O testamento da guerreira. escrita por Alba Diniz


Capítulo 1
................... O pesadelo.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/705984/chapter/1

Os anos se passaram e havia paz em todo principado de Crydee.

Cavalgamos por horas pelos vales e planície. Chegamos perto de algumas fazendas e aldeias apostando corrida ao longo do rio. Por fim paramos no alto de uma colina. Sobre meu cavalo olhava a planície, o rio e todos arredores de Cymru.  Suspirei profundamente e soltei o ar sem pressa. A Princesa ao meu lado olhava os campos pontilhados por rebanhos e seus pastores. O sol criava reflexos dourados sobre as colinas e o céu no horizonte começava a mostrar leves tonalidades róseas, mescladas com tons alaranjados e cinza claro. A tarde chegava ao fim. Com um toque nas rédeas viramos os cavalos e retornamos para o castelo.

A noite chegou com seu manto negro e a agitação do castelo deu lugar ao silêncio. Era uma noite estranhamente silenciosa, não se ouvia o habitual som das criaturas noturnas nem o vento agitando as folhas das árvores. Um sentimento inexplicável me inquietava o coração.

...........................................

Cyrene tinha se levantado cedo, antes do sol aparecer no horizonte como sempre fazia. Penteou os cabelos já grisalhos, fez uma trança e sua higiene matinal. Já era hora de começar a organizar as tarefas na cozinha do palácio. Ao chegar na cozinha assustou-se ao me ver sentada à mesa.

— Chennai? O que houve? Você está bem? - Ela pergunta assustada.

— Não é nada mãe. Perdi o sono e senti fome. - Respondi mostrando o bolo faltando um pedaço.

— Ah querida, não assuste mais uma velha dessa maneira... - Cyrene responde abrindo um largo sorriso. Sentando-se ao meu lado ela continua. - Faz tempo que está aqui?

— Um pouco. - Respondi.

As mães têm o dom de pressentir quando alguma coisa está errada e me encontrar sozinha na cozinha aquela hora já mostrava que algo não estava bem.

— O que aconteceu minha querida? - Cyrene pergunta.

— Tive um sonho terrível. - Respondi.

Acariciando meus cabelos ternamente ela disse: - Sonhou com o quê?

— Eu estava na sala de uma torre quadrada sobre um enorme penhasco, de repente uma névoa escura encheu a sala e nela eu via sombras que diminuíam e aumentavam de tamanho. Senti um frio no coração, como o frio da morte. Na única porta da sala apareceu a figura gigantesca de um guerreiro. O rosto estava escondido por um elmo onde só se via o vermelho infernal dos olhos que brilhavam. Senti uma terrível malignidade emanar daqueles olhos. Tudo naquela sombra era negro, impenetrável e monstruoso. Sabendo instintivamente do perigo que estava correndo, quis me mover, mas não conseguia. Ele desembainhou a espada e aproximou-se. Cheguei a sentir no rosto a respiração dele e senti a lâmina transpassando meu corpo. Acordei com meu próprio grito.

Minha mãe me observava e compreendeu que a experiência tinha mexido comigo.

— Acha que esse sonho tem algum significado? - Cyrene pergunta apertando minhas mãos.

— Não sei dizer mãe, mas sinto que em breve, essa nossa paz irá acabar. - Respondi com os olhos marejados.

 ...........................................

O verão chegou e a tranquila cidade se transformou para as festividades do Solstício de Verão. Cymru anunciou por todo principado a realização dos seus famosos torneios. Nesse período de festas a cidade abria os portões para todos.

Era uma organização grandiosa. Foi sob esse clima que as comitivas começaram a chegar a Cymru. Uma chuva de pétalas coloridas caía sobre os competidores que passavam pela entrada. Todos os representantes dos ducados estavam alegres e confiantes.

Mesmo com tanta gente chegando e com os preparativos para o banquete que oficializaria a abertura do torneio, Kurgan não se descuidava da segurança da cidade. Por determinação do falecido Lord Borik um homem chamado Erin foi posto como seu imediato no comando. Ele sabia lutar bem, mas o sorriso falso e o olhar de serpente traiçoeira incomodavam Kurgan.

— Não ordenei que fosse verificar os muros? - Kurgan diz se dirigindo a Erin.

Recostado num pilar enquanto observava as criadas arrumando a mesa para o banquete, o homem responde sem se importar com a ordem do capitão: - Os muros continuam de pé.

Com os olhos faiscando de raiva Kurgan da nova ordem. - Pois volte e os observe com atenção. Quero saber de avarias e danos e não volte sem essas informações.

Por segundos Kurgan percebeu um brilho de raiva no olhar de seu imediato, mas o homem desvia o olhar, vira-se e sai para cumprir a ordem.

...........................................

Escovava meu cavalo quando a Princesa chegou no estábulo. Estava linda vestida com sua roupa de montaria, com peças de couro sobrepostas e uma bela capa vermelha sobre os ombros. Os cabelos loiros presos numa trança caíam por seu ombro esquerdo e o rosto corado realçava ainda mais sua beleza.

Cumprimentei-a e ajudei a montar no cavalo, embora isso não fosse necessário.

— Se me permite, Vossa Alteza está linda. - Falei admirando minha amada.

Gabrielle sorri, acaricia meu rosto e pergunta: - Vamos começar nossa cavalgada?

— Antes de ir gostaria que visse uma coisa. - Montei e conduzi a Princesa para a muralha em direção ao portão sul. No meio do caminho apontei para o muro. - Está vendo?

A Princesa olhou na direção que apontei. Uma abertura com várias pedras faltando e pequenos montes de terra que estavam caídos no chão junto com as pedras, plantas cresciam entre os blocos. As vigas de ferro que entrançavam os blocos estavam expostas e corroídas de ferrugem.

— Erin inspeciona os muros e nunca avisou dessa rachadura! - Exclamei indignada.

— Se está com plantas crescidas, é sinal que já faz tempo que está assim. - Gabrielle observa irritada.

— Se sofrermos um ataque, mesmo com esses muros altos, conseguirão entrar. - Alertei.

— Precisamos avisar Kurgan. - Gabrielle diz e põe o cavalo para andar.

Seguimos para o castelo. A cidade estava em festa, dar uma notícia daquela apagaria um pouco a alegria da cidade, mas era necessário que se providenciasse o conserto o mais rápido possível.

Após ouvir meu relato Kurgan segue para o alojamento e ordena que Erin se apresente a ele imediatamente. Após a continência o subcomandante pergunta: - Mandou me chamar senhor?  

— Por que nunca me avisou da falha na murada do lado sul? - Kurgan pergunta procurando controlar a raiva.

Erin empalideceu, gaguejou algumas palavras, mas percebeu que não havia desculpa para sua negligência. Com seu comportamento dissimulado o subcomandante reconhece seu erro e humildemente pede desculpas. Kurgan sentia seu sangue ferver com o cinismo do homem. Determinou a dois soldados que o subcomandante ficaria sob vigilância, confinado em seu quarto no alojamento.

— Acredito que uma semana de confinamento será suficiente para você repensar as suas atitudes. - Disse o capitão encarando Erin.

Erin não se atreve a questionar nem desobedecer à ordem, mas olha Kurgan com ódio enquanto ele se afasta de volta a seus afazeres.

Dois dias antes do término das festividades o muro passou por uma reforma apressada. Eu pessoalmente vistoriava os trabalhos. As pedras rachadas foram removidas, as plantas arrancadas e as barras de ferro corroídas foram substituídas. Pedras menores eram entremeadas nas barras e presas por argamassa. 

Com a mão em concha acima dos olhos observei o céu, era meio-dia e o sol estava a pino, mas no horizonte nuvens se acumulavam e escureciam. Teríamos que contar com a sorte para que as repentinas chuvas de verão não chegassem nas próximas semanas.

................... Encontrando o inimigo.

Além de ser encarregado de abastecer a dispensa do castelo com caças. Morloch era também o Guarda-caça da Princesa. Era um homem misterioso que sempre se manteve distante de relações com os habitantes do castelo, mas desde a batalha contra a Irmandade das Trevas nos tornamos amigos.

Agora que ele não tinha a constante responsabilidade de organizar caçadas, pois a Princesa não se interessava pela matança de animais por diversão, os deveres o afastavam do castelo por vários dias, às vezes semanas seguidas, uma vez que mantinha seus batedores ocupados procurando caçadores clandestinos, possíveis riscos de incêndio ou bandidos acampados nas florestas do principado.

Com os sentidos alerta o Mestre de Caça percebe uma movimentação na mata. Os abutres denunciaram restos de um animal morto no dia anterior. Morloch imita o grasnado rouco de um corvo e passados poucos minutos os três batedores se juntaram a ele. Apearam na orla da floresta e seguiram a pé rastreando os caçadores. Ele levantou a mão e os três batedores pararam. A floresta estava aparentemente tranquila, mas os três sabiam que Morloch tinha os sentidos muito mais aguçados que os deles. Olhando entre as folhagens dos arbustos ele sinaliza para os batedores.

Caído na beira do córrego estava um javali recém-abatido por duas flechas. Um homem trajando gibão de couro marrom sobre uma cota de malha prendia às costas um arco longo e avançou para o animal. Junto com ele mais dois homens também armados de arco, flechas e espadas observavam atentamente os arredores, como se estivessem dando cobertura ao outro que estripava rapidamente o animal.

Dois deles eram altos, ombros largos, cabelos e barbas loiras e aspectos grosseiros de guerreiros. O terceiro embora pouco mais baixo, era forte como um urso, tinha a cabeça raspada, barba trançada e duas grandes cicatrizes no rosto.

Os batedores trocam olhares surpresos. - Caçadores clandestinos. - Sussurra um dos batedores.

— Não são caçadores. - Morloch afirma. - Eles estão armados com arcos longos de soldados e caçadores não usam esses trajes. Pelo tipo deles, das armaduras e desenho das armas parecem Saxões.

Morloch não tira o olhar do homem de cabeça raspada que agora carregava o animal sobre os ombros. Os homens se embrenharam na floresta. - Vamos segui-los. - Morloch ordena.

Durante quase uma hora os forasteiros foram seguidos até o local onde um grupo com doze homens estava acampado.

Escondidos atrás de pedras eles observavam o acampamento: - O que estão fazendo tão longe da fronteira? - Martin pergunta.

Morloch responde: - Parece ser um grupo de reconhecimento, provavelmente estão examinando a área... Martin você vem comigo. Vocês dois voltem para o castelo e informem ao Mestre de Armas. - Os dois batedores já se preparavam para partir quando um passo descuidado faz uma pedra rolar. O acampamento se agitou e os guerreiros gritando furiosos correram na direção das pedras.

— CORRAM! - Morloch gritou e todos dispararam pela floresta em direção aos cavalos.

Uma flecha passou por cima do ombro esquerdo de Martin zumbindo como uma abelha. Os quatro homens corriam a toda velocidade que suas pernas permitiam. De repente um batedor tomba com duas flechas cravadas nas costas. Pouco depois se ouviu um grito abafado e outro batedor foi morto.

Os dois homens que conseguiram alcançar os cavalos dispararam em direção ao castelo.

...........................................

