Faro Fino escrita por Human Being


Capítulo 1
"Algumas vezes você encontra a motivação. Noutras, a motivação te encontra." - Lispector, Clarice.




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Final da manhã de sábado, Arena de Atletismo do Ginásio Feminino do Santuário de Atena.

— Um, dois! Um, dois! – Um grupo de jovens Amazonas e  Saintias, agora indiferenciáveis pela ausência da máscara que cobria o rosto das primeiras, seguia dando voltas na pista sob a supervisão direta de ninguém menos que Shina de Cobra.

Que torcia a boca num muxoxo irritado enquanto olhava para as arquibancadas lotadas de Cavaleiros e aprendizes homens, agora permitidos no local pelas novas regras que regiam o Santuário.

Shina podia dizer, do fundo do coração, que detestava essas novas regras. Detestava.

Já não era fácil manter um bando de amazonas adolescentes na linha, imagine então misturadas às Saintias – originalmente treinadas para ser a ‘guarda pessoal’ de Atena e com quem as amazonas tradicionais tinham uma rixa aberta. O ginásio agora estava cada vez mais parecido com aquelas high-schools de filme americano de sessão da tarde,  onde meninas formam panelinhas para ficarem de fofoca e competição umas com as outras. E o fato de que os Cavaleiros e Aprendizes também podiam frequentar o ginásio feminino durante os treinos só piorava a situação, porque agora as garotas davam de ficar disputando a atenção dos seus espectadores.

Bem que ela tentou avisar que isso não daria em boa coisa. Mas se era o que Saori queria em nome da ‘modernidade’, quem era ela para dar opinião?

— Shô, pára de conversinha e concentra nessa corrida!!!  - Gritou, irritada, ao perceber que a garota e outras Saintias diminuíam o ritmo. Provavelmente para ‘sapear’ os espectadores masculinos do treino.

Shina deu uma olhada furibunda aos vários rapazes assistindo o treino e gastando o tempo livre que não deveriam nem ter. E ficou ainda mais agastada de comprovar suas suspeitas de que o burburinho vinha da chegada do Cavaleiro de Escorpião à arquibancada.

Milo já era uma pessoa insuportável por natureza, imagine agora que ele tinha um bando de adolescentes imbecis para lhe massagear o ego toda santa vez que ele aparecia no ginásio de treinos.

Sim, porque era só aquele bicho aparecer que as abestadas só faltavam sair voando de tanto fogo no rabo.

E é claro, óbvio, evidente e explícito que ele, agora que tinha um grupo de macacas de auditório, dava de aparecer nos treinos toda maldita tarde como se sua vida dependesse disso.

O pior é que nem dava para ela dividir o infortúnio dela com Gisty. Da última vez que tentou, a amazona de Vampiro se dobrou de tanto rir e ainda teve o desplante de dizer que ela ‘estava se mordendo de ciúme de um bando de molecas’. Obviamente que ela só dizia isso porque, em primeiro lugar, não era ela a responsável por treinar as garotas. Segundo, mas não menos importante, Gisty era uma doida varrida, não sabia porque insistia em ser amiga de uma criatura daquela.

Milo se postou ostensivamente diante da Arena, Shina quase conseguia ouvir o zumzumzum das meninas ao receberem o olhar dele. Acenou para ela como bom corregedor que era, aparentemente ignorando as jovens – como era de se esperar, aliás.

Claro que ele as ignoraria, mas continuaria ali fazendo pose para que as garotas se deleitassem e inflassem bastante o já enorme, imenso, abismal ego do Cavaleiro da Oitava Casa.

Shina teve vontade de responder ao aceno do outro com o elevar de seu dedo médio, mas manteve a compostura.

OOO

— Cara, é foda. – Aiolia resmungava ao lado de Shura, enquanto Milo ia se sentando nas arquibancadas do ginásio feminino. – Não sei se era isso que eu queria quando salvei o mundo, sabe.  

— Hn? – Shura revirou os olhos enquanto mastigava uma maçã.

— Olha lá. É revoltante. – Aiolia balançava a cabeça. – Um mundo onde temos um bando de admiradoras pra Milo de Escorpião? Não foi pra isso que eu salvei a Terra.

— Deixa o Bicho ser feliz com as Bichetes, cara. Tá parecendo o Afrodite, credo. – Shura esticou o pescoço e Afrodite, atrás dele, fez um muxoxo. - Aliás, falar em fã-clube... – Shura terminou de mastigar seu pedaço e rodou a maçã nas mãos com um sorriso torto nos lábios. – Teve notícia de Asgard?

