Os de azul não dançam bem escrita por Ped5ro


Capítulo 8
O “garoto da camisa roxa”


Notas iniciais do capítulo

Sei que demorei, mas esse é especial! Quero agradecer a Tay, esse anjo ♥
Espero que gostem :)



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No dia seguinte eu acordei com meu celular vibrando embaixo do meu travesseiro. Minha cabeça ligeiramente pesada, mas não chegava a ser uma ressaca. Eu estava com disposição e ansioso com o ensaio do Lorenzo; não entendia muito bem o porquê, mas estava e no canto do meu estômago, vez por outra, sentia um leve desconforto.

 

Me encontra às 22h na esquina próxima do bar. (11:37)

O idiota do meu amigo não botou seu nome na lista (11:37)

Preciso te entregar seu ingresso (11:38)

Assim a gente vai juntos, tudo bem? (11:39)

 

E ainda tinha a festa. A Eduarda tinha dito que ia comigo, mas o Lorenzo recusou. Disse que a mãe não iria deixar, mesmo eu oferencendo que ele dormisse na minha casa. Me desapontou um pouco, mas se ele não queria ir, não ia insistir.

 

Claro! (11:46)

Você tá falando da esquina logo a esquerda, né? (11:50)

Sim, essa mesma. Não esquece (11:52)

22h em ponto (11:52)

Tá tá, não vou esquecer (11:55)

 

Mais tarde ele ainda me mandou uma foto do folheto do evento. Era terrível, eu mal conseguia ler. Vário nomes se misturavam no alto com fotos de pessoas que eu pensei serem os DJ’s ou coisa do tipo, sendo uma metade azul escuro feito em ondas e a outra rosa com relâmpagos num degradê. Depois vinham as informações de preço, lugar, data, hora, etc. Não tive coragem de falar o que achava da chamada do evento, só me concentrei em procurar alguma coisa pra comer na cozinha.

Enquanto tomava meu café da manhã atrasado, Eduarda me ligou e ficamos bastante tempo ao telefone. Discutimos sobre o dia anterior e perguntei o que ela tinha achado do Giovanni. Isso me preocupava muitíssimo, pois ela era uma das poucas pessoas que eu realmente ouvia e se ela o desaprovasse, não saberia como proceder.

— Onde você o conheceu?

— Eu o conheci no bar. Ele “destrancou” Arquitetura e o outro que estava com ele, Carlos, é calouro. – eu ouvia um chiado de outra voz vindo dos alto-falantes da tv. — O que é isso na sua TV?

— É só o vídeo de ginástica da minha mãe. – respondeu, a voz parecia longe. Ela sempre fazia isso, colocava o telefone no viva-voz e começa a andar pela casa fazendo várias coisas. — Sinceramente… Ele é muito bonito, mas acho que tem algo de errado.

— Errado? O que você quer dizer com isso?

— Nada, é só minha intuição.

— Você diz isso agora, não julgue antes de conhecer ele.

— Você também não o conhece… Olha, não estou dizendo pra ficar na defensiva ou que ele seja um maluco. É apenas minha intuição, ele é mais velho, aparentemente não é daqui e tem essa festa cheia de gente que nós nunca ouvimos falar. Ele faz parte de outro tipo de círculo, não quero você desapontado se por acaso ele não for o que você acha que é. – É, ela tinha razão. Quando você não espera nada de ninguém, é muito mais fácil não se decepcionar.

***

Cheguei 10 minutos antes do fim da aula do Lorenzo. Parei com a bicicleta na frente do conservatório e encarei a entrada com o coração descompassado. O lugar em si parecia um tanto sombrio, os portões altos de ferro com espigões no topo, o pequeno jardim de pedra com pequenas estátuas de querubins sobre pedestais. Num canto, perto de algumas árvores de caule fino e delicado, e das roseiras, ficava uma bacia de mármore da qual, incessantemente, jorrava água da boca de um peixe; aquela hora, os pássaros tomavam o último banho do dia antes de se recolherem aos ninhos. De longe ouvi rumores e sons graves, agudos, notas musicais encerradas dentro de salas.

Por um tempo não achei ninguém  por ali, até que, procurando a sala do Lorenzo, esbarrei no que parecia ser uma violinista. Percebi o pacote que carregava com todo cuidado contra o corpo.

— Você pode me informar onde é o auditório 2B. – minha voz fazia um pouco de eco e quase me senti tencionado a sussurrar.

— No fim deste corredor vá para a direita, é a última porta dupla. – falou calmamente. Agradeci com um aceno de cabeça  e quando virei a direita, mais para dentro do prédio, pude ouvir passos e conversas. Era quase como estar numa escola normal, as pessoas pareciam mais silenciosas e reservadas, mas era igualmente dividido em grupos, salas e armários. No interior era tudo muito iluminado, uma janela continua no alto da parede deixava vazar um luz morna. Isso me deu mais confiança e passei a andar mais devagar e olhar a minha volta com mais atenção.