Terminado o torneio Cymru voltava a tranquilidade e o castelo a sua rotina habitual. A Princesa convidou Kurgan e Aragon para participarem da ceia e assim poderíamos conversar sobre o torneio e os problemas da cidade. Todos aguardavam pela Princesa no grande salão. Eis que ela surge bela como sempre. Usava um vestido vermelho escuro com bordados dourados no acentuado decote e nas mangas compridas, um fino cinto dourado contornava sua cintura desenhando curvas que me faziam perder o rumo.

A grande mesa de madeira estava servida e farta com pratos de frutas, pães e bolos variados. As conversas e risadas enchiam o ambiente, alegrando a noite que apenas começava. Estávamos todos tão distraídos que não percebemos a noite avançar. Alegando compromissos pela manhã bem cedo a Princesa encerra a amigável reunião. Aragon e Kurgan a reverenciam e saem. Levantei-me e já me afastava da mesa quando ouvi seu chamado de volta. Terminei a noite nos aposentos da Princesa com o prazeroso calor do corpo nu de Gabrielle aconchegado ao meu, e nesse êxtase adormeci e sonhei.

O terrível sonho se repetiu. Acordei de um pulo sentando-me na cama, com falta de ar, desnorteada, suava como se estivesse junto à fornalha do castelo. Assustada Gabrielle também se senta e vendo meu estado abalado, ternamente me acomoda em seu colo tentando me acalmar acariciando meus cabelos, e nesse aconchego adormeci novamente.

...........................................

A Princesa me atormentava diariamente para que eu a ensinasse a esgrimir. O seu último argumento foi: O que farei se o castelo for novamente invadido? Vou me defender com agulhas de bordado? - Cedi mais por cansaço com a perturbação constante do que pela convicção de que ela viesse a usar a arma.

Passeio o dia preocupada com meus pensamentos, até um pouco desatenta, pois enquanto treinava com a Princesa, quase dei chance para um ataque bem sucedido. Mantendo a ponta da espada baixa, Gabrielle atacou dirigindo o golpe para meu abdômen. Mal consegui esquivar-me da estocada, bati violentamente com minha lâmina na sua espada desviando o golpe.

— O que há com você, Chennai? - A Princesa pergunta.

Sem vontade de dar explicações, apenas pedi que continuássemos o treinamento.

Gabrielle voltou a investir. Esquivei-me novamente e me afastei do alcance da Princesa. Numa distração dela, estendi o braço e agarrei-lhe o pulso da mão que segurava a espada. Fazendo com que rodasse, agarrei-a por trás pela cintura e puxei-a para junto de mim. Gabrielle se debateu com força, mas como estava atrás dela, pouco podia fazer para me atingir, a não ser reclamar.

— Foi trapaça!  - A Princesa exclama aborrecida enquanto se debatia.

— Não foi não. Vossa Alteza tem boa velocidade, mas insiste demais. Aprenda a ser paciente. Aguarde uma abertura e então ataque. Se perder o equilíbrio e a concentração, é certo que morrerá. - Respondi, dei-lhe um beijo apressado no rosto e empurrei-a sem cerimônia.

A Princesa virou-se e disse sorrindo: - Trapaceira! Abusando de um membro da família real? - Avançou para mim com a espada erguida.

A expressão de Gabrielle estava entre a raiva e a diversão. Ela avança devagar. Vestida com calças justas de escudeiro - para desespero de Lady Marna - A túnica masculina apertada na cintura pelo cinto da espada fazia suas formas sobressaírem escandalosamente.

Fiquei distraída com meus pensamentos por instantes. Admirava o que Gabrielle se tornara. A menininha mimada e caprichosa já não existia mais. O lugar agora era ocupado por uma jovem mulher segura e determinada, moldada por duras lições.

Num piscar de olhos vi a ponta da espada junto a minha garganta. Atirei minha arma no chão e sorri.

— Rendo-me Senhora! - Disse com tom de brincadeira.

Gabrielle abriu um grande sorriso e disse: - Estava sonhando acordada com o quê, Chennai?

— Estava me lembrando como Lady Marna ficou perturbada quando você vestiu essa roupa pela primeira vez. Uma condição nada nobre. - Menti.

Gabrielle sorriu: - Achei que Lady Marna fosse ficar de cama o dia inteiro. - Embainhou a espada sorrindo e continuou. - Quem me dera ter mais motivos para poder usá-las mais. São muito confortáveis.

— E também extremamente encantadoras. - Disse lançando um olhar malicioso pelo modo como a roupa envolvia o corpo curvilíneo de minha princesa e completei: - Embora eu esteja certa que isso se deve a quem a veste.

Gabrielle corou. Soltei uma risada, peguei minha espada e disse: - Acho que basta por hoje, Princesa. Não suporto mais que uma derrota esta tarde, se não teria que deixar o castelo por tanta vergonha.

A Princesa arregalou os olhos e desembainhou a espada. Rindo, recuei com a espada em posição de defesa. Gabrielle me aponta a espada com olhar irritado e diz: - Não gostei desse tipo de gracejo.

Percebi que meu gracejo tinha realmente irritado a Princesa. Ela investe e eu aparo o golpe fazendo minha lâmina deslizar ao longo da dela até ficarmos corpo a corpo. Com a outra mão agarrei-lhe o pulso da espada.

— Não queira jamais se ver nessa situação. - A Princesa se debatia para se livrar, mas eu a tinha bem segura. – Possivelmente todos os seus adversários serão mais fortes do que você, e poderão dominá-la. - Dito isso puxei Gabrielle bruscamente e a beijei rapidamente.

Gabrielle deixa a espada cair e de repente me agarra. Puxando-me com uma força surpreendente me beijou com paixão. Respondi ao beijo com a mesma intensidade.

Quando nos afastamos, nos olhamos com uma mistura de amor e desejo. Um lindo sorrido enfeitou ainda mais aquele belo rosto. Em voz baixa ela disse: - Chennai, eu...

Nisso ouviu-se o sinal de alarme da muralha do outro lado da torre: - ABRAM OS PORTÕES! - O sentinela gritava e batia o sino repetindo o aviso.

Praguejei e corri para a passagem que levava ao pátio principal. Numa rápida olhada vi Gabrielle me seguindo. - Aonde você vai? - Perguntei com aspereza.

Com ar de desafio a Princesa me responde. - Para o pátio. Quero saber o que está acontecendo!

Dois cavaleiros vinham pela estrada sul a toda velocidade. O cavalo de Morloch vinha à frente seguido de perto por Martin. À medida que chegavam próximo da muralha sinalizavam para o sentinela. Os portões foram abertos e eles passam trovejando pelo arco do portão em direção ao pátio do castelo.

Morloch desce do cavalo, esbaforido aproxima-se e faz uma reverência para a Princesa que chegava ao pátio.

— Perdoe-me por meu estado Alteza... - Diz o Mestre de Caça.

— Calma homem, respire fundo. O que aconteceu? - Pergunta a Princesa.

Morloch contou que tinham encontrado uma tropa avançada de saxões no lado sul da floresta. Seguiram os rastros, se mantiveram por perto deles, mas foram descobertos e perseguidos, e perdera dois batedores na fuga.

 Ouvi a notícia como uma maldição e praguejei.

Não querendo correr riscos no que dizia respeito a proteção do principado, a Princesa ordena que sejam tomadas as precauções necessárias e que as aldeias fronteiriças sejam abandonadas. Convoquei o Mestre de Caça e nossos comandantes para a sala do conselho. Quando Kurgan e Aragon entram são informados da notícia e suas feições ficam apreensivas.

Kurgan diz: - Colocarei imediatamente todos os guardas em serviço para vigiar as muralhas.

Olhei para Aragon e disse: - Mande mensageiros para os ducados ficarem alertas para o caso de uma invasão.

Me dirigindo à Kurgan ordenei: - Prepare um pelotão com trinta soldados. Vamos fazer um cerco a esses desgraçados e capturá-los.

E me dirigindo à Morloch. - Encarregue Martin de um grupo de batedores e mande-os pelas florestas. Quero saber se existem outros grupos... Quanto a você, quero que me mostre onde eles estão!

— Imediatamente senhora. - Morloch responde e saímos da sala.

................... Uma serpente entre nós.

Em velocidade máxima cavalgamos em direção à parte sul da floresta, ordenei que cinco soldados ficassem guardando os cavalos; apeamos na orla da mata e seguimos pelo caminho indicado por Morloch, mas quando chegamos ao local não existia mais acampamento. O Mestre de Caça se ajoelhou para examinar as pistas deixadas pelos invasores. Após alguns minutos ele apontou para um caminho, alertando para redobrar a atenção, pois a mata se tornaria mais densa com muitos lugares sombrios onde um inimigo atento poderia estar à espreita.

Caminhamos por algumas horas quando repentinamente Morloch levanta a mão sinalizando para o pelotão se esconder.

Surgiram três silhuetas caminhando com cautela em sentido contrário ao que estávamos indo. Traziam os arcos a postos. Eram batedores que examinavam a retaguarda.

Um soldado agitou a folhagem chamando atenção dos invasores que foram cercados imediatamente. Mesmo em desvantagem reagiram e um deles foi morto. Ordenei que alguns soldados levassem os prisioneiros para o castelo para serem interrogados. Com Morloch e o restante dos soldados continuei a procura dos homens.

Após mais algum tempo de caminhada encontramos o restante do grupo. Sinalizei para que os soldados se embrenhassem pela mata formando um cerco. Embora em menor número eles reagiram com uma ferocidade surpreendente, em pouco tempo o local se transformou num campo de sangue e corpos mutilados.

Já era noite quando regressamos ao castelo com cinco prisioneiros. Mandei que os juntassem aos outros trazidos anteriormente e soube que Erin já os estava interrogando. Me dirigi ao castelo.

O pouco que se sabia sobre Erin é que ele era da aldeia de Thresk no ducado de Carse, e que com treze anos foi vendido como escravo quando sua aldeia foi invadida pelos nórdicos. Viveu sete anos como escravo em Duiblin. Tinha o corpo marcado por cicatrizes de lâminas e queimaduras. Seu ódio pelos nórdicos foi o que o manteve vivo por todo esse tempo antes de conseguir fugir com outros poucos homens. Conseguindo chegar à Cymru, recebeu abrigo de Lord Borik. Com o tempo mostrou-se um excelente guerreiro, ágil na espada e na lança, ascendeu rápido na hierarquia militar até se tornar o segundo em comando da infantaria. Talvez os olhos selvagens e traiçoeiros que incomodavam Kurgan viessem da convivência por tanto tempo com os nórdicos.

...........................................

Os prisioneiros foram conduzidos para a masmorra, mas os dois que foram capturados antes estavam separados numa cela escura, úmida e fétida no final da prisão. A única luz naquele recanto era um fogareiro com chamas bruxuleantes. Os dois já tinham apanhado bastante e sangravam. Erin os olhava com um sorriso sádico. Volta e meia um deles praguejava alguma coisa que não se entendia. Erin simplesmente olhava para os guardas e o espancamento reiniciava. Quando desmaiavam, jogavam água sobre eles e quando estavam novamente conscientes o espancamento reiniciava. Até que um deles começou a falar alguma coisa em língua nórdica que parecia uma súplica.

