Demônios Interiores escrita por Leh Linhares


Capítulo 1
Arsonist Lullably


Notas iniciais do capítulo

Vamos lá, espero que vocês gostem!
É inspirado na música Arsonist Lullably- Hozier https://www.youtube.com/watch?v=yEtkIRlz7Vw
Recomendo ler ouvindo!



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Quando eu era criança eu ouvia vozes, algumas claras e outras mais difíceis de entender. Escutava claramente os gritos da minha mãe sendo morta mesmo muito antes daquilo realmente acontecer. Vi minha irmã ser assassinada, executada junto da mãe antes de ter a chance de conhecer o nosso pequeno mundo chamado Arka.

As imagens e os sons sempre foram fortes o suficiente para me fazerem ficar calado, para me fazerem crescer mais rápido do que deveria. Minha irmã, minha responsabilidade. Era a única frase que eu repetia tentando silenciar todos os gritos da minha mente.

Eu não percebi na época, mas o nascimento de Octavia determinou quem eu seria e com quem eu andaria. A criança alegre e falante desapareceu, pois ela tinha medo demais de acabar revelando mais do que deveria. Não que alguém, além de mim, tenha realmente notado. Passei a usar dos mitos que minha mãe costumava me contar como fuga e refúgio. Um lugar mesmo imaginário que eu podia fugir para ser eu mesmo e não o irmão ou filho de alguém.

Estar na escola era torturante. Eu tinha tanto medo de que um dia quando eu voltasse as duas não estivessem mais lá. Tinha medo de no final eu não ser o suficiente para salvá-las. De que exatamente por minha culpa elas fossem descobertas e consequentemente mortas. Eu não vivia, só existia no chão da Arca, apavorado demais para ter amigos ou ter conversas banais com pessoas no refeitório.

Me lembro da única vez que deixei escapar seu nome, da surra que levei de Aurora. Todo tipo de contato colocava em risco Octavia. Eu não podia dormir na “casa” de um colega, não podia ser uma criança normal, porque eu tinha uma filha mesmo não sendo pai. Era arriscado demais ter amigos. Um risco, que para Aurora, era desnecessário correr. Eu não podia ter mais ninguém além delas.

Talvez se eu tivesse tido uma mãe sã as coisas teriam sido diferentes. Aurora perdeu o senso da realidade poucos anos depois do nascimento da filha. Era normal que ela passasse o dia trabalhando e a noite com qualquer cara que se oferecesse para ajudar com a nossa sobrevivência. Ela saia com eles em troca de comida, roupas, dinheiro, tudo o que você possa imaginar.

Me fazendo sentir mais impotente do que qualquer outra coisa. Mesmo criança eu sabia o quão humilhante e errado era aquilo. Nunca tive coragem de confrontar Aurora sobre isso. Era normal ouvir dos meus colegas da escola novidades sobre com quem ela estava dormindo e brincadeiras muito desagradáveis sobre quem seria o meu pai.

Informação que por sinal Aurora nunca me deu, ela costumava dizer que eles não nos mereciam, mas não sei se isso algum dia foi verdade. Talvez minha mãe nem soubesse quem eram os nossos pais afinal. Segundo a Arca, Aurora nunca fora santa.

E eu sei que ela fazia aquilo tudo para nos sustentar, porém era inevitável não sentir raiva dela ás vezes. O quanto eu não perdi para cuidar da Octavia? Para cuidar dela quando ela estava bêbada ou tendo um dos seus episódios psicóticos?

Lembro de socar meu travesseiro com o máximo de força quando sabia que as duas estavam dormindo. Como eu queria ser livre, ser liberto de toda essa responsabilidade que uma criança não deveria possuir. Com o tempo me acostumei com a responsabilidade e aprendi a lidar melhor com as frustrações, a ser um pouco menos de mim mesmo para ser por elas, a jogar toda raiva que eu tinha pelo o que não tinha vivido em noites esporádicas de sexo sem compromisso.

Não que fossem muitas já que minha vida se resumia a elas. Nunca poderia me envolver realmente com alguém ou ter amigos de verdade. Por mais que fosse Octavia que não pudesse sair, eu também estava preso na mesma prisão. E aprendi que fazê-la feliz era a única maneira de me fazer feliz.

Por isso decidi levá-la aquele maldito baile, não cogitei tudo que podia dar errado e agora sou obrigado a dormir todos os dias ao som dos gritos da morte da minha mãe e de Octavia sendo levada para uma solitária.

