruiva de pele corada brincava no gelo. Sophia chamou um dos guardas reais e lhe cochichou ao ouvido. Ele fez uma pequena reverência de cabeça. O homem foi para trás da carruagem e voltou com um serrote, um saco e uma rede de pesca. Isabella sorriu. Sua mãe teria uma refeição descente naquele dia.

O cavaleiro abriu um buraco considerável e jogou a rede na água. A rainha ficou algum tempo brincando com Rosa. Quando foram pescados peixes suficientes para alimentar o pequeno vilarejo de Isabella, mãe e filha se encaminharam de volta para a carruagem. A menina, sempre muito agitada, correu na frente e acabou com um leve arranhão provocado por um galho baixo.

A criança fez cara de choro. Sophia pegou-a no colo e sentou-a no degrau da cabine. Tirou debaixo do casaco um saquinho com um vidro, e despejou o conteúdo pastoso no braço de Rubra Rosa.

A neve começou a cair, e flocos ficaram presos nos cabelos e braços de ambas.

─ Ah, minha filha... Quem me dera eu pudesse presentear seu pai com uma filha igualmente ou até mesmo mais bela que você. Talvez... uma menina com os cabelos tão escuros quanto o ébano dessa carruagem e com a pele tão branca quanto a neve que cai sobre nós agora. E com os lábios mais vermelhos do que seus cabelos. Tão vermelhos quanto... o seu sangue.

A Sophia beijou o alto da cabeça da filha, as duas entraram e o cocheiro seguiu viagem, provavelmente rumo ao palácio.

Ella esperou até o som da carruagem desaparecer, foi até o buraco e jogou sua linha com a isca.

Ao menos uma coisa boa aquela família havia feito. Obviamente, sem qualquer intenção de caridade.

 

 

─ Olhem só ─ gritou um garoto quando Isabella saiu da floresta. ─ Lá vai a esquisitona!

Ella abaixou a cabeça e continuou andando.

─ Minha mãe disse que ela é uma bruxa ─ disse uma garota. ─ E a mãe dela também. Por isso está doente. Está pagando seus pecados. E a Ella vai ficar órfã porque ela é uma bruxa também!

Aquela história de bruxa de novo. Quantas vezes mais ela podia aguentar ser acusada de ser uma maldita porque seu pai as abandonou e sua mãe estava quase morrendo?

─ Bruxa! Bruxa! Bruxa! ─ gritaram em coro outros jovens que estavam lá. Tinham todos por volta de 14 anos, a mesma idade que ela.

Isabella se voltou para o grupo com os olhos faiscando de ódio, virou a palma direita em sua direção e pronunciou palavras desconexas. Eles gritaram de medo e fugiram.

─ Cheguei, mãe ─ chamou Ella ao chegar em casa, mas não obteve resposta. ─ Mãe?

Correu para o quarto da mãe, preocupada. Estava mais pálida e abatida do que nunca.

─ Mãe ─ correu para a cabeceira da mãe e abraçou-a ─, por favor! Não!

A mulher abriu entreabriu os olhos.

─ Minha filha ─ disse, com voz fraca ─, é chegada minha hora de partir.

─ Não...

─ Antes de ficar de cama conversei com uma viúva, que providenciou para que você ficasse em sua casa quando eu partisse. Atravesse o lago, vá pela estrada até a vila e pergunte pela casa de Noverca Malvix. Você não ficará desamparada.

Sua cabeça caiu para o lado, e não voltou a se mover.

Isabella gritou. Lágrimas rolaram por seu rosto.

 

 

Já era meio de tarde do dia seguinte quando Isabella abriu os olhos. Um cheiro horrível penetrou suas narinas. Adormecera sobre o corpo de sua mãe, que começava a apodrecer e haviam surgido alguns vermes. O peixe que fora abandonado próximo à porta também exalava um odor fétido.

Usou uma jarra com água para tirar os bichos e um trapo molhado para limpar cadáver para o enterro.

Não haveria velório, é claro. Elas não tinham amigos, e sua fama de envolvimento com bruxaria não permitiria que qualquer sacerdote da Igreja concordasse em rezar pela falecida.

Depois de preparar o corpo, levou-o para o quintal dos fundos da cabana. Não se permitiu derramar mais que três lágrimas enquanto limpava a neve e cavava a cova. Não se permitiu chorar mais ao deitar o corpo no buraco e tampá-lo.

Depois de terminado o serviço, Ella voltou para dentro, limpou as mãos com o que sobrara de água, reuniu numa trouxa seus poucos pertences e partiu na direção que sua mãe havia lhe indicado, sem olhar trás.

E a neve voltou a cair.


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