Erin se agachou perto dele com os olhos ameaçadores e pronunciou palavras que pareciam ameaças, amedrontando o prisioneiro. O outro nórdico cospe uma baba sangrenta no rosto de Erin. Com toda calma ele levanta-se e limpa o rosto. Tira do fogareiro uma adaga cuja ponta estava vermelha e dirigindo-se para o homem balançou a lâmina quente junto ao rosto do prisioneiro. Os olhos do cativo acompanhavam o movimento da adaga. Apavorado o homem agora implorava para que não fizesse isso.

Após uma breve reunião do conselho onde relatei o ocorrido, me dirigi à masmorra. Enquanto descia as escadas ouvi um grito medonho de dor. Corri para o local de onde veio o grito e encontrei um dos prisioneiros caído com uma grande queimadura no rosto. A ferida sangrava e fumegava, o cheiro de carne queimada encheu o ar normalmente já fétido me causando náuseas. Erin furioso berrava palavras compreensíveis apenas para os prisioneiros. Assustado o outro homem começa a falar hesitante.

 - O que ele está dizendo? - Perguntei.

Erin vira-se surpreso com minha presença. - Eles são mercenários dinamarqueses e estão a serviço dos saxões. - Erin foi traduzindo - Os saxões do Oeste e do Sul se juntaram e preparam uma invasão.

Senti o sangue gelar. - Onde eles estão e quantos são? - Perguntei e Erin pergunta ao prisioneiro.

— Estão se reunindo em Elmesate, junto à fronteira e devem ser por volta de mil agora, mas estão aguardando mais mil e trezentos. - Erin responde.

A notícia desabou sobre minha cabeça como uma montanha. Vendo que os prisioneiros não teriam mais utilidade, Erin os degolou com golpes rápidos, fazendo esguichar sangue nos guardas e em si. Assistiu com um sorriso sádico a morte dos dois.

Peguei Erin pelo ombro e o virando bruscamente disse encarando-o. - Isso não era necessário!

Com o rosto salpicado de sangue, sem nenhuma palavra Erin me olhava ensaiando um sorriso enquanto limpava a espada.

Ao que parecia Erin tinha um desrespeito total pelos outros, especialmente por aqueles de quem desgostava e ao que tudo indicava, eu e Kurgan estávamos nessa relação, e isso era perigoso.

 ................... Desafiando a realeza.

 Perdi o sono pelo resto da noite. Kurgan sempre me ensinou que para se conseguir informações de prisioneiros devemos vencê-los pelo medo, mas Erin sentia prazer em torturá-los.

Antes que o dia amanhecesse os membros do conselho estavam reunidos discutindo as informações que o mercenário dera. Imediatamente foram despachados mensageiros para os ducados convocando seus guerreiros, fizemos levantamento do número de soldados, armas e cavalos que tínhamos; examinamos os mapas da região e traçamos estratégias.                                    

Apesar de todas as patrulhas nas mais remotas áreas do principado terem sido alertadas, a cidade de Lundene foi atacada quando ainda tinha estrelas no céu. O líder da cidade ao ser surpreendido pelo ataque enviou depressa um mensageiro para avisar a Princesa sobre o fato. Só restava pedir a Deus que ele conseguisse chegar.

Os saxões iniciaram a invasão antes que os soldados tivessem chance de se organizar. Houve carnificina, o sangue tingiu as ruas. Homens, mulheres e crianças foram assassinadas brutalmente. Antes que o sol atingisse o ponto mais alto no céu, a cidade já estava destruída.

...........................................

Já era alta madrugada do segundo dia de viagem do mensageiro quando os sentinelas o viram se aproximar a todo galope saindo da escuridão. Abriram os portões e o levaram até o capitão. Ele tinha urgência em relatar o que tinha acontecido em Lundene.

Ouvimos as notícias alarmantes com o ódio revirando nossas entranhas. - Temos que fazer alguma coisa! - Diz a Princesa irada procurando com todas as forças controlar o choro e a revolta.

Enquanto examinava os mapas colocados na mesa, pensei num plano e comecei a explicá-lo. Kurgan, Aragon e a Princesa me ouviam com atenção.

— Sabemos que uma das características dos saxões é atacar de surpresa. Também sabemos que mesmo existindo outros comandantes de menor importância dentro do exército, eles devem obediência e seguem as ordens de um único líder.

— Sim sabemos disso. - Aragon interrompe.

— Se antes deles atacarem conseguirmos saber quem os está liderando e prendê-lo, provocaremos um rompimento interno, eles se desorganizarão. Cada comandante vai querer assumir o lugar do líder e as disputas internas vão passar a ser o foco principal. Teremos tempo de receber reforços dos ducados. - Expliquei.

Espantados Aragon e Kurgan se entreolham. A Princesa se pronuncia: - O que você sugere Chennai?

— Muitas vezes, simplesmente esperávamos o inimigo atacar. Uma estratégia que sempre nos causou muitas perdas. O que estou sugerindo é que preparemos uma isca para atraí-los e aí os pegaremos num cerco. - Respondi.

— E como a senhora vai atraí-los? - Aragon me questiona.

— Sabemos que eles têm batedores percorrendo nossa região, vamos encenar uma fragilidade nas nossas defesas. - Mostrei no mapa as vilas e fazendas próximas à fronteira. - Vamos aproveitar uma dessas vilas que já estão abandonadas. Os aldeões e fazendeiros já seguiram com suas famílias e rebanhos para procurarem abrigo nos ducados. - Eu falava rapidamente, mas me fazia entender.

Um silêncio pairou no ar. Kurgan e Aragon desviam o olhar do mapa, me encaram e em seguida olham para a Princesa.

— É, pode dar certo. O que você acha Kurgan? - Aragon arrisca.

— É possível. Podemos dispor de quinhentos homens imediatamente. - Kurgan informa.

— Trezentos soldados serão suficientes para por o plano em prática. - E me dirigindo para Gabrielle. - Se Vossa Graça permitir partirei logo que a tropa esteja pronta.

— Você? - A Princesa exclama surpresa.

— Sim Alteza, com sua permissão eu gostaria de comandar essa batalha. - Respondi empertigando o corpo em toda minha altura.

— Erin pode assumir o comando no seu lugar. - A Princesa responde.

Senti o sangue subir as faces. - Alteza permita que lhe diga, mas Erin não é a pessoa indicada para esse caso! Ele não seguirá o plano à risca e qualquer falha poderá por tudo a perder, além de perdermos vidas inutilmente. - Insisti procurando controlar minha irritação.

— O que me diz Kurgan? - A Princesa crava os olhos no capitão.

Kurgan fica em silêncio alguns instantes, como se ponderasse sobre a resposta e por fim diz: - Perdoe-me Alteza, mas Chennai está certa. Apesar dele ser o segundo no comando da infantaria, eu não confiaria essa missão a ele.

Os olhos de Gabrielle faiscaram, mas o capitão não se intimidou. Um silêncio pesado desceu sobre a sala. Por fim a Princesa diz: - Está certo capitão, então o senhor assumirá o comando dessa batalha!

Fechei os punhos e cerrei os dentes para controlar minha raiva. Embora mostrasse vários argumentos, a Princesa estava irredutível. Expliquei detalhadamente o plano sem dirigir o olhar para Gabrielle. Logo que estava tudo acertado pedi licença e saí da sala.

..........................................

Recusei-me atender as insistentes batidas na porta de meu aposento. Sentada na cama remoia as palavras de Gabrielle. Ouço a porta se abrir e olho na direção. A ideia de ser obrigada a satisfazer os caprichos da Princesa me irritou. Ela senta-se ao meu lado e tenta segurar minhas mãos, num rompante me levanto e me dirijo para a janela, de costas para a Princesa me mantenho em silêncio.

Gabrielle continuava sentada na cama me observando. Apoiada no parapeito da janela eu olhava o horizonte quando senti seus braços me enlaçando a cintura. Minha irritação era tanta que não fiz qualquer gesto para responder ao abraço como faria antes. Bruscamente me desvencilhei dos braços da Princesa me afastando.

— Não é justo se comportar dessa maneira, só quero zelar por você! - Gabrielle diz.

Não conseguindo me conter exclamei irritada: - Parece que você não está compreendendo a gravidade da situação. O principado está sendo invadido!

— Compreendo perfeitamente, mas quero lhe lembrar que sua função no castelo é ser minha Conselheira. Você não pode simplesmente montar num cavalo e sumir a cada batalha me deixando angustiada sem notícias suas. - Gabrielle se exaspera.

— Gabrielle eu tenho uma dever a cumprir. Antes de qualquer coisa eu sou uma guerreira. Quando seu pai me tornou um membro da corte, jurei cumprir com honra meu dever, seja na paz ou na guerra, e é meu dever defender o principado de invasores, será que não entende? - Respondi com aspereza.

— Nenhum membro desta corte foi mais valoroso que você e eu nunca esperaria outra atitude de sua parte, mas não quero que você vá. Não me obrigue a impor minha vontade real, lembre-se que sou a Princesa e você me deve obediência. - Gabrielle diz num tom desafiador.

As palavras de Gabrielle me deixaram furiosa e sentindo toda raiva, frustração e humilhação do dia vir à tona, explodi.  Bruscamente eu a segurei pelos ombros assustando a mulher. Encaro Gabrielle e vejo seu rosto lívido, com ar de quem tinha levado uma bofetada.

Continuei extravasando a raiva: - Eu sou uma guerreira e não uma de suas aias que só servem para satisfazer as suas vontades!

Gabrielle afastou-se me olhando assustada. Sentiu-se insultada e maltratada, seus lábios tremeram como se estivesse prestes a se desfazer em lágrimas e esbravejou: - Não admito que falem assim comigo!

A Princesa estava perturbada, nunca tínhamos tido uma discussão tão violenta assim, se esforçando para recuperar o porte aristocrático e enxugando as lágrimas me encarou, embora fungando, ordenou autoritária: - Você não vai sair do castelo e assunto encerrado!

A situação ficou extremamente sensível. Senti meu sangue ferver, mas procurei com todas as minhas forças evitar que o desentendimento entre nós fosse adiante. Sacudi a cabeça como querendo afastar a última sombra de raiva. Sabia que era inútil discutir. Já vi muitas vezes aquele olhar.

Caindo em mim respondi: - Como quiser. Eu peço desculpas a Vossa Alteza. Não tinha o direito de gritar daquela maneira. Por favor, me perdoe.

Sem nenhuma palavra Gabrielle vira-se e sai furiosa batendo a porta. Praguejei chutando a cadeira. Olhei pela janela e vi a movimentação dos soldados no pátio e desci para ajudar nos preparativos. Talvez trabalhando me esquecesse do acontecido.

................... A cilada.

O céu estava com nuvens escuras no horizonte quando Boors deu as costas para o acampamento e cavalgou até o alto da colina. Admirava as terras verdejantes e férteis que em breve seriam propriedade dos saxões. Ele estava eufórico com a chegada de um homem tenebroso até para os padrões saxões, um gigante carrancudo de nome Cerdic, O Astuto, o grande líder.