— Não. - Aiolia travou imediatamente e Shura riu-se por dentro, tinha feito de propósito.

— Maldade, Aiolia. – Máscara da Morte aboletou a cabeça entre ele e Shura quase que num passe de mágica. – Faz mais de ano que a gente voltou a viver, cara. Agora que o pessoal de lá tá pra aparecer aqui numa visita diplomática, você não vai nem mandar um alô pra moça?

— Escutem aqui, dá pra vocês pararem? – Aiolia agora não estava mais irritado, estava nervoso. – Isso não é assunto pra se conversar aqui, pelo amor dos Deuses.

— Você acha que a Marin vai ficar brava de você ter dado seu pingente pra tua amiga? – Kanon perguntou, com cara de falsa inocência. – Imagina, cara. Vocês voltaram à vida em um país gelado e você encontrou um cosmo ardente para aquecer seu coração... Além do que a Marin é uma moça compreensiva. Ela vai entender que, como você tava morto, o compromisso de vocês tava tecnicamente terminado.

— O diabo que vai. – Shura deu de ombros. - Quero ver quando ela descobrir onde tá o pingente que era do Aiolos...

Aldebaran, sentado logo abaixo, segurou o riso enquanto Aiolia seguia tentando mudar o rumo da conversa para algo mais palatável (e menos perigoso) do que suas desventuras em Asgard comentadas bem ali, no ginásio de treinos das amazonas (e saintias).  

— ...Mas muito apesar do Aiolia estar se doendo de dor de cotovelo porque certamente duas ‘Aioletes’ não são problema suficiente para ele, ele bem que tem um ponto. – Afrodite resolveu dar essa colher de chá ao Leão Dourado. – Eu também não gosto de viver em um mundo onde temos Bichetes. E Aioletes, diga-se também.

— Cotovelo doendo tá o teu, Rudy, porque cê não tem a atenção das meninas. – Máscara da Morte riu. – E o pior, sabe o que é? Enquanto cês tão tudo aí na seca, era só o Milo estalar os dedos que as bichetes liberavam geral pra ele.

— ...Mas ô, gente. Sério? . – Kanon, que arrumava algo no bolso da calça, resolveu sair de seu silêncio para contribuir para o debate. – Porque se for, vocês não tão entendendo que é por isso que o Milo e o Aiolia tem fã-clube e vocês não

— Não entendi teu ponto, cara. – Shura pareceu se interessar.

— Elementar, meu caro Bode: Essas menininhas gostam de caras tipo essas historinhas açucaradas de ‘amor’ onde o príncipe encantado vai ‘respeitar a pureza delas’.

— Tipo, acham que não vão comer? – Máscara da Morte deu um risinho, enquanto Aiolia fechava a cara.

— Exatamente. – Kanon assentiu, e Saga, do seu lado, meneou a cabeça num gesto ambíguo. – Já caras como você, eu, o Shura, ou mesmo o Saga aqui, por mais que ele fale que não... Esses são perigosos, não respeitam, não inspiram confiança, etcétara. E o Afrodite... Bom, qual a garota que gosta de cara que briga com ela pelo secador de cabelo?

— Tomar naquele canto você não quer, né, seu tratante?

Kanon marotamente deu de ombros ouvindo a réplica um tanto indignada de Afrodite, enquanto Saga balançava a cabeça em reprovação a ambos.

— Realmente, Princesa(1), você tem uma má fama que te precede. Você e seu irmão, depois não sabem por que as meninas não chegam nem perto. - Aiolia estufou o peito. - Eu não sei quanto ao Bicho, mas eu sou um cara respeitoso mesmo e com muito orgulho. Bom moço, pra casar.

— Uma gracinha, a gente sabe. – Afrodite fez outro muxoxo. - A mocinha lá te dando o maior mole e você nem pra dar uns pegas na menina.

— Na minha terra chamavam isso de frouxo. – Máscara da Morte riu.

