Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 11
E o diverso fulgor dos outros metais


Notas iniciais do capítulo

Foi culpa da lua ;). Com esses dois, a culpa é sempre da lua.



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Quando Anna Millman era criança, gostava de se escapulir de casa nas noites de lua cheia.

A sua única certeza na época, para além da presença constante do pai, era a de que, independentemente se estivesse em Itália, na Índia ou em qualquer outro lugar esquecido do planeta terrestre, sobre a sua cabeça encontraria sempre o brilho metálico das estrelas e, uma vez por mês, a mesma circunferência gorda e simpática que se impunha nos céus.

Mesmo quando se encontrava em Londres e o eterno nevoeiro que se misturava com a poluição atmosférica dos fumos industriais que não paravam de trabalhar dia e noite criava uma cortina negra que ocultava os corpos celestes, Anna tinha a segurança de saber que eles estavam lá.

Muitas vezes antes, nas suas noites de observação, era comum a inglesa ser mordida pelo bicho da curiosidade e da impotência por saber que nunca conheceria o lado oculto da lua, a face que nunca se revelava, mas aquilo tinha sido no tempo da completa inquietude.

Ao crescer, as dúvidas recorrentes de Miss Millman tinham adquirido uma natureza mais filosófica e menos corpórea.

Com pontualidade britânica, o eterno objeto de fascinação da inglesa iluminava e marcava o final do mês de fevereiro daquele ano, quando a loira saiu da cabana para a praia.

Era ponto assente que os astros não se tocavam, mas a força da lua longínqua puxava a maré variável, numa dança magnética inseparável.

O mar estava longe enquanto, deitado sobre a areia, em cima de um manto confecionado a partir dos restos de velas pretas, cosidos com pontos seguros pelas mesmas mãos que as tinham içado e descido, Tiago observava as estrelas que se refletiam como pontos de luz em vários tons de saturação de prateado na água do mar calmo.

Um astrolábio, o melhor amigo de um marinheiro perdido jazia, abandonado, aos seus pés. Ferrão já não precisava daquele instrumento para calcular distâncias em relação ao que não conseguia alcançar.

A hora tardia, a temperatura amena e a luz do luar impeliam a confidências. O mundo era só dos dois até o sol raiar e Anna sabia disso quando se deitou do lado do seu pirata e procurou ver o que ele via.

Ela queria partilhar com ele o pouco do seu conhecimento sobre a ordem natural das coisas, sobre o seu pensamento irrequieto:

— A lua. O símbolo do remoto e do impossível. O céu é caminho que não acaba mais. Nem com todo o tempo do mundo dá para contar todas as estrelas.

O Capitão voltou a sua cabeça para a loira e apertou a mão dela, deixando escorregar os dedos que se enlaçaram, contrapondo com esperança:

— Podemos sempre partir se soubermos que temos um local para onde podemos regressar. Não existem limites ou fronteiras. Um dia, o homem vai navegar até à lua e caminhar entre as estrelas.

Ambos acabaram rindo do excesso de sensibilidade de que tinham sido acometidos. A culpa era da lua e do seu magnetismo, que puxava para a tona o lado meloso do ser humano, açucarado ao máximo, quase impróprio para consumo.

Anna não respondeu de imediato ao comentário do pirata porque se lembrava do que tinha aprendido com a sua perceptora portuguesa, já era ela quase uma mocinha, e isso lhe calou o riso.

 Para além de lhe ensinar a língua, a senhora gostava de lhe falar das lendas do seu país e, reparando na fascinação da sua pupila em relação à lua, lhe tinha contado o mito que tentava explicar uma das manchas conhecidas da face visível do satélite.

Segundo a matrona de Trás-os-Montes, o borrão difuso se tratava de um homem que gritava sem ser ouvido porque, tendo sido apanhado em falta trabalhando a um domingo, teria sido castigado com o exílio perpétuo da Terra e preso para todo o sempre no seu satélite.

Mais do que a imprecisão científica, o pensamento que realmente tinha ficado marcado em Anna tinha sido o de perceber que, se alguém tinha sido castigado tão severamente por um pequeno erro, outros nunca teriam perdão possível.

Ela mantinha a teimosia de enfrentar tudo só, a incapacidade de dividir os problemas com Tiago, o que, mais do que o assustar, o mantinha apreensivo.

Ferrão sabia que, nas condições certas, mesmo o metal mais duro era maleável e elástico, mas Anna Millman não cedia um milímetro.

O único compromisso por parte dela tinha sido atingido apenas dias antes, durante o pôr-do-sol. Pela milésima vez, sentados no bote virado ao contrário na areia já que necessitava de reparação, o Capitão lhe oferecia a mão que ela não aceitava agarrar:

— Não tenho como te ajudar se você não se abrir comigo.

De olhos fechados, Anna sentia o calor do sol que ia embora e o rubor nos pontos da sua pele por onde se passeavam o nariz e os lábios do pirata, mas o único pacto que podia firmar seria acompanhado por uma cláusula temporal:

— Eu aguento tudo, menos que você se magoe por minha causa, Tiago. Espera até eu encontrar sozinha a melhor decisão. Confia em mim e, em breve, eu te conto tudo.