Boors comandava um exército de mil homens e com a grande invasão que aconteceria ele pensava no prazer de varrer os cristãos do principado e depois de todo o reino da Nortúmbria. Havia um sentimento firme dos saxões de expandir suas fronteiras e a invasão começando pelo sul, seria o início da conquista da ilha. Restava apenas aguardar a chegada de Cerdic, Isven e seus exércitos.

No dia seguinte três batedores correram para avisar Boors que uma aldeia que antes parecia deserta, agora mostrava sinais de atividade. Os habitantes eram camponeses que só manuseavam foices e enxadas. Os portões estavam abertos, nenhuma bandeira hasteada, alguns homens juntando feno e outros preparando o chão para plantio. Seria um alvo fácil. Boors arreganha um sorriso enquanto comia um pedaço de porco. Os homens começavam a se inquietar pela espera dos outros exércitos. Boors ordenou que uma tropa de duzentos homens invadisse a aldeia, queimassem as casas e matassem qualquer um que fizesse resistência. Seria bom deixar os homens se divertirem.

Boors resolve comandar a invasão.  Dada à ordem, a tropa iniciou a marcha que desceu a colina em direção à entrada da aldeia. Aos berros eles giravam as espadas e machados para causarem o terror de sempre. Os poucos homens que trabalhavam na aldeia entraram calmamente nas casas e lá ficaram.

Do seu cavalo Boors não entendeu o que estava acontecendo. Normalmente aconteceria uma correria desesperada de homens e mulheres carregando suas crianças, mas não foi o que aconteceu. Viu seus homens entrando na aldeia quando percebeu ter caído numa armadilha. Boors não teve tempo de gritar para recuarem. Duas vezes mais homens saíram de seus esconderijos nas colinas e de dentro da aldeia, cercando-os por todos os lados. Lanceiros a cavalo atropelaram os invasores abrindo caminho para os soldados a pé. A desordem se instalou. De um lado as tropas de Cymru, liderados por Kurgan e do outro as tropas do ducado de Carse numa luta selvagem, dando cabo de cada saxão, e logo toda aldeia e arredores se encheu de cadáveres. A mando de Erin muitos saxões foram empalados e deixados para os abutres como aviso. Kurgan galopa para a colina e com um berro desafiador ergue a espada para Boors. O saxão assustado vira o cavalo e foge.

Era noite quando a tropa chegou a Cymru. O sentinela do muro mandou que abrissem os portões. O trote vigoroso dos cavalos quebrou o silêncio da cidade. Logo os guardas aos berros foram saudá-los erguendo suas lanças e espadas. A cidade em alvoroço comemorava o retorno triunfante dos guerreiros.

Ouvindo a algazarra, desci para o pátio para saudar todos.

— Parabéns capitão! - Berrei, deixando de lado as formalidades surpreendi Kurgan com um forte abraço entusiasmado.

Mesmo desconcertado Kurgan responde ao abraço. Entusiasmada pedia que ele me contasse tudo em detalhes.

— Contarei, mas antes preciso me limpar. - Kurgan me responde.

— Sim, sim me perdoe, é que estou ansiosa para saber como as coisas correram. - Disse me controlando.

— Seu plano foi um êxito Chennai! - O capitão me diz sorridente.

Nesse momento a Princesa surge no patamar da escadaria do castelo e todos se ajoelham, Gabrielle estava visivelmente radiante. Com breves palavras ela saúda a todos e declara que a noite será de comemoração.

Era uma noite quente e de alegria, com muitas risadas, conversas, comida e bebida farta, com os cumprimentos da Princesa. De longe se ouvia a algazarra nos alojamentos. É certo que a Princesa jamais iria participar desta comemoração. Sentei-me ao lado de Kurgan e escutei maravilhada o seu relato sobre a batalha. A noite já ia alta quando resolvi me recolher, pois as várias taças de hidromel já estavam fazendo efeito.

A entrada pelo jardim encurtava o caminho até a ala onde ficava meu aposento. Quando já estava próxima da porta percebi alguém me observando. Reconheci a silhueta da Princesa sentada sob o caramanchão.

Me aproximei e fiz uma reverência. - Deseja alguma coisa Alteza? - Perguntei friamente.

Depois de alguns instantes em silêncio ela diz: - Desejo sim Chennai. Desejo saber o que está acontecendo?! A maneira como você está me tratando..., fria, distante, cerimoniosa, quando entre nós não tem porque existir isso. Nós...

Interrompi a Princesa: - Me perdoe Alteza, mas minha função é ser Conselheira como Vossa Graça mesmo disse. Não devemos misturar assuntos particulares com assuntos da regência.

— Essa sua atitude é ridícula! - A Princesa esbraveja. - Será que você não entende que eu só quero lhe manter segura, Fora de perigos?

— Me manter segura? - Respondi já alterando a voz. Sentir estar sendo manipulada por Gabrielle me incomodava. A Princesa se levantou de supetão, estávamos prestes a ter mais um sério desentendimento. Aguardei por alguns instantes que ela falasse, mas permaneceu me olhando em silêncio.

Resolvi dar nosso encontro por encerrado e com impaciência disse: - Se Vossa Alteza não deseja mais nada de mim, com sua permissão irei me recolher. 

— Pare de ser tão formal. - Diz a Princesa com tom decidido.

Com impaciência crescente perguntei: - Por que veio Princesa?

Gabrielle se aproxima o suficiente para que eu sinta sua respiração. Ela segura minhas mãos entre as suas e as beija. Estremeci ao sentir o contato de seus lábios. Minha resistência se desfez. Tomei seu rosto entre as mãos e o acariciei, admirando suas linhas perfeitas. Cedendo aos seus encantos a beijei.

Percebo que a sensação inebriante se devia também ao hidromel. Seria prudente que eu fosse para meu aposento. Com o corpo trêmulo me afastei. Pedindo desculpas expliquei sobre meu estado e segui meu caminho. A Princesa acompanhou-me com os olhos até sumir pela porta.

 ................... Morte ao leão.

Um guerreiro avisa a Boors que um grande número de homens se aproximava do acampamento. Ele sai da tenda e olha para um ponto no horizonte. Havia algo ao longe sem definição. Aos poucos formas humanas foram se delineando as centenas, muitos a pé e outros a cavalo. Traziam armas nas costas e na cintura. Vários usavam escudos, cotas de malha e elmos. Os padrões diferentes da roupa mostravam que eram saxões do oeste.

Quando os guerreiros foram reconhecidos, os homens de Boors os saudaram com euforia. Estavam contentes por que o tédio acabaria em breve. Mas ansiedade maior era para ver o grande líder.

Atrás de um grupo de guerreiros se destacava o mais perfeito garanhão que já tinham visto. Um cavalo negro, imponente, maior que os outros. Parecia ter uma natureza feroz que nenhum ser humano seria capaz de montar, e no seu dorso o temido Cerdic.

Observando toda extensão do acampamento Cerdic se aproximou e apeou. Seu porte era gigantesco até mesmo para os padrões saxões, ele ultrapassava a altura do próprio Boors que era um homem alto. A cabeleira de um tom de ouro velho saindo por baixo do elmo ultrapassava os ombros, a barba do mesmo tom era comprida e cheia, os olhos azuis acinzentados eram frios e cruéis, difíceis de serem encarados. A capa, o gibão e a cota de malha acentuavam ainda mais seu peito e ombros largos e a carranca mostrava uma expressão malévola. Olhou Boors com bastante atenção de cima a baixo.

— Seu exército não parece ter mil homens como você ofereceu. - O gigante falou.

Boors surpreso se sentiu incomodado com a observação de Cerdic na frente de todos. Sem ter como fugir do assunto, evitando olhar para o líder, em voz baixa contou o que tinha acontecido dias atrás.

Cerdic rosna: - Vamos iniciar uma invasão e você perde duzentos homens numa emboscada? Um ataque só deve ser feito com minha ordem!

O tom de voz deixou Boors paralisado, sentiu a ameaça na voz e no olhar do gigante. Sob a capa, num discreto gesto Cerdic saca a adaga do cinturão e perante o olhar de todos abraça Boors como se retribuísse a saudação. Sem que alguém percebesse o gigante desferiu um golpe rápido, mas preciso que causou uma pequena perfuração no lado esquerdo de Boors. O comandado sentiu um frio de pavor percorrer a espinha quando sentiu o sangue molhar sua pele.

Ainda abraçado a Boors, Cerdic cochichou no seu ouvido: - Da próxima vez será minha espada! - Virando as costas, o gigante ordenou aos seus homens que se acomodassem.

Em comemoração a chegada do novo exército, Boors oferece um festejo com javalis, pães e hidromel. A noite seguia com os homens já em fase de euforia pela bebida, cantando velhas canções de guerra e inflamando os sentimentos de conquista. A mesa onde Cerdic estava era o centro das atenções. O gigante comia calado; com seu olhar peçonhento percorria os guerreiros de Boors como se os avaliasse e parecia não gostar do que via.

Cerdic levantou-se e falou alto pela primeira vez desde que se sentara para comer. Sua voz estrondosa se sobrepôs as conversas paralelas. Houve um silêncio repentino. Ele começa um discurso exaltando a coragem de todos ali presentes; instigava o ódio contra os cristãos e os diversos reinados que existiam na ilha; que as riquezas e as terras férteis passariam para as mãos saxônicas; que a cidade e a bandeira do leão coroado de Cymru cairão; e que o principado e o reino da Nortúmbria também cairão.

O silêncio continuou, olhos vidrados miravam o gigante. Cerdic olhou firmemente para os guerreiros a sua volta com seus olhos de víbora e um meio sorriso. Bebeu mais um gole de hidromel, deliciando-se com o momento.

— Vamos pegar toda terra e riqueza que quisermos. Por isso eu digo, MORTE AO LEÃO! - Bateu violentamente com o punho fechado na mesa.

Desta vez os homens vibraram e ergueram os brindes aos gritos repetidos de morte ao leão. Deliciando-se com essa euforia Cerdic abriu um sorriso maligno e seus olhos brilharam satisfeitos. As conversas sobre estratégias de invasão e proteção dos deuses se transformaram em gritos de guerra, banhos de sangue, riquezas e honra aos deuses.

Na manhã seguinte após o banquete, chegaram mais mil e duzentos saxões do sul comandados pelo homem que ostentava um reluzente elmo com crista de lobo, conhecido como Isven, O Lobo.

Cerdic sabia que o principado de Crydee era dividido em ducados e num caso de ataque em massa cada um se interessaria em proteger o que era seu.

A contagem regressiva começara.                             

...........................................

Cerdic acordou confiante. Inspirou o ar frio da madrugada. Saxões do oeste e do sul se espalhavam por todo acampamento. A ordem foi dada. Os homens se empolgaram paramentando-se com suas armaduras, armas e escudos. Era difícil ver a linha entre a terra e o céu, mas devagar as vistas iam se acostumando e era possível delinear as colinas. Cavalgando vagarosamente entre os exércitos o líder começou a encorajar os guerreiros, instigando sua coragem e audácia para destruírem o leão e conquistarem suas terras e riquezas.