Aiolia iria dar ao Cavaleiro de Câncer uma resposta à altura, afinal seu colega da quarta casa avançou tanto quanto ele em relação à sua ‘pretendente’ em Asgard. Porém se conteve: sabia que, no caso de Máscara da Morte, a ‘corte’ foi interrompida pelo falecimento da jovem. E o Leão também não tinha como negar: Para os padrões de Máscara da Morte, ele foi respeitoso com a menina. Respeitosíssimo, e isso era extremamente incomum. Por isso sua intuição masculina lhe dizia que haveria de ter algum sentimento envolvido, então era melhor não cutucar o caranguejo com vara curta.

— Ih, olha lá. – Shura apontou o queixo para a direção de Milo, que a uma certa distância encarava o charlante grupo. – Tá olhando feio pra gente, o Temível Corregedor das Tropas, todo se mostrando pras bichetes.

— Oh, não,  lá vem ele. – Kanon esticou o pescoço para olhar para o cavaleiro da Oitava casa, que agora colocava as mãos na cintura. – Ui, socorro, acho que me borrei as calças.

— Assim, da última vez que vocês se pegaram numa briga, ele bem que te enfiou quinze agulhas escarlate. – Saga disse, bem despreocupado. - Se não me falha a memória...

Kanon vagarosamente virou a cabeça na direção do irmão mais velho, a boca torcida numa careta. Até tentou dar uma resposta à altura e para isso pôs seu dedo em riste, mas...

— Cavaleiros – Milo estava usando aquele tom de voz de ‘Corregedor’, o rosto sério e o nariz mais empinado que o costume.

— Opa, Milo, diga aí. – Máscara da Morte rolou os olhos.

— Vocês estão atrapalhando o andamento dos treinos das moças. – O Santo de Escorpião se empertigou.

— Ah, nós. – Afrodite deu uma risadinha irônica ao voltar os olhos para a ‘plateia’ de mocinhas que já se aboletavam para ver o Santo Dourado de Escorpião aplicar sua autoridade, a despeito dos protestos de Shina. - Por todos os deuses do Olimpo, que desgosto...

— Desgosto por quê, Peixes?

— Porque, Corregedor, me é triste constatar que as pivetas estão atrapalhando o próprio treino para ficarem secando sua bunda. – Afrodite retrucou, ferino. – Como se ela fosse algo digno de nota.

Máscara da Morte e Kanon deixaram escapar uma risada anasalada, Shura e Aiolia fingiram que não era com eles.

— Afrodite de Peixes, eu sei que você não é lá flor que se cheire, com o perdão do trocadilho infame. Mas insinuar isso sobre as garotas? - Milo endureceu o rosto, olhando feio para Afrodite, Máscara da Morte e Kanon. – Até para tipos feito vocês três, isso é de uma vileza inédita. Não que eu esteja surpreso, estou mais para decepcionado. Assim sendo... Vou ter que pedir que os três engraçadinhos se retirem.

— Ah, é? – Kanon disse, ao se fincar na arquibancada em uma posição desafiadora de quem não sairia dali por nada desse mundo mesmo que os outros parecessem considerar a ideia de obedecer ao Corregedor. Saga franziu as sobrancelhas de leve ao ver o irmão encarando o mais jovem de forma absolutamente sardônica.

O típico tom autoritário de Milo costumava funcionar muito bem com os cavaleiros em geral; mas muito, muito mal com Kanon em particular. Havia também, claro, o ‘incidente’ que ele, com sua boca grande, acabara de mencionar.

Saga sabia que Kanon escolheu não reagir e até entendia sua motivação, mas muitos entenderam aquilo como uma derrota de seu irmão. Surpreendentemente, até o momento Kanon não se importou muito em desfazer essa impressão; tudo parecia ter ficado por aquilo mesmo...

Até o momento.

Sim, porque Saga conhecia o irmão bem melhor do que ao ponto de acreditar que Kanon simplesmente deixaria Milo passar batido com suas benditas quinze agulhadas. Ele sabia com praticamente cem por cento de certeza de que Kanon só estava esperando o melhor momento para cobrar sua dívida com juros e correção monetária.

Saga, em seu íntimo, apenas rezava –sim, rezava – para que esse ‘melhor momento’ demorasse mais a aparecer do que a paciência de seu irmão aguentasse esperar.

Mas, pelo visto, suas preces não foram atendidas porque agora lá estava ela: a oportunidade.

— Não me fiz entender, Suplente de Gêmeos?

Saga fechou os olhos, respirou profunda e calmamente. Levantou devagar, murmurando um ‘vamos pra casa todo mundo, tá na nossa hora’ que ele sabia que não iria funcionar.

