Lírios D'água escrita por Sali


Capítulo 1
Yasen & Aysel


Notas iniciais do capítulo

Como eu já disse nas notas da história, esse conto é totalmente de minha autoria.
Há relação entre mulheres, então, se for incômodo, peço que não leia.
Mas, se você gosta mesmo assim, boa leitura!



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Existe uma história por aí. É antiga, bonita, verdadeira e fala de amor. Não me lembro bem onde ouvi, se foi no farfalhar das folhas da primavera ou no cantar suave da água nas pedras. O importante é que preciso passá-la adiante e espero fazê-lo bem. 

Há muito, muito tempo, nasceu das flores e florestas uma fada chamada Yasen, cuja pele era escura como ébano e cujos olhos eram brilhantes como as pétalas de um girassol. Suas asas, com delicados desenhos como os das folhas, eram frágeis a ponto de filtrar a luz do sol e fortes o suficiente para levá-la onde os pequenos pés não alcançavam. Como todas as outras fadas, Yasen tinha a tarefa de zelar por todas as plantas e flores da floresta onde nascera e, por isso, possuía liberdade para voar e andar pelos caminhos que mais lhe agradassem, desde que nunca deixasse os limites impostos pelos antigos freixos que guardavam o seu lar. 

Da mesma forma, há muito, muito tempo, nasceu das águas e do sal uma sereia chamada Aysel, cuja pele era clara como o luar e cujos olhos eram profundos como o oceano. Sua cauda, com finas escamas que lembravam ondas, refletia ao anoitecer a luz da lua e, ao amanhecer, os primeiros raios de sol. Como todas as outras sereias, Aysel tinha a tarefa de cuidar das águas e de tudo que ali vivia e por isso possuía liberdade para nadar pelos cursos que mais a agradassem, desde que nunca deixasse o meio aquático, seu ambiente natural. 

Yasen e Aysel eram tão diferentes quanto poderiam, e, mesmo assim, possuíam algo em comum. Talvez a curiosidade implacável, o leve desrespeito às regras naturais. Talvez, por serem tão diferentes, se atraíssem de alguma forma, se buscassem como complemento. 

Talvez tivessem sido esses os motivos, ou talvez não existissem motivos para o ímpeto que levou Yasen a desrespeitar as regras impostas pelas fadas e ultrapassar os limites dos freixos, deixando a floresta num certo dia de verão. Com medo, claro, mas com tal curiosidade que tornou impossível à natureza negar-lhe o desejo. E assim Yasen viu-se num mundo totalmente diferente do seu, onde planícies permitiam que se visse o horizonte como ao alcance dos dedos e onde o sol brilhava sem a sombra das enormes árvores para impedir. 

Durante toda uma manhã, Yasen voou pelo ar livre, sentiu o sol lhe aquecer a pele, deixou-se repousar na grama macia, satisfazendo cada curiosidade que a liberdade lhe inspirava. Explorou até se cansar e, quando isso aconteceu, postou-se na beira de um riacho que havia ali, maravilhando-se com o frescor e a textura da água, tão diferentes das chuvas que caíam em seu lar. Foi sorrindo que tocou, quase com medo, a superfície cristalina com a ponta dos pés, brincando de fazer crescer belos juncos ao seu redor. E foi nesse momento que Aysel, que tudo observava guardando distância e curiosidade, decidiu aproximar-se. 

“Quem é você?” 

Yasen saltou com o susto, espalhando água. Com as delicadas asas batendo tanto quanto o coração pequeno, aproximou-se devagar, observando a criatura com grandes e belos olhos azuis, rodeados de cílios tão brancos quanto o resto da pele. 

“Quem é você?”, perguntou, por sua vez, “Não é uma fada, é? Não tem asas...” 

“Asas?”, Aysel franziu a testa, confusa, “O que são… asas?” 

Yasen virou-se então, mostrando as belas asas desenhadas à criatura, que acompanhou maravilhada o movimento. Com um breve floreio, a fada voltou a sentar-se, colocando de novo os pés na água límpida. 

“O que é isso?”, Aysel perguntou, admirada, esticando os dedos pálidos e unidos por membranas para tocar o pé da fada, que riu baixinho ao sentir o toque frio e escorregadio. 

