O Mundo do Lado de Fora escrita por João Victor Costa


Capítulo 2
Andrew - Roupas Brancas e Pequenos Detalhes




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Estava inquieto, sem parar de mexer constantemente nas golas do paletó branco, procurando algum sinal específico de belos cabelos lisos e escuros na multidão.

— O que foi? – perguntou meu irmão, parecendo notar minha inquietude

— Nada. – respondi apenas.

Minha família e eu havíamos chegado no Teatro Municipal de Cosmari há uns cinquenta minutos e cada vez mais o lugar se enchia de gente. Muitas pessoas, inclusive, se aproximavam para nos cumprimentar, com o burburinho constante de outras conversas abafando nossas vozes.

Uma mulher de meia idade surgiu e se aproximou, acompanhada de um garoto que, assim como eu também usava o típico paletó branco dos formandos

— Olá, sou Lina Fugher, arquiteta. – ela se apresentou, cheia de entusiasmo. – Este é meu filho, Ruan.

— Oi, como vão? – disse o garoto, dando um passo adiante e apertando a mão de todos. Meu pai os cumprimentou e se apresentou:

— Muito prazer. Sou Chad Lurothar, ministro da justiça. – Disse ele, sempre muito educado. Lina arregalou os olhos. – Esta é minha esposa, Louise, bibliotecária; e esses são meus filhos...

A mulher soltou um arquejo e ficou boquiaberta.

— Ministro? – disse num tom de surpresa, olhando para os lados, ignorando completamente os outros – Nossa, não sabia que haveria um ministro por aqui.

Meu pai riu e disse alguma coisa. Desviei o olhar e acenei de volta para um colega não muito distante.

— É muito gratificante conhecê-lo. – continuou ela, colocando a mão no peito como se fosse uma honra aquele momento. – Eu aprecio muito o trabalho de todos vocês.

— Agradeço muito o elogio, – Meu pai fez uma reverência. –  mas não serei o único ministro aqui nesta noite.

Lina arregalou ainda mais os olhos. Por um momento pareceram capazes de saltarem de suas órbitas órbitas. Eu franzi a testa.

— Não brinca! – ela e meu pai soltaram uma risada. – Quem é?

— Iremos saber em breve.

Lina fez um biquinho.

— Bom, de qualquer forma já vamos indo. – disse ela, sorridente. – Foi um prazer.

Lina e Ruan se despediram logo em seguida; o garoto parecia notavelmente constrangido pelo que dizia o olhar de relance que ele lançara para trás enquanto balançava a cabeça.

Por cima do ombro, virei-me para Laxos.

— Cada um que aparece... – Comentei com ele. Meu irmão mais velho tinha cabelo loiro-escuro como da nossa mãe, mas um pouco desfiado.

— Quem você acha que é o outro ministro? – perguntou Laxos, indiferente.

— Aposto que é o da educação. – disse eu, sem que ninguém prestasse muita atenção. – Faz mais sentido que seja ele.

Aos poucos comecei a pensar que nunca havia visto tantos alunos da escola reunidos em um único lugar – era fácil identificar os formandos porque os garotos usavam paletó branco e as meninas usavam vestido da mesma cor. A última vez que eu estive em um evento como aquele fora na festa de encerramento do ano letivo passado, quando acabou a luz no meio de uma das apresentações de dança.

Era um sentimento estranho.

Felizmente, havíamos chegado cedo e conseguimos ficar na quinta fileira mais próxima do palco. A espaçosa distância entre os assentos permitia a todos se locomover com bastante facilidade, o que era um fator muito positivo para prevenir um pequeno caos. O que mais se notava era as pessoas cumprimentando umas às outras e, apesar de repetitivo, não deixava de ser interessante.

Continuei olhando ao redor e comecei a pensar melhor. Seria interessante que o Ministro Geral, Lucas Nacani, viesse fazer uma participação, mas ele era muito importante para um evento público como aquele, sem um intuito político muito forte. A julgar pela quantidade razoável de seguranças do lado de fora, a opção por um dos ministros menores era bem mais sensata.