Ao menos ela não está morta era o mantra que eu repetia o tempo todo. Quando a culpa era forte demais e eu me via obrigado a gastar todo pouco dinheiro que ganhava como zelador em bebida. Precisava esquecer e essa era a única maneira de fazer isso. Eu bebia o tempo todo, ia trabalhar cheirando a álcool e de ressaca. Eu sabia que não existia razão em viver já que a morte de Octavia era questão de tempo.

Logo eu ficaria enfim sozinho, vivendo uma vida miserável. Vivendo com uma culpa tão forte e excruciante que eu provavelmente acabaria me matando. Deus sabe quantas vezes eu encarei meus pulsos querendo acabar com tudo aquilo logo.

O que eu nunca fiz, porquê nunca me achei merecedor da morte. Eu não merecia paz, não merecia que tudo terminasse, quebrei as únicas duas promessas que fiz na vida. Matei as únicas duas pessoas com quem eu me importava e o único jeito de pagar por isso era existindo nessa realidade miserável. Era sentir cada fragmento da dor até não conseguir mais.

Quando recebi a proposta de matar Jaha, não pensei duas vezes. Se estavam mandando Octavia para algum lugar eu precisava ir junto. Precisava garantir que dessa vez nada sairia errado, que eu a protegeria de tudo e que nenhum daqueles delinquentes ou a radiação da Terra a matariam. Custasse o que fosse.

Não desci por mim, não pensei em mim, naquele momento eu nem sabia o que era isso. A arma tremia na minha mão, as lembranças do grito de Aurora dizendo:

“É sua culpa, Bellamy! Você deveria protegê-la!”

 Não silenciavam. Eu não queria matá-lo, não queria que mais ninguém morresse por minha culpa, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Eu podia ser covarde, guardar a arma e abandoná-la. Lembro de cogitar essa possibilidade por um segundo e um grito ensurdecedor invadir minha mente. A mesma voz de sempre: Aurora:

“Sua irmã. Sua responsabilidade”

Octavia precisava de mim, ela era e sempre seria minha responsabilidade. Atirei e como prometido consegui entrar na nave. Sentado com o cinto de segurança acionado a procurei. Vi tantos rostos que hoje conheço, porém naquele momento nenhum deles importava. Eu só queria saber onde ela estava abraçá-la e garantir que tudo ficaria bem, que eu não a colocaria em risco de novo nunca mais.

Quando a nave pareceu sair do controle consegui ouvi-la. A verdade é que mesmo com tantos meses passados ainda podia reconhecer sua voz entre quantas fossem. A escutei gritar e fechei meus punhos com raiva. Nós devíamos estar juntos, ela não deveria passar por isso sozinha e se nós dois morrêssemos antes da nave decolar? Era o único pensamento que eu tinha.

Quando finalmente pude abraçá-la foi inacreditável, uma alegria indescritível. Como recuperar uma parte minha. E eu soube novamente que minha irmã seria para sempre a única coisa que eu teria, a única que realmente importaria.

Vê-la livre descendo da nave é até hoje uma das minhas memórias favoritas. Quantas vezes sonhei em vê-la perambulando pelos corredores da Arka, indo à escola, dividindo a vida comigo, mas permiti-la ser a primeira pessoa a pisar na Terra foi mil vezes melhor que todos esses sonhos.

O que eu faria para voltar a essa época? Aos poucos dias em que mesmo sem perceber fui feliz. Não tenho mais Octavia, ela me odeia e dessa vez é de verdade, dessa vez nem pedir desculpas adiantará. Arranquei dela seu grande amor, é minha culpa Lincoln estar morto. É minha culpa a mãe dela estar morta. É minha culpa ela não estar segura.

Não sei por que acreditei que era capaz de cumprir as duas promessas que fiz em vida. Não sou e nem nunca vou ser. Octavia me odeia e eu também me odeio. Talvez até mais que ela.

Traí meus amigos, matei mais pessoas do que posso contar e eu só me odeio por ter me tornado essa pessoa. E pela primeira vez desde que desci a Terra checo meus pulsos de novo. Estar vivo é um risco para todos a minha volta. Um risco que eu não estou mais disposto a correr.


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Notas finais do capítulo

Reviews?
Talvez alguém querendo me matar
Digam o que acharam



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