Ferrão acreditava nela, mas desesperava com a demora em ver a sua confiança depositada ser devolvida pela proprietária da sua vida.

Debaixo do céu noturno, ela procurava a sua estrela guia, um qualquer sinal do universo que lhe fizesse saber que caminhava na direção correta.

Anna sabia que misturar amor e revolução não podia ter êxito. Um passo em falso e não sobraria pedra sobre pedra na vida de quem amava.

A inglesa se enroscou no pirata que falava interiormente com a lua, pousando a cabeça em cima de um coração que batia forte, e interrompeu os seus pedidos com uma pergunta que vinha remoendo na sua cabeça:

— Onde está a sua família?

Ela notou uma leve hesitação na resposta, ainda que Ferrão a abraçasse sem dúvidas aparentes:

— Piatã está tocando os negócios e tomando conta da tripulação e do Marquesa.

Anna levantou a cabeça, reformulando a questão em termos dos quais ele não teria como fugir:

— Eu perguntei pela sua família de sangue, Tiago.

Pouco firme, o Capitão meditou por momentos. Se no céu existiam muitas estrelas que tinham testemunhado os fatos, na Terra eram poucas as pessoas que conheciam aquela história, mas, se queria fazer de Anna a sua pessoa, tinha chegado a hora de a partilhar.

Devagar e melodicamente, ele escolheu as palavras que lhe pareceram mais adequadas para reviver a sua vida em traços apertados:

— Quando eu era criança, tão pequeno que mal tinha aprendido a falar direito, os meus pais me levaram para um barco que me parecia ser do tamanho do mundo. Foi a primeira vez que vi o mar. Me lembro que fiquei de boca aberta quando a minha mãe me pousou na areia, enquanto o meu pai carregava as nossas coisas para a embarcação.

A verdade sobre Ferrão era também a verdade de todo um povo. O Brasil nunca tinha sido um país forjado por criminosos degredados.

Aquela era uma terra sonhada por pais e mães que queriam construir um futuro melhor para os seus filhos. Aquele era um país nascido da esperança.

O tempo convidava ao esquecimento, mas a verdade era a de que os alicerces da sociedade brasileira que crescia tinham sido montados pelos bravos anónimos que, enfrentando o risco do desconhecido, armados apenas com a fé de ser possível trabalhar e prosperar, tinham arriscado a vida numa viagem sem retorno.

Tiago libertava a torrente de recordações enquanto Anna as absorvia com o receio de conhecer a sua foz.

— Foi uma sensação estranha, sabe? Era tanta água que parecia não ter fim. Na nossa aldeia mal tinha um riacho.

A inglesa os rodou no abraço e os colocou deitados de lado, frente a frente um ao outro, acariciando a face e o cabelo de Ferrão enquanto ele procurava a coragem para prosseguir. Ela queria que ele soubesse que ela estava ali com ele. Ele percebeu e se sentiu pronto para continuar:

— Eu não sabia para onde a gente ia, mas os meus irmãos me diziam para não mostrar medo. A gente ia morar numa terra nova, uma terra boa onde a gente ia ser feliz.

Naquele momento, uma série de nuvens passageiras roubaram transitoriamente o brilho da lua. Na semiobscuridade daquela hora má, Anna mal conseguia ver os traços de Tiago, mas conseguia senti-lo através do tato e da voz que lhe chegava aos ouvidos e ao coração:

— Só me lembro que dentro do barco fazia frio e que estava escuro, mas a minha mãe me segurava nos braços. O chão balançava debaixo dos nossos pés, mas não fazia mal porque estávamos juntos. Passou muito tempo em que a gente mal percebia a diferença entre dia e noite.

Anna sentiu a dor do seu erro. Ela tinha tantos preconceitos, tantas ideias que procurava encaixar no seu modo de pensamento, que nem lhe tinha ocorrido a solução mais simples. Tiago tinha nascido português e, como tantos outros, ele e a sua família tinham cruzado o mar inclemente para começar uma nova vida.

— Uma madrugada rebentou um temporal como nunca mais voltei a ver na minha vida. Os raios caíam às dezenas de cada vez. Todos gritavam com medo, menos os meus pais que nos seguravam. Nunca mais me vou esquecer da cara do meu pai quando um mastro se partiu em dois e ele e o meu irmão mais velho foram arrastados para longe por uma onda negra.

Os olhos de Anna roubaram água ao mar, mas, pela primeira vez em muito tempo, Tiago já não sentia apenas raiva e revolta incontida ao recordar o seu passado. Iria doer para sempre, mas ele tinha finalmente encontrado a sua paz, uma razão palpável para acreditar que podia ser feliz de novo.

O pirata reconhecia ter vivido a abnegação do verdadeiro amor e isso o libertava das más memórias:

— A minha mãe ficou muito aflita e me meteu dentro de um barril vazio para me salvar. É a última coisa de que eu me lembro antes do barco ir ao fundo. Todos morreram e só sobrei eu…

A loira sabia ser aquela uma dor partilhada por muitos, mas que apenas Ferrão sabia sentir e, por isso, não se atreveu a palavras de consolo que lhe pareceriam sempre insuficientes.