A voz serena da minha mãe foi como um eco baixo me chamando.

— Andrew, você está bem? – disse ela. Era muito magra e seu cabelo loiro escuro estava preso em um rabo de cavalo que despencava atrás do vestido azul. – Lembrou-se de trazer seu remédio?

Eu realmente não gostava quando falava daquela forma. Era como se ela considerasse que eu realmente precisasse sempre de um lembrete para essas coisas importantes, não que fosse completamente uma mentira. Era bastante comum eu esquecer das coisas. Mesmo assim respondi calmamente:

— Não, não é isso. – disse eu, meu coração acelerando repentinamente. Tateei o bolso da calça até sentir os volumes dos pequenos comprimidos. Eu fazia isso de forma automática quase sempre que me lembrava deles. – Estou procurando a Aby.

Laxos estreitou os olhos em minha direção. Não dei muita atenção.

— Aby? – perguntou ele, com um tom de curiosidade. – Você não me disse que tinha uma namorada… Que foi? – continuou depois que eu revirei os olhos, claramente pensando nas vantagens de ter sido filho único. Felizmente, para aquele momento, algumas outras pessoas apareceram para nos saudar. Um homem alto e forte vinha na frente, acompanhado de sua família.

— Chad! – exclamou ele, caminhando de braços abertos e com um imenso sorriso. – Não acredito que você está aqui!

— Alan? – eles deram um abraço forte e algumas palmadinhas nas costas um do outro. – Faz muito tempo, não é? Ah, e vejo que está acompanhado de sua esposa.

— Elise, muito prazer. – Ela se apresentou e indicou às filhas atrás dela que dessem alguns passos para frente. – Estas são Paola, que vai se formar agora, e Nicole, a mais nova.

Paola era uma garota de estatura mediana e quando sorriu para dizer “Olá”, pude ver claramente seu aparelho odontológico de cor cinza escuro. Eu a cumprimentei, feliz em revê–la.

— Estão lindas! – elogiou minha mãe, após ter se apresentado. – Esses são nossos filhos, Laxos e Andrew.

Assentimos educadamente para Elise. Alan se adiantou e nos cumprimentou com apertos de mão.

— Nunca conheci seus garotos, Chad. – Ele se inclinou para perto. – Tudo bem?

Respondemos que sim.

— Só estou um pouco nervoso, mas deve ser normal. – completei.

— Sim, é assim mesmo. – disse o homem. – Que área pretende seguir?

— Investigação criminal. – respondi. – Vai ter uma prova daqui uns meses e estou estudando para ser aprovado.

— Ah, interessante. Medicina e Engenharia têm sido profissões em alta nos últimos tempos.

Alguém tropeçou atrás de mim e eu me virei rapidamente para ver uma mulher se levantando elegantemente e pedindo desculpas. Eu disse que estava tudo bem e retomei a conversa.

— Estou estudando para passa no curso de Biologia. – comentou Paola, sorrindo.

— Seguindo os passos do pai. – disse a mãe.

Repentinamente, arrepiei-me ao sentir dois braços finos se enroscarem em volta da minha cintura.

— Oii! – disse Abigail, exibindo o rosto por cima do meu ombro, chamando a atenção de todos. Seus cabelos estavam soltos e despencavam pelos ombros de pele clara, sobre o vestido branco. – Estive procurando você por toda parte.

— Onde você estava? – perguntei. Abigail lançou um olhar para o palco.

— Ah, longa história. A cerimônia já vai começar. – disse ela, ansiosa – É melhor que fôssemos logo. Somos os primeiros. Pode ser que fique um pouco mais complicado entrar depois…

Ouvimos subitamente a badalada aguda de um sino ecoar pelo teatro e houve alguns segundos de silêncio até que o constante murmúrio das conversas voltasse. Uma das coordenadoras da escola caminhou pelo palco e se inclinou para perto do microfone principal.