“É o meu pé. Você não tem pés?” 

A sereia negou, subindo com curiosidade os dedos pela batata da perna de Yasen, o que deixou um rastro molhado na pele escura.

“Para que servem?” 

 “Para andar, ora”, Yasen sorriu e, levantando-se, mostrou à sereia como fazia. “Você realmente não tem pés?”

Aysel negou e fez uma volta na água, exibindo como prova a cauda com a cor da meia noite. Admirada, Yasen vislumbrou as escamas escuras refletindo o brilho do sol e mesclando-se com a pele alva.

“O que é isso?”, perguntou então, sem tirar os olhos do corpo da sereia. 

“Uma cauda. Serve para nadar.” 

“É bonita.” Yasen concluiu e Aysel sorriu, formando um silêncio confortável entre as duas criaturas. 

Cruzando as pernas sob o corpo, a fada voltou-se para a grama fresca ao seu lado. Endireitou as costas e fechou os olhos, parecendo, para Aysel, extremamente concentrada. Instantes depois, uma delicada flor surgiu entre suas mãos em concha. Seu miolo possuía o tom alvo da pele da sereia e a ponta das pétalas era tingida com as cores de sua cauda. Com cuidado, Yasen depositou a pequena flor no chão sem tocá-la e Aysel viu o momento em que ela criou raízes e se firmou à terra. 

Em silêncio, a sereia ergueu os dedos unidos por membranas, fazendo com que gotas d’água flutuassem no ar. Depois, derramou o líquido sobre a flor recém-nascida, fazendo as cores nas pétalas tornarem-se mais vivas e adquirirem uma cintilação azulada. 

Erguendo os olhos de sua criação, Yasen sorriu e ergueu os olhos para o céu, para o sol que começava a se pôr. 

“Eu preciso ir agora.” 

Aysel sentiu o coração acelerar. Não queria perder a companhia da fada, não queria deixá-la ir, mesmo sabendo que aquele não era o seu lar. 

“Voltará amanhã?” 

Yasen  acariciou as pétalas cor de meia-noite. Sabia que estaria quebrando regras milenares. Mas, pela sereia, valeria a pena. 

“Cuidará dela?” 

A sereia confirmou, encarando os olhos da cor de girassóis. 

“Então eu voltarei. É uma promessa.” 

Aysel sorriu e acompanhou com os olhos o momento em que a fada deixou a margem do riacho, saltando e voando pela planície antes de sumir na sombra dos freixos milenares. 

“Fale-me sobre o lugar de onde você vem", foi o pedido de Aysel no segundo dia. 

Desacostumada com o sol implacável, Yasen repousava sob uma árvore frondosa. Com os olhos voltados para cima, observava os desenhos que os raios de luz faziam ao passar por entre as folhas esverdeadas. 

“A floresta é diferente daqui”, a fada concluiu, deitando-se na grama fresca e esticando a mão de forma que o brilho do sol aparecesse no contorno dos dedos. “não existe tanto sol. As árvores, grandes e velhas árvores, cobrem quase tudo. No inverno, elas secam e nós, filhos das flores, dormimos para esperar a primavera. Mas quando ela chega, ah. É lindo. Nascem flores de todas as cores e perfumes por todos os lados.” 

“Vocês criam as flores?”, foi a pergunta de Aysel, cujos olhos estavam voltados para a pequena flor de meia-noite. 

Yasen riu baixinho. 

“Por isso somos chamadas de fadas das flores, ora.” Aysel riu também, aceitando a lógica. “Agora, conte-me você sobre o lugar de onde vem.” 

“O oceano não é como a floresta e nem como esse rio. É gigante, infinito. Existem muitas plantinhas coloridas, os corais, mas debaixo d’água. Existem também muitos peixes e outros animais. De todos os tipos e cores. Cuidamos deles também. E é tudo muito azul.” 

Yasen sorriu, abrindo os olhos, que fechara para imaginar o que a sereia narrava. 

“Eu gostaria de conhecer o oceano.” 

Aysel piscou, meneando a cabeça.

“Eu gostaria de conhecer a floresta.” 