Kanon seguia com os olhos pregados em Milo, ainda de braços cruzados em sua frente.

— Puta ideia boa do cacete, hein, Saga? - Desviou os olhos do mais novo para se fixar no rosto do irmão. - Nomear esse imbecil corregedor das tropas?

Afrodite assoviou e prontamente se levantou da arquibancada junto com Máscara da Morte. Shura e Aiolia já tinham tomado seu rumo antes que sobrasse para eles.

— Foi ideia do Gigars, na verdade... – Saga murmurou, apoiando o dorso do nariz nos dedos da mão direita. – Mas, enfim, vamos embora, já tava tarde mesmo.

— Deveria deixar que ele fique, Saga. – Milo empinou o nariz, aparentemente não gostando de ouvir que sua nomeação foi sugestão do antigo subalterno conhecido como Capacho do Grande Mestre. – Pelo visto ele anda sentindo falta de umas agulhadas. Garanto que são melhores para discipliná-lo do que você jamais foi.

Saga agora encarava Milo meio que incrédulo, porque ele simplesmente não conseguia conceber em sua cabeça como é que uma criatura podia se ajudar assim tão pouco.

— Deixa ele me tirar daqui, Saga. – Kanon rebateu em um tom falsamente suave. – Não foi ele que me enfiou quinze Agulhas Escarlates, se não te falha a memória? Então. Não vai ser problema nenhum pra ele repetir a proeza dos aposentos da Deusa. Né não?

— Não, Kanon, não me será problema algum. – Milo descruzou os braços, assumindo uma posição de combate neutra. – E nem vou precisar usar cosmoenergia.

— Então vem - O aludido riu, abrindo os braços convidativamente e mandando um beijinho no ar. – Mas dessa vez vê se me mostra de verdade a Picadura do Escorpião. Tipo que nem você mostra pro Camus, meu terrível corregedor.

A provocação surtiu o efeito esperado e Milo logo avançava para cima do irmão de Saga – que agora derreava a testa em seus dedos, desconsolado. Kanon desviou-se do mais jovem num movimento fluido, aterrissando no chão em frente à arquibancada. Apesar do contragolpe Milo não caiu e voltou a investir contra o mais velho; e os dois teriam se engalfinhado até rolarem no chão de terra batida - não fosse pela intervenção direta de Shina de Cobra ao se interpor entre dois Cavaleiros de Ouro e, com seu ato de coragem, forçar um relutante Saga de Gêmeos a também assumir posição para evitar o embate.

— Muito bem, Kanon! – Milo tentava pular a amazona para quebrar os dentes do outro, segurado a duras penas por Saga. – Muito poderoso o Suplente de Gêmeos, que precisa se esconder embaixo da barra da calça do irmão!!!

— Não seja por isso, bichinho que se esconde em barra de saia de amazona de prata! Que quando eu me soltar desse outro aqui não tem quem me segure de eu fazer você enfiar todas as suas quinze agulhas no seu c-

— Nenhum dos dois galinhos de briga vai enfiar nada no de ninguém!!! – Ela agora empurrava Milo para um lado, enquanto Saga seguia segurando o irmão. – CHEGA dessa palhaçada no meu campo de treinos, fora daqui vocês todos, já!!!!!

— Ele estava desrespeitando as meninas! – Milo seguia tentando ultrapassar a amazona. – Teve a audácia de insinuar que as meninas estavam me secando e-

— EU DISSE FORA!!! – Shina finalizou o berro com um safanão. – Fora, Saga de Gêmeos; Fora, Kanon de Dragão Marinho; e FORA MILO DE ESCORPIÃO TAMBÉM!

— Ah, é assim? Pois então a senhorita que se VIRE com esse bando de imbecis importunando as SUAS amazonas, eu não tô mais nem aí!!! – Milo, de dedo em riste e dentes rilhados, soltava faíscas por seus olhos azuis. – E o senhor, Suplente de Gêmeos, o senhor ME AGUARDE!

— Nossa, que medinho, acho que não durmo nunca mais. – Kanon retrucou, ainda sob o agarre de Saga. – Marca o dia e a hora, que eu te dou a surra da tua vida!

— CHEGA, Kanon, pelo amor da Deusa. – Saga agora arrastava o irmão. – Você já tá velho demais pra isso, ficar arranjando briga desse jeito. Com o Milo, ainda por cima...

— Como assim ‘com o Milo, ainda por cima’? Esse...