A porta do auditório estava aberta. De longe eu pude ver que era bem grande, as poltronas divididas em fileiras cada vez mais baixas até um pouco antes do palco de madeira, semi-circular. Lorenzo e o piano de cauda negro estavam acomodados no centro, sob a luz artificial de alguns spots. O professor falava com ele em tom de reprovação enquanto eu silenciosamente me acomodei na última fileira. Ninguém parecia ter dado pela minha entrada, então liguei a câmera e a apoiei no braço da poltrona.

— Você entende que não é só tocar dentro de você, mas de decifrar, é como traduzir um texto ou declamar poesia, se trata de um conjunto. – ele subiu ao palco e gesticulava violentamente as mãos para os lados. — É difícil… O que surge além da partitura é misterioso, parte divino e parte demoníaco, mas é o que nos traz aqui. Não vou influenciar no que você quiser tocar, fui designado apenas para orientação, mas você entende o eu quero dizer?

Vi ele quase debruçado, olhando nos olhos do Lorenzo. Parecia mais excêntrico do que erudito, de suéter de lã, mesmo no calor, e camisa pra dentro da calça jeans meio gasta. Mas ele não é a cara do Steve Zissou?

Os dois ficaram de pé, apertaram as mãos cordialmente, o professor subiu as escadas e se deparou comigo próximo a saída. Olhou-me por alguns poucos segundos, se deteve rapidamente num cumprimento inclinado e saiu ainda para o corredor sem dizer uma palavra.

— Venha, sente aqui mais perto. – peguei a câmera no braço da poltrona, ele mexia num caderno meio grosso, cheio de partituras. — Foi difícil achar o auditório?

— Não, pedi informação pra algum aluno quando cheguei. Achei a entrada meio sinistra, mas por dentro é bem normal, parece quase como a escola. – ele deu um riso baixo, enquanto continuava virando página por página do caderno.

— Na primeira vez que eu entrei aqui fiquei em pânico. Era a primeira audição para a seleção, achei que meus dedos tinham virado pedra.

— Que surpresa. Você não parece ser do tipo que fica nervoso. – ele sempre parava um pouco em alguma página, olhava distraidamente e passava. — Tão indiferente e calmo no primeiro dia de BelleVilage.

— E eu estava calmo. – finalmente ele parou um pouco e olhou pra mim. — Eu não fico nervoso por ser aluno novo, nem por estar em outro ambiente tão igual a minha antiga escola…

— Nem com o Tim? – perguntei, mas me arrependi logo em seguida, eu atingi a ferida de um assunto que talvez ele não quisesse falar ou recordar. — Olha, você só precisa ser firme, o Tim é um palerma, é por isso que ele anda sempre com mais duas pessoas, por isso que só implica com os alunos novos, por isso…

— Para com isso, eu sei me defender! – ele ficou mesmo muito aborrecido.

— Você sabe lutar? – ele olhou pra mim com cara de descrença. — Talvez precise um dia, vai saber o que fazer então?

Suspirou.

— Você não pode só ignorar. Você tem que mostrar força, que não é mais uma pessoa no mundo aceitando tudo, divergência também é importante. Seja com o Tim, sua mãe ou seu professor...

— “Orientador”, professor só se eu conseguir passar na próxima audição. – Inacreditavelmente, ele apoiou a mão no meu ombro. Estávamos sentados na mesma banqueta, alisei suavemente as teclas do piano, não conseguia encarar ele de novo. — Eu estou bem, de verdade, é só que eu priorizo outras coisas... Isso aqui envolta, isso é importante, é com isso que eu me importo.

Quando ele pareceu achar o que queria no meio das partituras, mostrou a mim. Era uma série de notas musicais, que pra mim não faziam sentido, com rabiscos de caneta aqui ou ali. Ele tinha uma letra pequena, misturava muitos caracteres de fôrma com vogais feitas manuscritas.

— A primeira vez que escutei essa música eu tinha 8 anos. Ao contrário do que você deve imaginar, eu escolhi o piano, mas gosto de dizer que tive outro chamado, tão significativo quanto o dessa música. – então ele começou a tocar o que veio a ser uma das coisa mais bonitas que eu já ouvi.¹ — Lembro que era meu dia favorito na semana, as aulas de ballet da minha mãe… Só o que toca quando eu lembro daqueles dias é essa música… Ela toca pra mim o tempo todo.