Uma após outra, as tropas começaram a subir apressadamente as colinas e se esconderem entre as pedras. Cerdic ia na linha de frente. Investiria com metade da tropa contra o portão, enquanto a outra metade comandada por um guerreiro chamado Ravengar, atacaria a saída norte da paliçada.

Cerdic deu a ordem. Os guerreiros começaram a descer, enfurecidos. Os sentinelas deram o sinal, mas já era tarde. Uma horda de demônios trazendo o inferno nas costas decapitava e estripava os homens que aparecessem a sua frente. O caos logo transformou a cidadela. A outra parte da tropa derrubou o portão norte encurralando todos. Os guardas não tiveram tempo de se organizar foram mortos sem chance de empunhar suas armas, apenas assistindo aquela onda de selvageria invadindo os muros da cidade. Homens, mulheres e crianças eram caçados como animais e mortos ao tentar se defender.

Cerdic percorria as ruas da cidade ordenando que as casas fossem vasculhadas, queimadas e tudo que tivesse valor fosse tomado. Ravengar cavalga arrastando um homem ensanguentado, mas ainda vivo e o jogou aos pés de Cerdic, dizendo que era o líder da cidadela. O gigante mandou que fosse empalado e colocado no portão de entrada da cidade.

Cerdic sabia que existiam outras vilas, aldeias e cidades pelo caminho até chegarem a fortaleza de Morgwain. Mandou seus batedores trazerem informações sobre o terreno, cidades e forças de batalhas.

Dois dias depois do massacre, os batedores voltaram animados. Avisaram que as vilas e aldeias eram desprotegidas, as cidades militarmente fracas e a que na fortaleza de Morgwain existia um monastério. Ciente que os monastérios guardam muita riqueza, os olhos de Cerdic brilharam com a cobiça e começa a se reorganizar, ordena que Boors ataque todas as povoações no caminho até a fortaleza enquanto Ravengar e Isven fariam o cerco à fortaleza aguardando por eles lá.

Quando todos os exércitos se reuniram os ataques começaram. Morgwain não tinha contingente suficiente para aguentar as perdas diárias de soldados. Os saxões se atiravam contra os portões com uma fúria sobre-humana e assim após um cerco de dez dias a fortaleza caiu. Seguiram-se as fortalezas de Rhys e Deganny.

................... Más notícias.

Batedores traziam as más notícias das invasões. O ducado se Carse já havia caído em mãos inimigas. A situação só piorava com a notícia da chegada de mais mercenários se unindo ao inimigo. Pelo que sabíamos o contingente saxão já se aproximava de quatro mil homens.

Cymru ainda estava adormecida quando um mensageiro que tinha cavalgado numa marcha ininterrupta por toda noite avistou os muros da cidade. Logo foi avistado pelos guardas da muralha e assim que se identificou e apresentou-se a Kurgan teve autorização para levar a notícia urgente à Princesa.

Assustada a Princesa saiu de seus aposentos e correu para o salão do trono. Ouvindo o alvoroço dos sentinelas, corri para me juntar as pessoas no salão. O homem esbaforido ao ver a Princesa se ajoelha e diz:

— Senhora, me perdoe pela pressa, mas trago mensagem do Duque de Gwent. - O homem respira fundo procurando fôlego.

— Calma homem, respire. - Kurgan recomenda.

— O Ducado de Gwent está sob ataque - o mensageiro arfava. - Saxões chegaram ontem e começaram o ataque enquanto as vilas ainda estavam adormecidas. Os moradores foram mortos sem piedade e as vilas destruídas. Agora partiram para as aldeias e fortes. Pede que Vossa Graça o perdoe e compreenda, mas é impossível enviar reforços para Cymru.

...........................................

Eu e Morloch já cavalgávamos a cinco dias batendo o território. Seguimos em direção a uma cidade próxima à divisa com o ducado de Deira. Passamos por vilas abandonadas e cruzamos com pastores apressados levando seus rebanhos para longe, andarilhos solitários e algumas famílias em carroças tentando escapar da guerra. Era próxima a hora do pôr do sol quando vimos a destruição. Parte da paliçada derrubada, muitos soldados mutilados, homens, mulheres e crianças jaziam brutalmente assassinados, destroços de carroças, palhas de telhados espalhadas, casas derrubadas e algumas ainda fumegantes. Os saxões tinham ultrapassado a divisa de Deira quase sem resistência.

Apeamos. Olhávamos a cena horrorizados quando vi algo se mexer. Antes que desembainhasse a espada, vi que era uma menina saindo dos escombros. Cambaleava, estava pálida, tinha o pequeno rosto, os cabelos e o vestido sujos de sangue. Corri em seu socorro e a menina desabou no meu colo, falava com dificuldade. Disse que a cidade foi atacada quando ainda tinha estrelas no céu. A menina informou que os invasores seguiram na direção de Cetreht. A menina suspirou, a cabeça pendeu e seus olhos se fecharam de vez.

Mandei Morloch de volta ao castelo para avisar Kurgan. Me apressei em seguir os rastros dos malditos, galopei por horas sem parar. Ao chegar perto de Cetreht, um clarão no céu e a fumaça indicavam mais uma cidade invadida e destruída. Já oculta pela noite apeei e rastejei até o alto da colina. Vi parte da paliçada derrubada e centenas de homens armazenando provisões e armas. Se o mercenário dinamarquês tinha dito a verdade, aquela era uma pequena parte da tropa que rumaria para a próxima cidade que era Dunrholm.

...........................................

O dia amanhecia quando os sentinelas viram me aproximar a todo galope; abriram o portão, segui até o pátio, pulei do cavalo e subi correndo as escadas do castelo. Entrei no salão e encontrei Kurgan, Erin, Aragon e a Princesa. Antes mesmo que me perguntassem qualquer coisa comecei a relatar o que tinha visto em Cetreht.

A Princesa se alarmou. Ela sabia que Deira era o ducado mais vulnerável do principado. Teríamos que pedir ajuda de outro ducado para bloquear a passagem do inimigo, mas isso levaria dias e os saxões estavam entrando rapidamente pelo interior do principado. Não podíamos mais contar com os ducados de Carse, Gwent nem Deira. O ducado de Cair Lion era no extremo norte, levariam semanas até chegarem com ajuda e o de Sewyn temeroso de ser o próximo ducado atacado ofereceu apenas cinqüenta homens do seu exército.

Erin foi mandado com uma tropa de duzentos homens para reforçar a defesa de Dunrholm. Se houvesse resistência talvez os homens de Cair Lion chegassem a tempo de reforçar nossas defesas. A Princesa envia um mensageiro para a corte do Rei informando da situação e pedindo ajuda. Com toda certeza Deira caindo os saxões viriam em direção a Cymru.

A ajuda chegou a tempo de defender Dunrholm. Os saxões cercaram a cidade, mas não conseguiram passar pela murada. Não chegava a ser um alívio, mas indicava que eles não estavam tão fortes. A cidade ficou sitiada por dez dias. No final do décimo primeiro dia Erin observava o cerco inimigo quando o sentinela chama sua atenção.

— Está vendo aquilo? - Diz o soldado apontando numa direção.

Ao longe formas humanas as centenas se aproximavam a cavalo e a pé. Um mar de elmos, escudos, espadas e machados se derramaram sobre o vale. Erin praguejou, eles conseguiram rechaçar os ataques até o momento, mas agora a situação se complicava, o número de saxões se tornara três vezes maior que o contingente da cidade.

Quando todo exército se reúne Cerdic abrindo caminho entre os guerreiros, do alto de seu garanhão observa o local com cuidado por longos minutos. Ordena que Isven e Boors reforcem o cerco e aguardem seu sinal. A noite chega e os saxões investiam contra os portões, gritando e amaldiçoando os adversários, apenas como intimidação. Batiam com as armas nos escudos provocando um barulho ensurdecedor. Os homens ansiavam pelo ataque e de madrugada a ordem foi dada.

Uma linha imensa de guerreiros se atira contra a murada e os portões. O comandante de Dunrholm ordena que os arqueiros tomem posições. Erin dividiu seus homens entre o portão norte e sul. A madeira rangia com o peso dos guerreiros se comprimindo contra os portões. Os soldados que escoravam do lado de dentro se surpreendiam com os trancos enquanto ouviam os berros irados do outro lado. Uma chuva de flechas cruzava o ar; saxões caíam, mas nada parecia diminuir sua quantidade nem ferocidade. Erin sabia que a situação não se manteria por muito tempo. Lascas de madeira iam sendo arrancadas com machadadas enfraquecendo os portões. Cerdic gritava incentivando seus guerreiros; mais pressão sobre os portões, de repente o barulho de madeira rachando e despencando foi apavorante.

Um enxame de homens furiosos entrou derrubando tudo no seu caminho. Machados e espadas abriam caminho sem piedade, corpos sem cabeças, braços, pernas amputadas, sangue escorrendo pelas escadarias, ruas e vielas formavam um quadro tenebroso que se via em toda cidade. Por mais que continuassem lutando o inimigo era muito mais numeroso e furioso. Quando o cerco foi fechado os saxões gritavam triunfantes.

O gigante a cavalo, aparece abrindo caminho entre os guerreiros. Chamou Ravengar e ordenou que matassem todos os soldados sobreviventes. Sob risos dos saxões Erin foi assistindo os homens serem degolados ou transpassados pelas armas inimigas um a um.

Ravengar identificou o comandante da cidade e Erin como oficiais pelos trajes. Seria divertido torturá-los antes de matá-los. Primeiro foi o comandante, os chutes e pisões iam quebrando ossos e arrancando dentes, logo seu rosto se transformou numa disforme massa ensanguentada. Cerdic que assistia a cena impassível sorriu ao ver o homem ser estripado pelo pesado machado de Ravengar.

Erin sentiu o nariz quebrar quando recebeu o primeiro golpe, logo depois um chute no abdômen o fez cair encolhido quase sem ar, visivelmente apavorado começou a gaguejar frases que interessaram Ravengar. Ele se agacha e murmura alguma coisa que Erin responde. Dois guerreiros o arrastam até Cerdic; os olhos baixos ameaçadores incutiam ainda mais terror ao subcomandante de Cymru.

O gigante com sua experiência acreditava que poderia encontrar um traidor entre as linhas inimigas que se prontificaria ajudar em troca de terras e espólios.

— Espero que tenha alguma coisa que me interesse. - Rosnou Cerdic.

— Peço que pense em mim como seu aliado. Conheço as fraquezas de Cymru. - Erin vai falando dos pontos vulneráveis, principalmente do recente reparo da murada e de certo capitão da guarda que precisava ser eliminado.

Após algum tempo Cerdic manda libertar o traidor, mas não sem sofrer mais algumas agressões. Ravengar odiava traidores.

 ................... As chuvas de verão.

 Ferido Erin percorria vales e colinas sem ver pessoas ou animais, quando deparou com um pelotão. Foi visto e dois soldados partiram em sua direção. Acreditando serem saxões tentou fugir, mas foi alcançado e derrubado do cavalo. Viu-se ameaçado por duas espadas encostadas à sua garganta e um dos soldados com o pé em seu peito impedindo de se levantar.

— Quem é você? - Perguntou o soldado.

— Sou Erin segundo em comando da infantaria de Cymru. Estava na batalha em Dunrholm... - Ele tem a frase interrompida.