— CHEGA você também, Milo! – A voz de Saga trovejou. – Pega teu rumo, senão eu solto esse daqui!

Milo torceu a boca numa careta, segurando nos dentes a vontade de replicar um mal-educado ‘agora solte’. Mas se conteve a duríssimas penas, virando nos calcanhares para sair dali pisando duro e chispando de ódio.

Dispersado o tumulto, Shina de Cobra relaxou os punhos.

— Pelos deuses do Olimpo, que dia. Que dia!!!

OOO

— “Com o Milo, ainda por cima”. “Com o Milo”, duas caras maldito, metido a besta, se acha grandes coisas porque usurpou o posto de grande Mestre...  

Cerca de duas horas depois do perrengue, Milo voltava a rondar a região das arquibancadas da arena das amazonas e saintias, agora que o treino das meninas tinha acabado.

Depois de enxotado pela maldita amazona de Cobra, ele saíra dali para treinar sozinho em uma área mais afastada do Santuário. Isto é: uma área onde ele pudesse descarregar em relativa segurança toda a sua raiva por ter sido impedido de dar àquele bastardo, traidor, maldito Kanon de Dragão Marinho dos infernos a lição que ele merecia. E ele ia bem enfiar não só quinze agulhas nele, mas umas trinta, quarenta e cinco, sessenta putas agulhas naquele infeliz, ia ficar mais furado do que peneira aquele filho de uma grandessíssima meretriz.

Foi impedido porque aquele covarde, maldito covarde dos infernos se escondeu rapidinho atrás do irmão duas-caras, arrogante, metido a besta que nunca valorizou seu trabalho como deveria; em vez disso voltou com toda a carga para encobrir as merdas do irmão mais novo e encrenqueiro.

E a Shina de Cobra, aquela outra, ainda achava bonito sair gritando com ele como se ele fosse um soldadinho raso qualquer, e não o Corregedor das Tropas que, sim senhor, ó grande Saga de Gêmeos Traidor-Duas-Caras-que-morra-e-vá-pro-inferno-de-novo-sentar-no-colo-do-capeta, fazia muitissíssimo bem o seu trabalho.

Afinal, se não fosse por ele, aquele maldito Santuário já teria se consumido em si mesmo sob a tutela de gente como Kanon de Dragão Marinho, Saga de Gêmeos, Máscara da Morte de Câncer, Afrodite de Peixes e companhia ilimitada. Ilimitada mesmo, porque só o que tinha naquele lugar era gente sem caráter, sem vergonha, capaz de fazer as maiores barbaridades e nem sequer sentir a cara tremer. Aliás, se era para pensar bem direitinho, tinha sido exatamente isso que aconteceu durante o período em que Saga surrupiou o posto de Grande Mestre, não tinha?

Enquanto andava abaixo da arquibancada onde se deu ofrustrado embate, seus pés acabaram atingindo algo além dos pedregulhos que vinha chutando em seu caminho – algo esse estranho o suficiente para chamar sua atenção mesmo que o objeto fosse chutado para longe. Foi até ele; e ao chegar ao arbusto onde ele aterrissou parte de sua irritação se transmutou em surpresa.

Parte, apenas, porque a outra parte de sua irritação permaneceu ao constatar que acabara de chutar um maldito maço de cigarros em plena arquibancada da arena de treinos das amazonas e saintias.

Abaixou-se e pegou o maço, ainda aparentemente cheio. Pois sim, era só o que faltava, fumante no Santuário de Atena. Vício mundano, desses que fazem mal à saúde e tudo o mais. Fim dos tempos, pensava Milo, e abriu o maço para ver quantos malditos cigarros havia lá dentro. Isqueiro de plástico, e...

Quase caiu para trás.

“Não pode ser”, pensava um atônito Milo enquanto olhava para o maço de Marlboro Light.  Só que não eram Marlboros que estavam ali.

— Isso é gravíssimo. Gravíssimo!!!

OOO

Perto dali, Máscara da Morte, o outrora temível psicopata protetor da quarta casa zodiacal, rumava em direção a Rodorio apesar do implacável calor grego. Não que sua casa estivesse muito mais fresca, mas seria duro encarar quase quarenta graus à sombra – sem sombra – no caminho do árido Santuário até a pequena vila.  