Disse pra mim, no início da música, parecia ao acaso buscar as notas, mas então tudo se encaixou e foi só a música e mais nada. Cada pedacinho dela ressoando na sala, no teto cheio de afrescos e nas cadeiras, dentro de mim. Os dedos dele se moviam ora pacientemente, respirando, ritmando a canção e ora quase com cólera, a respiração se alterando, o peito e os suspiros.

Agora eu rondava a sua volta com a filmadora e ao final da música, sem notar, ela olhava direto para a lente… como se olhasse pra mim. Tenho quase certeza que essa foi das primeiras vezes na qual não houve necessidade alguma de palavras, por assim dizer, o sentimento de compreensão era uma via de mão dupla e estávamos isolados, abandonados, a nossa própria conta. Essa foi a primeira vez que eu senti certa dependência dele e daquela música. Desejei que aquela hora se estendesse para muito além.

— Eu quero tocá-la na audição… – descansou as mãos no colo e voltei a apoiar a câmera em cima do piano para sentar ao seu lado. — Mas ele não acha que seja o bastante.

Entendi “ele” como sendo instrutor.

— É muito bonita e se significa tanto, acho que devia escolher essa. – comecei a mexer distraidamente nas partitura e nas últimas páginas encontrei folhas de caderno comum e outras folhas de partitura preenchidas pela metade com esferográfica azul. — O que é isso?

Pegou os papéis da minha mão  e os arrumou de novo na ordem original.

— É uma música que eu tô fazendo… – se levantou. — Não tá pronta ainda.

— Você já tem que ir? Toque mais alguma coisa. – suspirou e voltou a se sentar. Abriu a pasta e parecia mais certo do que procurava dessa vez.

— Tenta essa, eu te ajudo. – ele tocou as primeiras notas bem devagar e em seguida tentei repeti-las no mesmo ritmo,² mas foi um desastre. — Não, assim não, você precisa dar mais tempo, tocar com calma, dá aqui sua mão.

Ele segurou meu indicador pelas costas da minha mão e tocou as mesmas notas, soou completamente diferente, longe de ser perfeito, entretanto melhor do que na minha primeira tentativa.

— Bem melhor. – afastei minhas mãos me sentindo um pouco desconfortável, ele sorriu pra mim, como se eu tivesse feito algo bobo, não tinha nada demais. Dessa vez, sozinho, ele tocou a música inteira. Era igualmente bela e, durante aqueles minutos, se manteve lenta e suave fazendo voltar-me a sonhar acordado, retrocedendo várias vezes a um passado que não sabia ao certo se existia, se era meu ou como pudera imaginar tais coisas. Era um baú cheio de fotos, tralhas e retalhos que eu vasculhava atrás de mim mesmo.

Chegando a rua, cada um na sua bicicleta, perguntei se ele não iria mesmo na festa.

— Não, tenho que estudar pra matemática. – lembrei que ele frequentava as aulas de matemática especial. Dessa vez resolvi não revirar o assunto, como antes.

— Não sou um prodígio em matemática, mas se quiser ajuda é só falar. – falei.

— A Eduarda também me ofereceu ajuda… – Lorenzo parou de repente, como se tivesse dito algo de errado. — Por enquanto eu consigo me virar, obrigado de qualquer forma.

— Vocês têm conversado ultimamente? – perguntei de uma vez, ele não me respondeu na hora, provavelmente preocupado com o que eu acharia disso. Mas eu não me importava, essas coisas sempre aconteciam, talvez eu sentisse um pouco de ciúmes, mas era algo tão imperceptível, duvido que ele sequer notasse.

— Sim… Quer dizer, nem tanto…

— Você não precisa esconder que gosta dela de mim, okay?

— Eu não gosto dela desse…

— Qual é? – interrompi. – Eu já vi o jeito que você olha pra ela, se não quiser admitir pra si mesmo tudo bem, mas não mente pra mim.

Ele abaixou a cabeça e não falamos o resto do caminho.

***

Estávamos parados na esquina. Eu sentado no meio fio e ela de pé na minha frente, reclamando que poderíamos esperar sentados no bar.

— O bar tá muito cheio hoje. – levantei e olhei a hora no celular pela décima vez. — Fora que meu pai tá lá e vai fazer mil perguntas, você sabe disso.

Então mudei de assunto até o Giovanni chegar com o carro e encostar no meio perto de onde estávamos. Se inclinou pela janela do carona, onde o Carlos estava sentado.

— Eaí, vamos? – abri a porta para Eduarda e assim que entramos ele arrancou rapidamente. O rádio estava ligado, mas a música estava muito baixa. Fomos nos afastando lentamente do trânsito no centro, seguindo por ruas laterais. Os dois conversavam seriamente sobre alguém que eu não fazia ideia de quem era, até que o Carlos me olha pelo espelho de dentro e começa a rir.