— Mentiroso! Dunrholm foi tomada e destruída, não houve sobreviventes! - O soldado diz com aspereza.

— Escapei por milagre de toda aquela desgraça... Estou ferido..., preciso de ajuda... Trago informações importantes sobre o inimigo. Tenho que falar urgente com o Mestre de Armas de Cymru. - Erin diz humildemente.

Os soldados embainham as espadas e o levam para junto dos demais. O pelotão seguia para Cymru por ordem do Duque de Sewyn.

..........................................

O pelotão chegou à cidade ao anoitecer e se apresentou a Kurgan. Vendo os soldados chegarem me juntei ao grupo.  O capitão se surpreendeu ao ver Erin, mandou que fosse levado para cuidar dos ferimentos. Algum tempo depois fomos ao local onde Erin estava sendo tratado e ouvimos atentamente o relato do acontecido.

— Como escapou do ataque deles? - Perguntei curiosa.

— Eles acharam que eu estava morto. Fui jogado junto dos cadáveres. Encontrei mais um sobrevivente, fugimos no mesmo instante, mas durante a viagem ele não resistiu aos ferimentos. - Erin conta a mentira.

Kurgan apertou os olhos, ainda parecia não acreditar, apesar do estado do subcomandante.

Erin continua: - Houve uma traição entre os comandantes, os exércitos estão divididos. Devemos aproveitar o momento.

— Não é tão simples assim. - Kurgan coçou a barba. - Perdemos todos os homens enviados à Dunrholm..., exceto você. - Encarando Erin, o capitão fica em silêncio como se pensasse consigo mesmo.

— Senhora temos que reavaliar a situação. É necessário reunir o Conselho. - Kurgan diz se dirigindo a mim. - Quanto a você - voltou a se dirigir a Erin. - Vá descansar.

Erin sorriu satisfeito e dirigiu-se para o alojamento. Acompanhamos o homem com os olhos até sumir pela porta.

— Achei a história muito estranha... O que diz capitão? - Perguntei.

— Eu também Senhora. Mas agora o principal é repensar nossas estratégias. Eu cuido disso mais tarde. - Kurgan responde.

Ao me dirigir para o castelo senti uma brisa fresca e vi no horizonte nuvens escuras clareadas por raios.

..........................................

A manhã trouxe nuvens carregadas de chuva. O dia se seguiu com batedores trazendo informações que mais uma cidade caíra e em torno de setecentos saxões seguiam em direção a Cent, uma cidadela a leste de Cymru.

— E o restante do exército? - Perguntei.

— Talvez uns cento e setenta homens estejam assentados em Dunrholm; a maior parte do contingente se concentra na floresta ao sul de Cymru, mas não sabiam por quê. - Responde o batedor.

— Então o que Erin disse sobre a divisão dos exércitos era verdade. Mesmo assim não temos como enfrentar tantos homens, tivemos uma grande baixa. Sewyn nos mandou apenas cinqüenta homens e não temos notícias de Cair Lion, nem do Rei. Parece que nossos mensageiros não conseguiram chegar até eles. - A Princesa diz desanimada.

Eu examinava o mapa. - Não faz sentido. - Murmurei. - Por que mandariam homens para Cent?

— Devem estar organizando expedições de pilhagens, precisam pagar os mercenários. - Observou Aragon.

— E por que a maior parte do exército iria para a floresta? - A Princesa questiona.

— É isso que temos que descobrir! - Respondi sem tirar os olhos do mapa.

Enquanto analisávamos a situação um batedor chega com a notícia que não tinham mais avistado as tropas inimigas. O exército acampado na floresta estava imóvel, como se esperasse reforço.

Um estrondo de trovão ecoou sobre a cidade e uma chuva fina começou a cair. As chuvas de verão chegaram.

..........................................

Erin se ofereceu para espionar os saxões na floresta, mas tinha alguma coisa em seu olhar que me desagradava e sei que Kurgan partilhava da mesma sensação. O capitão se mantinha desconfiado, pois ser prestativo nunca foi característica de seu subcomandante. Havia mais por trás dessa atitude. Kurgan negou o pedido.

Sem conhecimento da Princesa me ofereci para espionar o inimigo a despeito dos perigos e dos protestos de Kurgan, parti com Martin e nos dias que passamos fora da segurança dos muros de Cymru descobrimos que deviam ser em torno de mil e quinhentos homens e que o líder era um saxão gigantesco de cabelos e barba loira. Inexplicavelmente o exército se mantinha quieto. Retornando ao castelo vimos um comboio com trezentos homens e suprimentos seguindo para leste.

Kurgan percorria preocupado o alojamento dos soldados quando ouviu o sinal do sentinela. Correu para a murada; nos reconhecendo manda abrir os portões. Entramos a todo galope. Ele veio nos receber. Poucos minutos se passaram quando um serviçal se aproxima.

— Senhora, a Princesa quer que vá imediatamente ao seu encontro. Ela a aguarda em seus aposentos. - Isso era um mau sinal, eu havia desobedecido uma ordem direta da Princesa e isso teria consequências.

— Diga a Princesa que irei a seguir, tenho informações importantes para o capitão. - Respondi apressada.

— Senhora... - Meu olhar calou o serviçal. Ele baixa os olhos e retorna ao castelo.

Kurgan aconselha que as informações sejam repassadas para o Conselho e assim foi feito. Novamente nos reunimos para pensar em estratégias emergenciais. Eu sentia o peso do olhar furioso de Gabrielle. Durante toda a reunião ela não me dirigiu a palavra. O ambiente tenso foi sentido por todos na sala.

— Eles têm três vezes mais guerreiros que nós. Sabem que não teremos reforços, por que não atacam de uma vez? - A Princesa questiona se dirigindo ao capitão.

— Essa é uma pergunta em que não encontrei resposta Alteza. Mas eles estão mandando homens para o leste. Se emboscarmos essas pequenas expedições, poderemos diminuir o número de guerreiros deles. - Respondi.

— O que acha Kurgan? - Gabrielle crava o olhar no capitão.

Os olhos do capitão se cruzaram com os meus e os da Princesa. Kurgan me apoiou. Ficou acertado que batedores manteriam constante vigilância sobre o exército na floresta. A primeira expedição se deu quatro dias depois. Cerca de duzentos homens todos a pé. Aragon liberou seus lanceiros pela planície esverdeada que logo se tornou vermelha de sangue. A cavalaria pesada investiu contra o inimigo. Mesmo com algumas perdas foi uma vitória. Mais três confrontos aconteceram até que um dia, logo nas primeiras luzes da manhã o sentinela dá o alarme.

— Capitão! Vejo pessoas se aproximando rapidamente senhor! - O homem grita.

Olhei pela janela e vi Kurgan correr para a murada. Desci as escadas ainda sonolenta e o segui até que pude me enfiar entre os soldados que se amontoavam na muralha para olhar a estrada.

Cinco cavaleiros vieram da estrada sul da floresta. O cavalo negro vinha na frente trazendo no dorso o homem de cabelos compridos cor de ouro velho, saindo por baixo do elmo que lhe cobria quase todo o rosto, deixando ver a barba e os olhos, e tive a certeza que era o guerreiro dos meus pesadelos. Senti um calafrio de terror na espinha.

À medida que se aproximavam, o homem de cabelos compridos sinalizou para os outros conterem os cavalos enquanto seguia sozinho. Chegando a certa distância ele ficou olhando a fileira de homens na murada, jogou duas sacolas no caminho, girou o cavalo e seus homens se juntaram a ele galopando em direção a floresta.

As duas sacas foram trazidas para Kurgan. O que ele tinha jogado eram as cabeças dos dois batedores. O semblante do velho capitão se transformou numa máscara de ódio. Erin nos observava com o canto do olho com um quase imperceptível olhar de satisfação.

Não podíamos ficar sem informações sobre o inimigo. A situação foi comunicada e Princesa. Com tom autoritário se dirigindo ao capitão ela determina que sejam mandados mais dois batedores para vigiá-los e acrescenta:

— Capitão, até segunda ordem a Conselheira Chennai não sairá do castelo, está entendido? - Com os olhos faiscando se dirige a mim. - Não se atreva a me desobedecer outra vez!

Eu, Kurgan e Aragon trocamos olhares espantados com a atitude da Princesa. Eu conhecia aquele olhar, a menina mimada e caprichosa ressuscitou no pior momento possível. Senti meu rosto corar, uma mistura de raiva e vergonha.

Uma tempestade se aproximava fora e dentro do castelo.

 ................... O olhar da morte.

A Princesa se mantinha esquiva de contatos comigo, isolava-se a maior parte do tempo. Sempre que a procurava a fiel Lady Marna se encarregava de dificultar meu acesso à Gabrielle. Sempre ouvia que ela estava indisposta, ocupada ou descansando, e isso me irritava imensamente, mas cedo ou tarde surgiria a oportunidade, só esperava que não fosse tarde demais para nós.

..........................................

Ouvi um tumulto na murada, o sentinela manda abrir os portões, um jovem batedor chamado Hadrian entra como um raio. Ansiosa por notícias corri até o pátio e vejo o rapaz caindo do cavalo, sendo amparado por Morloch; estava com um grande corte nas costas, arfando ele conta que o outro batedor foi morto. O inimigo se movia, árvores eram derrubadas e preparadas como aríetes. Estavam preparando o ataque. O que ele não sabia é que enquanto retornava um exército de dois mil saxões e mercenários se juntava ao da floresta e cercava Cymru.

As chuvas foram se tornando mais fortes e frequentes, uma situação nada comum para a estação. As ruas da cidade estavam enlameadas, as poças se tornavam maiores a cada chuva, o solo já não conseguia absorver a água. A leve chuva começou a cair quando o trovão sacudiu as nuvens, houve troca de sentinelas durante a madrugada. O castelo estava em alerta desde o aviso de Martin. Não conseguia dormir pensando no rumo que minha vida tomou, da janela olhava tristemente as gotas tilintando nos telhados da cidade, que foram se transformando em chuva forte e aumentando a lama e as poças que já existiam. Cada vez mais raios partiam o céu. O movimento do sentinela mostrando para outro soldado um ponto no horizonte do lado sul chamou minha atenção. O soldado correu para o alojamento em seguida Kurgan sai disparado para a murada e o alarme é dado.

Corri para as escadas ainda me paramentando quando vi Gabrielle vestindo desajeitadamente um gibão de couro, com a espada na mão me seguindo.

— Aonde você vai? - Perguntei com aspereza.

— Para murada! - A Princesa responde.

— Não vai não. Você nunca entrou num combate real. Você maneja bem a espada, mas não arriscarei que fique paralisada quando ver pedaços de corpos. Vá para a torre com as outras senhoras e tranquem-se lá. - Falei num tom ríspido e autoritário.

Gabrielle começou a protestar, mas eu a interrompi. Agarrei-a pelo braço conduzindo-a para a torre. A Princesa berrava exigindo que eu a soltasse. O guarda espantado nos observava enquanto nos aproximávamos. O homem reconhecendo a Princesa, hesitante olhou para nós e com medo se dirigiu para mim. Era seu dever defender a princesa.