Um dia, iriam descobrir que o mar salgado era feito das lágrimas do povo português. Da massa líquida tinham emergido e os tinham visitado de mãos dadas desgraça e glória.

Conscientes dos perigos, os habitantes lusos tinham sonhado em tocar no infinito, mas muitos se perguntavam se a recompensa pelos sacrifícios passados era o suficiente para suportar as desgraças humanas. A alma não tinha tamanho, mas corria sempre o risco de encolher.

As nuvens negras se eclipsaram, permitindo que a lua fosse testemunha do beijo entre Anna e Tiago, iluminação natural de um evento sobrenatural de reencontro entre uma alma gémea que reconhece a sua outra de encarnações passadas.

A curiosidade em perceber o rumo daquela história e em conhecer tudo o que havia a saber sobre o passado do pirata tomou conta da inglesa e ela acabou colocando uma pergunta de incentivo:

— O que aconteceu depois, Tiago?

Ele prosseguiu, deixando evaporar o peso do passado:

— Aguentei dias sem beber e sem comer até que vim parar a uma praia como esta.

O primeiro e único pequeno sorriso de recordação tomou conta de Ferrão quando concluiu a sua narrativa:

— Aí me encontraram e me pegaram para criar.

— Quem?

Em Tiago, a sinceridade e a oportunidade de alfinetar a loira andavam sempre de mãos dadas. Ele não ia deixar passar a chance, distraindo a inglesa com beijos dispersos pela área do pescoço:

— Isso é o início de uma outra história, Marquesa. Uma que eu te vou contar em breve.

Ela compreendeu que não se tratava de a afastar da vida dele, mas de lhe dar a oportunidade de absorver aos poucos o que podia ser muita informação.

Todavia, Anna Millman precisava entender no imediato a razão da incoerência de Ferrão se ter dedicado ao mesmo modo de vida que lhe tinha roubado toda a família:

— Depois de tudo isso, você decidiu se tornar marinheiro? Porquê se torturar desse jeito?

— Na época, não tinha medo de nada, senão do mar. Por isso me fiz pirata. Para aprender a viver tinha que vencer o meu medo todos os dias e fazer algo de bom com isso.

Se já não estivesse perdidamente apaixonada por Tiago, Anna se teria enamorado por ele naquele momento. A loira tinha encontrado no criminoso procurado a personificação de honradez e valentia que pensava só existir em livros:

— Não tinha medo de nada… de que é que você tem medo agora?

— Tenho medo de que o mar te leve para longe de mim. Tenho medo de nunca mais te ver, Anna Millman.

Pelo seu corpo de mulher passaram química e física condutíveis, e ela se sentiu atravessada pelo brilho das estrelas refratadas e refletidas em mil pontos nos olhos de Ferrão.

Anna viu a lua e as estrelas em toda a sua plenitude e se sentiu capaz de transformar o infinito num laço e carregá-lo para sempre junto ao peito:

— E se eu também quiser ser a sua família?

Ele sorriu e deixou que a sua voz se emocionasse, num registo grave de quem conta um segredo:

— Você já é. Para sempre vai ser.

 Anna já não era feita de gelo saxão, mas de fogo dos trópicos, lume atiçado que a ruborizava e lhe remexia nas entranhas como um caldo quente. Aquele momento só podia já ter sido escrito nas estrelas:

— Eu te amo, Tiago Ferrão. Essa é a minha única certeza.

Momentos antes de aprenderem que era possível tocar no céu antes de voltarem à Terra, eles eram tronco e membros de pele beijada pelo luar, ebuliente de metal precioso, superfície brilhante como que coberta por pequenos fragmentos de pó de prata.

Daquela vez, Ferrão não teve objeções a colocar enquanto a inglesa o despia e beijava as marcas de guerra que ela tão bem conhecia, sendo ajudada por ele a se desfazer do vestuário imposto.

As regras estabelecidas eram inúteis. Dois corpos podiam ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.

Sem partirem daquele seu porto dos milagres, eles viajaram pelo cosmos, conheceram as mais profundas maravilhas do universo e largaram âncora dentro um do outro.

Uma onda de energia pura se libertou e ecoou pelo mundo, cortando o ouvido de quem estivesse atento à sua presença.

 As duras placas do fundo marítimo tremeram e deixaram antever falhas que libertaram pressão acumulada, se movendo alguns centímetros, ao mesmo tempo que, do outro lado do mundo, várias alcateias levantaram em uníssono a cabeça e uivaram cânticos milenares de antigos lobos guerreiros.

Para Anna, recuperando da viagem acelerada dentro do carinho de um abraço de quem chegou ao destino, apenas uma comparação precisava ser referida:

— A lua também tem cicatrizes, my love.


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Notas finais do capítulo

Aí pelo meio teve, como não podia deixar de ser, uma referência a um conhecido poema de Fernando Pessoa ;). Beijo para todos!



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