— Estudantes, por favor, sigam para seus lugares. – disse monotonamente. Abigail segurou minha mão e me puxou logo depois de nos despedirmos dos outros com algumas poucas palavras.                                         

— É agora. – disse Aby, sem esconder o entusiasmo, enquanto passávamos pelas fileiras de assentos pedindo licença às pessoas no caminho. – Cheguei atrasada, há uns dez minutos. Minha carona atrasou e parece que a Clarisse teve alguns… problemas.

— Que tipo de problemas? – perguntei.

— Ela não estava se sentindo bem.

Apromimamo-nos dos outros alunos e seguimos adiante, cumprimentando brevemente alguns conhecidos. Abigail e eu trocamos alguns olhares, como sempre costumávamos fazer.

— Espero que ela melhore.

— É, eu também. – comentou Abigail.

Por ali, as coordenadoras pedagógicas estavam organizando tudo. Entre as três estava Patrícia, a coordenadora do turno da manhã, parecendo muitíssimo agitada.

— Do jeito que combinamos! – ela gesticulava, segurando numa mão um conjunto de papéis grampeados que não paravam de balançar. Desviei o olhar para uma série de cadeiras dispostas na lateral do palco superior, onde aos poucos algumas pessoas tomavam seus lugares, cumprimentando os outros formalmente. – Vamos, vamos!

Abigail se virou para mim, me deu um beijo rápido e foi para o seu lugar na primeira fileira.

— Até mais. – disse ela com um sorriso.

— Até.

Patrícia se virou de um lado para o outro, verificando a presença dos alunos com os papéis erguidos na altura dos olhos.

— Aaron, Abigail, Achio! – verificou os alunos e voltou novamente a atenção para o primeiro nome. – Aaron?

Ele não apareceu e a coordenadora se dirigiu para a fileira seguinte.

— Alice, Amália, Andrew. – ela olhou para a gente por cima da lente dos óculos quadrados e depois voltou a anotar anotar coisas na prancheta. – Tudo ok.

— Ai, estou muito nervosa. – ouvi Amália dizer para Alice.

— Eu também!

— Clarissa. Clarissa! – chamou uma das outras coordenadoras, sem obter resposta imediata. Abigail e eu esboçamos um sorriso quando a garota chegou aos pulos alguns segundos depois.

— Estou aqui, estou aqui.

O tempo passou enquanto os nomes eram verificados. Aaron apareceu em seguida, comentando que tinha sido horrível passar por tanta gente para chegar ali. Patrícia terminou a contagem da primeira metade dos formandos e a outra coordenadora, a outra metade, antes de caminhar para uma porta atrás do palco e desaparecer de vista.

Todos fizeram silêncio por um curto instante em que o som do sino sendo tocado ecoou pelo teatro mais uma vez. Uma onda de eletricidade que eu não fazia ideia que existia pareceu surgir repentinamente e percorrer meu corpo, fazendo os pelos dos meus braços eriçarem. Observamos enquanto Hortência, que era a diretora da escola e também professora de geologia, se dirigia ao púlpito, sendo recebida pelo público com uma salva de palmas. Comecei a imaginar que talvez fosse sentir saudades daquela velha que adorava passar cerca de metade do tempo de aula contando a respeito de como seu neto desonrava a família.

Depois de alguns segundos Hortência sorriu e levantou a mão, pedindo silêncio.

— Boa noite, senhoras e senhores. Agradeço muito tamanha receptividade. Sou a diretora da Escola Municipal de Cosmari e tem sido uma honra passar todos esses anos acompanhando de perto os nossos jovens. – começou ela com sua voz naturalmente rouca. Uma música começou a tocar ao fundo de forma repentina e muitos se sobressaltaram com as enormes caixas de som penduradas nas paredes. Reconheci imediatamente o som instrumental do violão e piano do hino nacional. – Entretanto, chega o momento em que nós, educadores, temos de nos despedir e deixá-los seguirem seus caminhos

Hortência pigarreou no microfone para que a atenção fosse retomada para ela e depois continuou, após lançar um olhar sugestivo para alguns professores, que deram de ombros.

— Receberemos agora, senhoras e senhores, nossos queridos estudantes!