Levantei o dedo em advertência, quase junto ao nariz do guarda. E falei entre dentes: - Você vai levar Sua Alteza até a segurança da torre. Vai ignorar seus protestos e caso tente escapar irá impedi-la. Compreendeu?

O guarda assustado confirmou, embora se mostrasse relutante em tocar na Princesa. Sem tirar os olhos do soldado, empurrei Gabrielle para porta.

— Caso a Princesa saia daqui antes de soar o sinal que o castelo está seguro, você vai responder a mim! - Disse sem deixar dúvidas que cumpriria a ameaça.

O guarda virou-se para a porta e disse: - Alteza, por aqui. - Fechei a porta atrás deles.

Quando chegaram a torre destinada às mulheres durante os ataques, a Princesa deparou com Lady Marna e muitas outras Damas e serviçais da corte que já estavam ali, todas juntas e mortas de medo.

O guarda arriscou uma continência como desculpa, dizendo: - Perdão Alteza, mas a Conselheira estava bastante determinada.

O semblante carrancudo da Princesa desapareceu e surgiu um leve sorriso. - Sim, ela estava muito determinada não é mesmo?

..........................................

Protegi os olhos com a palma da mão da água forte que batia no elmo. No alto da colina lisa e molhada se definiam formas humanas às centenas a pé e a cavalo. Ao mesmo tempo outro guarda avistou uma imensa linha se formando na colina ao norte. Os sinos são tocados alarmando a todos.

— SOLDADOS!... ARQUEIROS TOMEM SUAS POSIÇÕES! - Kurgan gritava. 

Aragon correu com a cavalaria para o portão norte e eu fiquei com o comando dos lanceiros no portão sul. Praguejando Kurgan viu quando a primeira leva de saxões correu em direção ao portão ao ser ordenado o ataque. Nossas flechas cruzavam o ar molhado, mas poucas atingiam os alvos, estavam molhadas e pesadas demais.

Cerdic, que de longe avaliava o ataque mandou que os homens usassem os aríetes, os portões seriam derrubados mais rápido, pois a madeira estava encharcada. O aríete era jogado contra o portão com se mil homens o estivesse empurrando. A chuva continuava forte, por mais força que fizéssemos para escorar os portões a lama nos fazia escorregar tirando nossos apoios. Subi a murada com alguns lanceiros e de cima da murada atingimos vários guerreiros, mas quando um caía outro imediatamente assumia seu lugar, não tínhamos lanças suficientes. Os portões rangiam a cada pancada. Estava no alto da sentinela quando notei que o homem no cavalo negro ordenou que alguns guerreiros com o segundo aríete fossem para o muro. Assim que receberam a ordem passaram a atingir o recente conserto. Olhei na direção e vi os pedregulhos escorregarem devagar junto com a terra molhada que caía em blocos e escorriam entre as traves de ferro.

— O MURO DESABOU! - berrei o mais alto que pude e corri para as escadas. - PREPAREM-SE, ELES VÃO ENTRAR!

Animados com a invasão da murada, os saxões gritavam e lutavam com uma selvageria assustadora, machados e espadas abriam caminho transformando as ruas num mar de sangue e corpos mutilados que se misturava a lama e a água barrenta. O caos se instalou e nossas forças começaram a dispersar.

Passando o comando dos arqueiros para Erin, Kurgan berrava enquanto descia da murada, - NÃO SE DISPERSEM! MANTENHAM A FORMAÇÃO!

Lanças e flechas causavam baixas nas linhas inimigas, mas isso só parecia irritá-los ainda mais, nada conseguia pará-los. Kurgan foi o primeiro a se preocupar com o portão norte e correu para lá com parte do pelotão assim que ouviu os gritos dos inimigos que tinham conseguido derrubar o portão. Liderados por Isven um enxame de homens furiosos invadiu o outro lado da cidade destruindo tudo e todos no seu caminho. Aragon comandando a cavalaria pesada desabou sobre eles de tal modo que a primeira linha de invasores sumiu pisoteada e deformada por cascos e golpes de espadas. Aragon manda que recuem, para os arqueiros agirem. Uma chuva de flechas perfurou cabeças, rostos e peitos.

Isven veio para cima de mim com toda fúria. Aparei o golpe do pesado machado com o escudo, enfiei a espada na barriga do inimigo com toda força. Continuei num acesso de fúria incontrolável; degolava um, golpeava com escudo, cravava a espada no peito de outro. Meu rosto estava coberto de sangue. Os lanceiros defendiam a retaguarda, mas as nossas baixas iam aumentando cada vez mais e o cerco foi se fechando. Cymru cairia em breve.

..........................................

A primeira vez que vi uma tropa tão grande foi naquela tarde chuvosa. O estandarte azul com a cabeça de um dragão dourado estampado tremulava imponente.  O Rei tinha reunido um número impressionante de três mil soldados e fazia questão de estar entre as primeiras fileiras conduzindo o ataque. Desciam a colina pelo lado sul numa velocidade assustadora, os cascos dos cavalos faziam voar tufos de capim. Os lanceiros a cavalo vinham na linha de frente, a estratégia era abrir caminho para a infantaria a pé. O choque entre as duas forças acontece, o trote vigoroso dos cavalos foi abafado pelos gritos dos inimigos que foram atropelados e perfurados. As tropas muito bem treinadas lutavam com sede de sangue saxão.

Nossa reduzida tropa se encheu de esperança, era emocionante ver os homens motivados lutando com ardor pela defesa de Cymru. O barulho era ensurdecedor, gritos de fúria se misturavam aos de dor. Sangue banhava corpos de vivos e mortos em ambos os lados. Espadas traspassavam, decepavam corpos ou se chocavam contra escudos e lanças num frenesi incontrolável. Embora com mais de quarenta anos, o Rei lutava com a fúria de um titã, com golpes firmes de um guerreiro nato massacrava quem chegasse perto dele. Com o caminho aberto pela cavalaria, uma segunda horda de soldados surgiu ainda mais irada derrubando saxões como animais num matadouro.

Era hora dos arqueiros agirem, Kurgan olha para murada e não vê Erin. Possesso o capitão passa os olhos pelo campo de batalha procurando pelo subcomandante, os arqueiros estavam sem comando, o covarde tinha desaparecido. Ele corre para as escadarias do castelo quando vê um grande contingente de homens irados girando as espadas entrarem pelo portão norte. Identificou o brasão de Cair Lion. Gritos de alegria e vingança se ergueram no ar fazendo o ânimo novamente correr nas nossas veias. Os combates corpo a corpo se estendiam pelas ruas e vielas. Kurgan vê Erin derrubando um saxão, correndo em meio ao caos procurando se proteger de outros atacantes.

— COVARDE DESGRAÇADO! - O capitão berrou furioso e correu na direção de Erin.

Em meio a confusão de corpos, Kurgan perseguindo o subcomandante, derruba alguns inimigos, mas de repente se viu cercado por quatro saxões. Corri em sua ajuda e no caminho com giros da espada e golpes pesados cortei gargantas e perfurei peitos e barrigas. Erin tinha sumido por uma viela. Os homens que cercavam Kurgan foram abatidos sem piedade. Nesse instante vi o saxão enorme de longos cabelos e barba loira, ter o cavalo cercado por vários soldados tentando derrubá-lo, mas lutando com uma fúria demoníaca ele matou todos.

O garanhão negro é atingido no pescoço por um lanceiro. O cavalo empina seguidas vezes, relincha de dor, dá alguns passos cambaleantes e por fim cai. Cerdic partiu para cima do lanceiro e o estripou com tanto ódio que suas entranhas se esparramaram pelo chão. Cuspindo em seu rosto agonizante e não satisfeito com um golpe pesado degola o lanceiro.

O gigante parecia satisfeito com o cheiro de sangue e morte que pairava no ar. Sua figura coberta de sangue lhe dava um aspecto animalesco, parecia saído das entranhas do inferno. Nossos olhares se cruzaram e vi o mesmo olhar do monstro dos meus pesadelos. Senti meu sangue gelar. Ele caminhou na minha direção abatendo quem entrasse no caminho. Eu estava cansada, meus músculos doíam, mas continuei derrubando inimigos como fui ensinada a fazer. De repente a violenta pancada de um escudo no meu elmo me deixa atordoada, minhas pernas bambearam e apoiei um joelho no chão. Um saxão avançou furioso girando o machado pronto para me degolar quando Kurgan com uma estocada traspassa o peito do homem. Ele estende a mão para me levantar quando de repente vejo uma expressão estranha em seus olhos. Seus joelhos se dobram, tentei segurá-lo, mas ele tomba pesado na lama com a boca cheia de sangue. Eu não conseguia acreditar no que via. Uma lança cravada nas suas costas com tamanha força que a lâmina se enterrou quase toda.

— Não! Não! - Repetia em choque. - Meu Deus, não! Kurgan olhe para mim! - Desnorteada eu o sacudia em vão.

Kurgan não conseguia falar, vi no seu rosto molhado a agonia de morrer sabendo que a batalha continuava. Uma grande golfada de sangue e seu corpo relaxou com os olhos abertos fixos em mim.

Senti o mundo rodar. Amaldiçoei os saxões, a chuva incessante, a guerra. Mas eu não tinha tempo de chorar a perda de meu querido mestre e amigo. Passei os olhos pelo campo sangrento e vi o gigante abominável sorrir. Numa atitude de desafio ele empertiga o corpo em toda sua altura e com um grito de fúria abre os braços brandindo a espada e o escudo.

Olhei para o céu escuro e chuvoso. A chuva chicoteava meu elmo sem piedade. Tomada pela raiva que me rasgava o coração gritei:

— CÃO DO INFERNO, EU VOU MATÁ-LO! - Peguei a espada de Kurgan e parti na direção do gigante.

As espadas se chocaram com tal violência que faiscaram. O homem tinha uma força descomunal, cada golpe vibrava meus músculos. Com uma força que não sabia de onde vinha, consegui aparar o golpe pesado da espada do saxão, mas meu escudo partiu um pedaço. Peguei outro escudo de um morto próximo. A força dos golpes destroçaria corpos com facilidade. O gigante de barba loira girou a espada pronto para uma estocada baixa, trouxe o escudo para junto do meu corpo e aparei o golpe. O cansaço aumentava, meu corpo quase não respondia, era um esforço de titã erguer a espada e o escudo. O gigante pareceu perceber isso e investiu com seguidos golpes violentos, me fazendo recuar mais e mais. Um giro de espada corta minha cota de malha me ferindo próximo ao pescoço. O golpe em seguida desceu tão pesado que a espada se cravou no meu escudo, para soltar a espada ele chuta o escudo me fazendo cair de costas sobre alguns cadáveres. Mesmo caída girei a espada e o atingi abaixo do joelho, ele cambaleou para trás, mas isso apenas o atrasou para que eu pudesse me levantar. Ele veio ainda mais furioso com um rugido se atirou contra mim, girando a lâmina, disposto a acabar definitivamente com a luta, tentando me derrubar com peso e força bruta. Giro a espada de lado para cortar-lhe a garganta, mas o homem desvia a cabeça e só consigo cortar um chumaço de barba.