E assim como a água pelas pedras do riacho, os dias do verão correram. E em todos eles, Yasen, quebrando as regras e ignorando os avisos, acomodou-se sob a árvore frondosa e ali brincou de criar flores e juncos e contou à sereia histórias sobre seu lar. 

“Todos os filhos da floresta são como você?” 

A fada riu, parando de desenhar veios numa folha pequena que tinha nas mãos para olhar para Aysel. 

“Todo o povo do mar é como você?” 

“Todos têm caudas e escamas. Mas não as mesmas cores. E nem todos moldam a água como eu.” 

Yasen meneou a cabeça. 

“Assim são os filhos da floresta. Nem todos têm asas. Nem todos criam flores. Alguns protegem os animais e deles cuidam. Nem mesmo as filhas das flores são todas iguais: eu tenho as cores do ébano e dos girassóis, mas existem fadas com as cores dos lírios e das rosas.” 

Aysel tombou a cabeça, os olhos vivos de curiosidade. 

“O que são lírios e rosas?” 

Rindo, então, a fada das flores criou lírios e rosas e outras flores e com seus perfumes e cores presenteou a sereia. Esta, por sua vez, deu a Yasen pérolas, pedrinhas e algas coloridas dos mais profundos oceanos e com elas fez adornos para seus cabelos. 

Assim, o verão findou-se e quando as folhas das árvores tornaram-se alaranjadas e começaram a cair, Yasen recebeu o primeiro aviso. As fadas advertiram-na sobre os riscos de deixar a floresta e os riscos ainda maiores do contato com seres das águas. Eles são diferentes de nós, elas disseram, e a natureza não permite que vivamos em paz. 

Mas Yasen conhecia Aysel. Gostava de sua companhia, de sua aparência e do jeito curioso, reservado e doce. E não entendia por que a natureza, criadora delas e de todos os outros seres, obrigaria suas criaturas a viverem separadas. 

E, dotada desse pensamento, a fada voou dia após dia através dos freixos e sentou-se à beira do riacho, onde criou flores e ouviu a sereia contar-lhe histórias de seu lar. 

Em meados do outono, o segundo aviso se fez: as fadas não queriam que Yasen continuasse visitando Aysel, não queriam que ela fizesse flores para presentear a filha das águas. A fada, no entanto, era teimosa e não aceitou a ordem. Gostava demais da sereia para curvar-se a uma regra sem sentido. E assim, cada vez que o sol nascia, ela novamente atravessava os freixos e postava-se sob a árvore frondosa, diante da sereia de cabelos cor de lua. 

Quando a última folha caiu da última árvore e as fadas do inverno começaram a trabalhar, as filhas das flores decidiram agir. Na primeira manhã branca, antes mesmo que Yasen despertasse de seu sono de fada, a aprisionaram no girassol que lhe dera a vida.

Aysel aguardou na beira do riacho durante toda uma manhã e à tarde, sem ver indício da fada que lhe alegrava os dias. E, à medida que os ventos sopravam mais frios e as árvores tremiam sem a proteção das folhas, todas as flores que Yasen havia criado desfaleciam à beira do riacho sem sua energia para dar-lhes vida. 

A sereia, entretanto, não perdeu as esperanças. Mesmo que as águas se tornassem geladas e mesmo que o vento frio insistisse em castigar sua pele, ela aguardou, dia após dia, que a fada voltasse e lhe agraciasse novamente com sua presença cheia de vida. 

Numa tarde gelada, sua espera foi recompensada; na imensidão branca e invernal, que outrora possuíra a vida da primavera, Yasen surgiu. Porém, ao postar-se novamente à beira do riacho, sob a copa da árvore que lhe abrigara do sol, Aysel viu que ela não era a mesma. A cor de ébano da sua pele havia empalidecido e os olhos não brilhavam mais como os girassóis da primavera. 

“Você não está bem.” constatou, sentindo a preocupação lhe tomar ao ver a fada naquela condição. “O que houve?” 

Encostada à árvore, a fada mal conseguia falar. Até mesmo a respiração lhe saía difícil. 

“Eu vim me despedir, Aysel...” 