A música ficou mais alta, e com a autorização das coordenadoras, as fileiras começaram a andar. Uma salva de palmas se espalhou pelo teatro.

— Boa sorte, meus amores! – disse Patrícia, emocionada, passando os dedos nos olhos lacrimejados e indicando o caminho a subir. – Cuidado com os degraus.

Abaixei a cabeça com receio de tropeçar e, ao erguê-la, me deparei com os reflexos reluzentes de uma multidão agitada. Centenas de olhares voltados unicamente para mim durante alguns milésimos de segundo até que a outra fileira entrasse.

Os formandos se posicionaram um ao lado do outro ao longo do palco, em múltiplas fileiras. Fiquei ao lado de Amália e de um outro cara que eu não sabia o nome e, sendo nós os primeiros a entrar, vários outros formandos se posicionaram na nossa frente, quase umas – inclinei a cabeça um pouco e depois me virei para os dois lados – onze fileiras com vinte e seis alunos em cada.

Após todos terem entrado, as palmas cessaram e a música diminiu gradativamente até que o som desaparecesse por completo. Houve alguns poucos segundos de silêncio e três notas agudas fizeram as pessoas assumirem uma postura ereta, com os olhos fixos diante de si, antes que suas vozes ecooassem pelo teatro como se fossem uma só, diante da curta letra de uma canção.

 

Este é um novo mundo

Onde tudo começa outra vez

E com esse sentimento profundo

Ergo minha solidez

 

Um novo mundo está vindo

E ele será governado por nós

A ordem reinará para onde se estiver indo

Seremos nossos próprios heróis.

 

Ao fim da última palavra, as pessoas se sentaram e fez-se silêncio até que Hortência pigarreou mais uma vez próxima ao microfone antes de recomeçar a falar.

— Sabe, estava planejando meu discurso como sempre faço todos os anos, entretanto, para meu alívio, considerando que já sou uma senhora de idade... – risadas se espalharam pelo povo – ...Hoje teremos um convidado muitíssimo especial que aceitou se juntar a nós nesta noite tão especial. – Comecei a sentir gradativamente nesse momento uma forte dor de cabeça. A mesma dor de cabeça que sempre me atacava. Ela não doía de verdade, mas apenas me incomodava de uma forma que eu não conseguia lidar. Aquilo me perturbava. – Por favor, recebam o Ministro da Educação, Jilmar Morck!

O público se ergueu em mais uma salva de palmas. Jurei ter conseguido distinguir Lina Fugher comemorando em algum lugar no meio da multidão quando o ministro apareceu pelo outro lado do palco, acenando para todos os lados e cumprimentando a diretora ao tomar seu lugar no discurso. O homem aparentava estar um pouco além da meia idade, com muitos fios brancos espalhados pelo cabelo escuro, além de óculos com pequenas lentes redondas que escondiam uma pequena parte de suas rugas.

— Boa noite a todos, muito obrigado. É muito gratificante para mim observar que nossa formação tem sido aprimorada cada vez mais ao longo desses anos. É com muito orgulho que venho aqui assistir esses jovens darem um passo, não apenas para frente deste palco para receber suas gratificações, mas um passo para a evolução e para o novo mundo que todos anseiam.

Palmas se espalharam pela multidão, inclusive pelos formandos. Aproveitei e peguei um dos comprimidos do bolso da minha calça e o engoli, seco e com um pouco de dificuldade. Em alguns minutos aquele pequeno incômodo desapareceria.

— Por favor, os alunos que forem sendo chamados, venham adiante. – disse o ministro Jilmar, seriamente. Ele abaixou a cabeça e leu em voz o primeiro nome, seguido da profissão escolhida pelo estudante:

— Aaron Gui Julay. Engenheiro!

A multidão começou a aplaudir. Aaron caminhou até o ministro e o cumprimentou com um aperto de mão enquanto Hortência retornava de um lado, junto de um assistente que segurava uma bandeja forrada de veludo vermelho, repleta de medalhas.

— Abigail Doe Toledo. Atriz!