Estocando a espada de baixo para cima ele tenta me estripar do ventre ao peito. Abaixo o escudo para proteger-me do golpe seguinte, mas meus reflexos já lentos não conseguem me desviar da lâmina inimiga e sinto meu peito junto ao ombro ser traspassado. Ele sorriu enquanto puxava a espada com violência, fazendo o sangue jorrar. A dor é insuportável, grito e solto o escudo. Ele me atinge com o escudo no abdômen, tombei de costas espirrando lama pelos ares, perco a espada, me arrasto quase sem ar tentando encontrar uma espada. Peguei o machado de um saxão morto. O gigante deu uma sonora gargalhada e com um golpe de espada faz a arma voar de minha mão. Estava cansada e fraca com a perda de sangue. Tateie sobre os corpos quando encontrei minha única e última chance de sobreviver. Senti aquela enorme mão me segurar pela gola da cota de malha e me ajoelhando de frente para ele, vi um homem de metal, as placas faciais do elmo fechadas sobre as bochechas lhe davam uma aparência mais tenebrosa que em meu sonho. Um homem alto, espada sangrenta, rosto de aço e olhos de morte.

Ele me puxa pela gola da cota e nossos rostos se aproximam, senti o mau hálito do homem que disse:

— Depois de matar você, vou violentar a Princesa, depois meus homens vão se divertir com ela e as mulheres do castelo.

Pela primeira vez durante a luta lembrei-me de Gabrielle. Seus olhos cor de esmeralda, seu lindo sorriso, seus cabelos dourados e sorri... Sorri enquanto enfiava a adaga longa na virilha do monstro. O gigante gritou e se curvou. Sem que ele tivesse tempo de grunhir qualquer coisa, dei duas estocadas rápidas e profundas nas costas. Ele demorou a cair, era muito forte, novas estocadas dessa vez atingindo o peito, ele despencou fazendo o sangue espichar.

Recuperei a espada de Kurgan e a enterrei em seu peito. Apoiei-me na espada olhando nos seus olhos enquanto o matava, aquela era minha resposta por todas as mulheres, homens e crianças que foram assassinadas, por cada vila, aldeia e cidade destruída e pelo meu amigo. Então tirei o elmo e balancei a cabeça para soltar os cabelos. Seu semblante era uma mistura de surpresa e agonia. Girei a espada nas suas entranhas e por fim seu rosto se contorceu e o sangue brotou entre os dentes enegrecidos. Enfim o maldito estava morto. Arranquei sua cabeça, finquei numa lança e tropeçando em corpos, cambaleei até a murada.

A luta continuava intensa dentro da cidade. Um soldado tentou me dar cobertura, mas não conseguiu. Um saxão enfiou a espada na garganta do rapaz e veio atrás de mim, mas um soldado o atinge pelas costas e ele cai morto rolando pelos degraus, fui cercada por dois soldados que me davam cobertura. Foi então que Aragon veio com seus lanceiros acompanhados pelos cavaleiros de Cair Lion. Chegaram em duas fileiras, espadas erguidas e lanças baixas. Eles conheciam seu trabalho. Aragon fez a primeira fileira passar pelos inimigos que se dispersavam e cercou-os, enquanto a segunda se chocou contra eles atropelando, degolando e estripando. Aragon vira a cavalaria e comanda seus homens de volta a matança. Os cavaleiros golpeavam e retalhavam; saxões gritavam e tentavam se render.

— MATEM TODOS! - gritei para ele num acesso de fúria. - MATEM ATÉ O ÚLTIMO!

Cheguei até a torre da sentinela e puxei a corda, mas minhas forças se esvaiam, mal conseguia me manter de pé me pendurei na corda e puxei-a com meu próprio peso. O sino balançou devagar, mas depois o som foi ouvido à distância. Os saxões procurando o sinal que ouviam se distraíram e muitos foram abatidos dessa maneira. Outros ao ver a cabeça do líder empalada na minha lança ficaram desnorteados. O cerco se fechou em ambos os portões e nossos gritos de alegria e vitória se ergueram no ar.

................... O testamento da guerreira.

Aragon correu em minha direção e um abraço forte selou a vitória. Apesar da insistência dele me recusei a ir de imediato para tratamento. Amparada por um soldado conduzi Aragon até o corpo de Kurgan. Os olhos ainda abertos, sem brilho fitavam o vazio, o rosto pálido, a barba suja, seu corpo grande e forte jazia numa poça de sangue e lama. Estava tão debilitada que não tive força para retirar a espada dele do corpo do saxão. Caí ajoelhada ao lado de seu corpo, fechei seus olhos e finalmente chorei.

Mandei que procurassem por Erin, se estivesse vivo seria condenado como desertor. Não conseguiram encontrá-lo entre as centenas de corpos que jaziam pela cidade. Aragon ajudava na busca pelo subcomandante, perguntando aos soldados que não sabiam lhe informar nada, até que encontrou o corpo do covarde pendurado no portão norte, atravessado no peito por uma lança. O golpe fora tão forte que ela ficou presa na madeira do portão.

..........................................

O Rei acompanhado de um pequeno grupo de guerreiros cavalga pelo pátio até a escadaria do castelo, olhando os corpos de centenas de soldados e saxões espalhados por toda cidade.

As mulheres libertas da torre se agrupavam no salão do trono; o Rei entra e olha ansioso o rosto de cada uma delas procurando por sua sobrinha, quando finalmente a vê. Todas as mulheres reverenciaram o Rei. Como se sentisse o olhar, a Princesa vira-se e vê o rosto cansado do tio. A reação de Gabrielle foi um sorriso largo e com lágrimas nos olhos da mais genuína alegria ela corre até ele. Com lágrimas contidas o Rei a envolveu num abraço carinhoso de um pai, beijou e acariciou seu rosto e disse:

— Minha querida sobrinha! Como temi por você! - Apesar da demonstração de soberania a voz do homem estava embargada.

Gabrielle soube por Aragon do meu estado e do fim de Kurgan e chorou por nós. Das janelas as mulheres horrorizadas viram as centenas de corpos espalhados pela cidade.

Nas horas e dias que se seguiram, sob as ordens de Aragon e do capitão da infantaria de Cair Leon, os soldados carregaram os corpos de seus companheiros ou os pedaços deles e os colocavam em carroças. Em pouco tempo o mau cheiro seria suficiente para ser sentido em Cair Leon. Com urgência uma enorme vala comum foi cavada ao pé de uma colina próxima a Cymru e os corpos enterrados nela. Uma cruz esculpida em homenagem a todos que morreram na batalha, marcava o local. Com relutância, pois os miseráveis saxões não mereciam nenhuma consideração, o Rei ordena ao seu capitão que os prisioneiros cavem um enorme buraco no vale próximo e que enterrem seus mortos lá para não trazer cheiro ruim e doença para a cidade.

O Rei enviou parte de suas tropas junto com o exército de Cair Leon, lideradas pelo seu capitão, por todo território de Crydee, para destruírem qualquer assentamento saxão que existisse a fim de que suas presenças fossem totalmente eliminadas do principado.

..........................................

O Corpo de Kurgan foi lavado e vestido com seu uniforme de capitão para o funeral. A comitiva acompanhou a carroça em que foi colocado. Emocionadas a Princesa, Lady Marna e Aragon estavam ao lado do túmulo construído as pressas do lado direito do túmulo de Lord Borik.

Ignorando a tradição a Princesa me entrega a espada do Mestre de Armas. Agradeci emocionada, mas coloquei a arma sobre o corpo e disse:

— Kurgan foi um homem valoroso que não podia ter morrido. Tenho muito orgulho de ter sido escolhida, treinada por ele e ter lutado ao seu lado em várias batalhas... - Um nó na garganta me dificultava falar. - Agradeço a honra Alteza, mas um guerreiro deve ser enterrado com sua espada. - E chorei.

Ele foi enterrado com honras de herói.

Os meses se passaram, tínhamos muito a fazer, mas agora poderíamos calmamente reconstruir tudo que foi destruído. Curada dos ferimentos eu e um grupo de vinte lanceiros acompanhávamos a Princesa que percorria o território avaliando o que estava sob sua proteção. Passamos por vilas, aldeias e cidades sem deixar de notar a felicidade dos que sobreviveram ao inferno da guerra.

Foi um período de intensa reconstrução para Cymru. Muitas famílias sem lar pediram para se instalar no interior dos muros de nossa cidade. As luzes da primavera chegaram cobrindo a terra ensangüentada de cores e festas, alegrando o coração sofrido de muita gente desolada. Vivemos uma paz significativa nos anos que se seguiram, foi um período de tranqüilidade e prosperidade em todo principado.

Gabrielle nunca havia entendido porque eu me sentia mais a vontade na arena, treinando os novos soldados do que no meu cargo de Conselheira, mas agora ela entendia o que significava para mim o juramento de honra e dever que havia feito ao seu pai, e ela sabia que eu o cumpriria mesmo contrariando sua vontade. Para minha surpresa fui nomeada Mestre de Armas e capitã da guarda. Jurei que enquanto vivesse honraria o nome de Kurgan.

..........................................

Escrevo isso por que quero deixar algumas de minhas memórias registradas. Hoje não tenho mais a força e o vigor da mocidade em que cavalgava por dias seguidos, muito menos para erguer uma espada ou um escudo. Muitas das pessoas com quem convivi, não estão mais entre nós. Minha querida mãe e a fiel e resmungona Lady Marna se foram poucos meses depois de nossa vitória. Aragon o Mestre da Cavalariça que me ensinou a cavalgar adoeceu três anos depois. Recebeu todos os cuidados da família e do médico pessoal da Princesa, mas não resistiu. Morloch foi ferido gravemente na batalha, lutou contra morte por vários meses, se recuperou, mas não voltou a andar, foi substituído por Hadrian que viemos saber ser seu filho. Um dos segredos que o misterioso Mestre de Caça manteve por muitos anos. Martin teve parte de uma perna amputada na batalha, agora se limitava aos serviços de preparar as caças para estocá-las. Era estimado pelos garotos e rapazes do castelo, ficava feliz quando o enchiam de perguntas sobre seu conhecimento da floresta ou quando lhe pediam para contar sobre as lendas das terras nas fronteiras de Crydee.

Lembro-me de Kurgan, meu querido amigo e das palavras do bondoso Tully: - O Senhor ainda lhe mostrará o caminho nem que seja de uma maneira dura e penosa.

Deus me mostrou que meu caminho era o da guerreira, mas para isso tive que perder pessoas que me eram muito queridas. Agora com a velhice entendo perfeitamente o que ele quis dizer.

Hoje eu e minha amada Gabrielle passamos boa parte do dia conversando sob o sol ameno no jardim do castelo, lembrando de muitas coisas como se faz na velhice. À noite quando nos recolhermos, senti uma dor na alma que não consigo explicar. Era como uma despedida. Por isso temendo não ver o dia amanhecer dedico a minha amada Princesa o que talvez sejam minhas últimas palavras: “Eu te amo e te amarei por toda eternidade meu amor e tenho certeza que em outra vida voltaremos a nos encontrar”.     

Ano cristão de 950, que Deus abençoe todos que amei e amo.

Chennai de Cymru.       

FIM                


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O testamento da guerreira." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.