Os olhos cor de meia noite arregalaram-se e lágrimas de consternação os encheram, roubando-lhe a voz. Em vez de falar, Aysel ergueu a mão, esticando-a até tocar a da fada. Seu aperto era fraco, nem mesmo a vitalidade da água pôde fazer muito para ajudar. 

“As fadas não querem mais que eu venha. Elas me prenderam na flor que me faz viver, de forma que eu só poderia fugir se a destruísse.” Yasen concluiu, forçando-se a respirar.

Aysel soluçou sem perceber. 

“Você fugiu.” 

A fada confirmou com um aceno fraco e mesmo aquele gesto pareceu demandar esforço extremo. 

“Eu não aguentaria viver sem voltar a esse riacho” 

A sereia engoliu em seco, baixando a cabeça, e viu uma gota solitária de água salgada cair e se misturar às águas do riacho. 

“Não há como reverter isso? Eu posso tentar. Posso usar a água e fazer sua flor reviver” 

Yasen abriu um sorriso pequeno, fraco, e balançou a cabeça. 

“É impossível, Aysel. A flor foi destruída para sempre” 

“Tem que haver uma maneira”, a sereia murmurou. “A água dá vida. Eu posso tentar...” ela repetiu, e, com feroz determinação, apoiou-se nos braços, até sentar-se à beira do riacho, ao lado de Yasen.

Com todo o corpo fora da água, seu ambiente natural, Aysel sentiu os efeitos do frio cortante em sua pele. Mesmo assim, concentrou-se o máximo que pôde. Suplicou à natureza e reuniu toda sua energia no desejo de ajudar a fada. Como fizera havia tempo com a primeira flor que Yasen criou, banhou a filha dos girassóis com a água do riacho, rindo sem querer ao ver a bela cor de ébano voltar a tornar-se intensa como antes.

A respiração da fada logo se tornou menos vacilante e ela até riu. Com a ajuda de Aysel, levantou-se e, por alguns segundos, conseguiu bater as asas.

Entretanto, a natureza não parecia ser tão complacente. A luz que brilhara logo se apagou e Yasen voltou a cair nos braços da sereia, que aos poucos sentiu também a energia a deixar.

Sendo ambas tão diferentes, haviam quebrado a principal regra de seus iguais ao tentarem, de todas as formas, viver uma junto da outra.

 “Perdoe-me”, Aysel soluçou então, quando Yasen não mais pôde sustentar-se sozinha. Distante da água, a sereia também mal podia suportar o frio cortante e o ar pesado da superfície e não tardou para que repousasse ao lado da fada.

Entrelaçando os dedos com os de Aysel, a fada não deixou de perceber, novamente, a beleza do contraste entre o ébano e a lua.

“Nenhuma de nós errou, Aysel.” 

A sereia sorriu sem querer, de repente sem pensar em mais nada. Logo, nada mais importava. Nada além da presença da fada ali, ao seu lado. Ela não sentia mais frio ou dificuldade para respirar. Yasen tampouco sentia a dor de seu girassol destruído. A fraqueza, tão dominante pouco tempo antes, parecia naquele momento uma memória distante. 

E então, sorrindo, um par de olhos da cor dos girassóis e outro imitando o céu da meia noite fecharam-se quase ao mesmo tempo e pela última vez. 

A natureza, tocada com o sofrimento de suas duas criações, decidiu usar de seu poder, mais forte que o de qualquer fada ou sereia. Criou, a partir da intensidade do sentimento entre elas, uma flor cujo cerne seria da cor dos girassóis e cujas pétalas teriam o tom do céu da meia noite. Depois, fez com que a flor vivesse como os juncos, enraizada ao fundo dos rios e lagos, com todas as suas cores flutuando na superfície.

Assim termina a história de Yasen e Aysel, a fada e a sereia que se amaram tanto a ponto de quebrar todas as regras que lhes foram impostas apenas para poderem ficar juntas.

E isso explica por que é comum ver, em meio às águas cristalinas, belos lírios d’água a colorir a paisagem.


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Notas finais do capítulo

E corta!
Espero que tenham gostado da história, de verdade!
E, se achou legal, se acha que eu poderia melhorar, deixa seu feedback aí embaixo, eu vou adorar saber!
Obrigada por ler! ♥