Fiz questão de aplaudir enquanto todos vibravam. Aby recebeu a medalha da diretora e se retirou para a lateral do palco, onde foi cumprimentada pelos professores. Nesse momento, Aaron já havia dado a volta e voltara ao seu lugar com uma medalha dourada reluzente sobre o branco do paletó.

— Achio Kai Nifai. Médico!

O som das palmas foi ainda mais forte e intensa. Antes de voltar ao seu lugar no palco, ele pegou seus diplomas  com os professores.

— Alice, Professora; Amália, Dançarina! – O ministro continuou chamando os nome e as pessoas continuavam a aplaudir. Nos três segundos seguintes, foi como se uma onda de adrenalina me invadisse. – Andrew Sui Lurothar. Investigador!

Minhas pernas fraquejaram nos dois primeiros passos, mas me esforcei para continuar com a confiança que os muitos aplausos me deram. Passei pela frente do palco com todos aqueles olhares sobre mim enquanto meu pai e meu irmão se levantavam e me aplaudiam com entusiasmo.

Aproximei-me do ministro da educação e observei enquanto Hortência retirava uma das medalhas da bandeja de veludo e se adiantava para colocá-la em meu pescoço.

— Bons esforços, meu querido. – disse ela, sorridente.

— Obrigado.

Hortência indicou que eu continuasse e caminhei em seguida para a lateral do palco, onde os professores e outras pessoas, alguns desconhecidos, estavam aguardando. Guilheme Tom, meu professor de Design, tomou a iniciativa em me cumprimentar com um aperto de mão e um abraço.

— Hey, cara, parabéns. – Ele se virou e pegou um rolo de diversos certificados de conclusões presos com uma fita vermelha, soldada com cera da mesma cor com a insígnia da escola. – Bons esforços!

— Obrigado. – disse eu, um pouco mais descontraído. – Foi uma honra.

Uma mulher vestida com um brazer azul também se aproximou.

— Andrew Lurothar... – disse ela com um sorriso entre o batom vermelho. – Não me diga que é filho de Chad Lurothar.

— Sim, sou eu mesmo. – concordei.

— Sou Sarah Muller, responsável pelos exames educacionais das profissões públicas da capital. Muito prazer. – ela estendeu a mão e nos cumprimentamos. – Já se inscreveu no exame da polícia este ano, presumo.

— Muito prazer. Sim, já me inscrevi.

— Ah, ótimo. – disse ela, deixando escapar também uma risada aguda. – Espero vê-lo em breve.

Ela se despediu e eu acenei rapidamente para alguns outros professores antes de retomar o meu lugar, deixando escapar alguns murmúrios de alívio.

O ministro continuou chamando os nomes e, como a parte mais difícil havia acabado para mim, o resto era apenas se divertir.

 

 

Subi os degraus escuros que se estendiam atrás da porta semi-aberta do terceiro andar e a fechei, abafando o som de tudo o que acontecia atrás de mim, no interior do enorme salão de festa. Após dançar, beber e rir bastante com meus amigos e colegas, decidi que não faria mal ficar sozinho alguns instantes e aproveitar o ar fresco da noite sem nuvens.

Na primeira capital, quase todas as noites eram sem nuvens e era possível ver as estrelas.

Mas é claro, não que fosse a questão naquele momento, mas nem sempre era assim.

O terraço estava vazio e isso me deixou mais tranquilo. Andei e debrucei-me  sobre a mureta mais distante, do lado oposto da porta, olhando em direção ao centro da cidade. Tanto as luzes das estrelas quanto das casas e prédios eram igualmente fascinantes dali, mas naturalmente o céu sempre me chamara muito mais atenção.

Reparei que a lua estava em foice crescente naquela noite, com dezenas de pontinhos brilhando visíveis ao seu redor. Ficar ali pareceu renovar aos poucos minha energia, imaginando que alguém, lá em cima, fosse o céu, as estrelas ou as duas luas, estivesse me assistindo.

Absorto em meu próprio mundo, sequer reparei em Abigail quando a garota se juntou a mim para observar o horizonte.

— É lindo, não é? – disse ela, sorrindo de uma forma que toda aquela imensidão parecia comtemplá-la igualmente.