Contudo, a cerveja tinha acabado em pleno horário de almoço de sábado; e ficar sem cerveja no sábado à tarde era para ele uma situação tida como incompatível com sua nova vida. Pelo calor do sol a pino achou que sua caminhada seria solitária, mas...

— Ah, caralho! – A voz deveria ser de Saga, mas ‘caralho’ não era uma palavra que usualmente pertencesse ao seu léxico. Então o homem alto, forte e esbelto com as nádegas em riste e joelhos no chão diante de uma moita próxima do campo de treinamento das amazonas e recém-integradas saintias deveria ser Kanon, e não o Primeiro Cavaleiro de Gêmeos.

— Ei, cara, assim – Máscara da Morte torceu a boca. – Eu já tô tendo que sair de casa no meio desse calor insuportável, não precisa ficar com essa bunda pra cima e estragar a minha vista.

—  Hn – Kanon continuou como estava, bunda para cima e rosto quase que metido dentro da moita. E isso sim soou estranho ao colega de Câncer: Kanon não parou o que fazia nem sequer para manda-lo à merda.

— Tá procurando alguma coisa, Princesa?

— Tem que estar aqui, essa porcaria... – A voz do outro foi abafada pelo barulho de galhos sendo remexidos por suas mãos, e Kanon enfiou ainda mais a cara dentro da folhagem. – Só pode ter caído por aqui esse maço, não é possível...

— Pera lá, cê perdeu um maço de cigarro?

— Hã? – A expressão ‘maço de cigarro’ foi capaz de tirar Kanon do seu transe. – Mas ô, que é isso, cê tá aqui até agora admirando meu fundo? Tô te estranhando!

— A culpa não é minha que cê tá aí de bunda pra cima com a cara enfiada na moita. Geralmente as pessoas fazem o contrário: Deixam a cara pra cima e enfiam a bunda na moita quando...

— Sério que você vai fazer essa piada? – Kanon levantou, agastado, quase que idêntico ao irmão. – Te dava mais crédito do que isso, sinceramente.

— Enfim, enfim. E por que diabos cê tava de cara na moita?

— Tava procurando um negócio aí. – Kanon respondeu. – Deve ter caído por aqui, só pode.

— Um maço de cigarro?

— Não! Não, na verdade não, eu...

— Você disse ‘maço’, eu ouvi bem direitinho você dizendo que estava procurando um maço. Maço eu só conheço de cigarro ou de dinheiro. E de dinheiro... Bem, quem perde um maço de dinheiro vivo quer logo é que todos saibam para que, caso encontrado, todos saibam do que se trata e de quem ele é, né não?

Kanon podia ser muitas coisas, inclusive um excelente mentiroso. Mas para sua infelicidade, Máscara da Morte também era muito versado em assuntos mundanos, e perito em mentirinhas (e mentironas). E infelizmente para Kanon, foi justo o italiano que logo aguçou sua curiosidade ao vê-lo ali, procurando algo com mais afinco do que o normal para um maço de cigarros porém com menos afinco do que um maço de dinheiro graúdo.

Como se tivesse um pouco de receio de encontrar o que estava procurando.

Ou, pior ainda, de ser visto encontrando o que estava procurando.

— Fala aí, meu amigo. – Máscara da Morte tocou no ombro do mais velho e elevou as sobrancelhas de modo cinicamente cúmplice. – O que é que tem de tão especial nesse maço de cigarro, hein?

— Nada! Não tem nada não, quer dizer, não é um maço, eu nem fumo, é... – Kanon se afastou, e toda sua atitude corporal dizia que ele estava como que ‘pego com a boca na botija’.

Um barulho, porém, atraiu a atenção de ambos. Passos, Máscara da Morte podia ouvir, passos apressados que se aproximavam dali.

Kanon, em um pulo, foi até ele e o segurou firme, o dedo indicador em riste em um sinal inequívoco de silêncio enquanto usava uma de suas técnicas para esconder sua imagem e até mesmo seu cosmo através de uma Ilusão de Gêmeos.

— Mas...

— SHHH! – Kanon sussurrou, enfático. – Quieto, carcamano!

Lá estava Milo, pisando duro e com um olhar febril e obsessivo no rosto...

...E um maço de Marlboro Light nas mãos.

— Marlboro Light? Mas quem diabos... – Máscara da Morte sussurrou de volta. - ...Ei, pera aí, aquele não é o seu maço, é?

— Puta que pariu. – Kanon sussurrou entre os dentes. – Puta. Que. Pariu.

OOO


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