— É, é sim.

Ela colocou a mão por baixo do vestido e pegou alguma coisa no sutiã.

— Quer alguma coisa? É revelcener— perguntou ela, oferecendo ervas enroladas num tabaco e esboçando um sorriso. – Para tirar as coisas ruins...

— Eu aceito.

Peguei o cigarro da mão dela e me concentrei em uma pequena fagulha que surgiu quase que imediatamente pelo custo de alguns minutos da minha vida. Traguei o cigarro, sentindo a fumaça entrar nos meus pulmões e espalhar uma energia relaxante e renovadora pelas minhas veias e músculos. Então eu a soltei, sentindo como se as coisas que estivessem ou pudessem estar me afetando de forma negativa fossem sopradas e dissipadas pelo vento.

Repeti mais uma vez.

Eu conseguia ver agora. Tantas estrelas, tantas constelações. O lobo, o guerreiro, o guardião. A da águia era a que mais me chamava a atenção.

Passei o revelcener para Aby. Lancei um olhar de relance para a porta do terraço atrás de nós e retomei a atenção ao horizonte.

— O que acha que está acontecendo lá fora? – perguntei enquanto Aby soprava a fumaça.

— Não faço ideia. – respondeu ela. Eu fiquei brincando com meus dedos.

— De qualquer forma, não é algo que faria muita diferença. – comentei.

— Nisso eu discordo.

Ela me passou o cigarro.

— Por quê? – perguntei, curioso.

— Tudo importa. – disse ela, sorrindo antes de morder uma pequena parte do lábio inferior, o que costumava me deixar bastante desconcentrado. – Até mesmo os pequenos detalhes.

Olhei para cima, para os pequenos detalhes brilhantes do céu. Ao longe, na cidade, era possível ver o Ministério da Capital, erguido como um castelo moderno. Consegui ver, de alguma forma em um pensamento repentino, uma pessoa, solitária, parada em frente à construção, aguardando.

Eu pensava que era apenas minha imaginação.

— Até mesmo os pequenos detalhes... – Repeti, deixando a fumaça se esvair de mim em um redemoinho de formas variadas que pareciam sólidas por apenas milésimos de segundos antes de se dissolverem na escuridão.

Subitamente, um raio cruzou o céu sem nuvens e, em seguida, mais outro. Nós dois nos sobressaltamos. O som cortante chegou em nossos ouvidos alguns segundos depois enquanto trocamos um olhar arregalado. Aby pegou o cigarro e fez com que ele se desintegrasse em cinzas ao vento.

Eu a segurei pela mão e assisti, sem ao menos piscar, quando um clarão de luz iluminou a cidade lá embaixo, produzindo fortes sombras escuras nas silhuetas dos prédios opostos a ele. Parecia uma cena que estivéssemos assistindo através dos reflexos vidrados de nossos próprios olhos.

Mais um raio atravessou a paisagem, desta vez na diagonal como se fosse formado por raízes contorcidas de uma grande árvore, estendendo-se para cima como se a terra tivesse trocado de lugar com com o céu naquele pequeno instante.

Abigail agarrou meu braço e observamos os quarteirões da capital, um por um, mergulhar nas sombras enquanto uma das torres do Ministério explodia em chamas e destroços. O som da festa cessou na sequência e pudemos ouvir gritos lá embaixo.

— É lindo, não é? – disse eu, com a mente vidrada na expansão repentina das nuvens vermelhas e escuras que foram substituídas por fumaça e poeira naquela construção distante.

Abigail se virou para mim, o rosto a poucos centímetros. Consegui sentir o calor que emanava da sua pele e imaginar a textura de seus lábios. Pelo reflexo de seus olhos, consegui ver melhor as estrelas que brilhavam sem as luzes da cidade para ofuscá-las.

Nos aproximamos ainda mais.

— Sim. É muito lindo.


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Notas finais do capítulo

Olá! Se você leu tudo, por favor, comenta aí o que achou e não se esqueça de acompanhar! Abraços e até mais!

Ps: É lindo, não é?



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