— O que foi? – olhei para Eduarda e perguntei se tinha alguma coisa no meu rosto.

— Não é isso, é sua camisa. – ele respondeu, então o Giovanni olhou e riu enquanto soltava um “que merda”.

— O que foi? Eu manchei ela?

— Você não sabe? Você não falou com ele? – Carlos estava apoiado no encosto do banco, deu um tapa no braço do amigo e disse pra ele: — Você é um idiota.

— Eu esqueci tá, eu mandei a imagem do flyer, você não viu? – perguntou pra mim.

— Vi… mas o que tem isso? Vocês estão me deixando nervoso.

— É uma festa “temática”. Azul e Rosa, e você veio de roxo. – Carlos falou.

— Dane-se, não é obrigatório. – ele disse. Olhei para a Eduarda e comecei a rir porque a blusa que ela vestia era azul marinho.

Já ouvi o barulho da música muito antes de encontrar o lugar. Seguimos por uma estrada estreita por uns 10 minutos até ele estacionar onde parecia ter sido um armazém muito antigo. As paredes estavam completamente cobertas de grafite e frases de música, as luzes coloridas e pulsante escapavam com alguns buracos aqui e ali.

Passamos pela porta gigantesca guardada por um segurança. Depois subimos uma escada lateral de ferro até uma espécie de mezanino, poucas pessoas circulavam por ali e a maioria estava acomodada no lado oposto, onde havia um sofá e algumas cadeiras.

— Como sempre, Giovanni não perde essa mania de ser o último a chegar? – um cara se levantou do sofá, era bem alto, um pouco forte, o cabelo puxado pra trás com gel, meio anos 80.

— Eu encaro como uma maldição de família, a melhor herança que meu pai vai deixar. – Giovanni brincou e os dois apertaram as mãos e se abraçaram. Eu e a Eduarda estávamos agarrados um ao outro, buscando algum ponto de segurança além de nós mesmos. De fato, todos me eram desconhecidos e mais velhos, alguns nem tanto.

— E vocês são? – ele perguntou vindo na nossa direção, falamos nossos nomes e pouco a pouco foi nos apresentando a todos. Logo fiquei taxado de “garoto da camisa roxa”, mesmo que não fosse o único a não estar de acordo com o tema, aceitei a brincadeira. Kelly, uma amiga do Giovanni, achou minha atitude poética.

— Roxo, além de ser a mistura entre o rosa e o azul, é sabedoria também. – chupava um pirulito, tinha uma expressão meio selvagem, caminhava entre alguma coisa de desejo e sórdida reserva.

— Isso é pra vocês começarem. – entregou a mim duas pulseiras prateadas, dois cartões magnéticos e dois saquinhos ziploc pequenos, cabiam na palma da mão.

— O que é isso? – perguntei.

— Passes pra qualquer lugar da festa e o cartão é pra pegar bebida. – ele respondeu, apontei para os dois saquinhos, mas antes que pudesse responder saiu pra falar com outra pessoa.

— O que é isso? – discretamente puxei o Giovanni pra tirar a dúvida. Eram drogas? Sim, mas quais?

— Doce e bala,³ Leo que te deu isso não foi? Aquele marginal. – ele olhou pra mim e fez menção de pegar, mas eu guardei no bolso da calça. — Você vai tomar?

— Talvez. – dei de ombros e ele sorriu diferente pra mim. Depois de encontrar com Eduarda, que conversava com Kelly e outras pessoas, desci para a pista. Era como entrar em outro lugar, pedaços longos de tecido pendiam do teto e luzes piscavam de todos os lugares possíveis, até o chão em certas partes era colorido.

— Você quer testar isso antes? – ela perguntou agarrando minha mão e mostrando o cartão. Eu não estava muito seguro se o cara do bar ia nos servir bebida alcoólica, visto que, nenhum de nós dois parecia ter mais do que 18.

— Duas batidas de morango, por favor. – ela chegou no balcão e pediu a um dos rapazes, ele nos deu uma boa olhada, pediu os nossos cartões e passou no caixa. Pegamos os drinks, meio bobões por ter conseguido e saímos para um canto que não tivesse tanta gente.

Logo que estávamos quase nos beijando, o pessoal apareceu e começou a brincar.

— Não acredito que numa festa dessas vocês estão aí! – o cara que me deu os saquinho, Leo, me empurrou de leve.

— Vem vamos dançar agora. – Kelly e outras duas meninas puxaram Eduarda, fiquei mais um pouco, peguei o saquinho no bolso e chamei o Giovanni.

— Você toma um doce comigo? – pela reação anterior dele, achei que fosse recusar ou me reprovar, mas eu tava tão afim de sair de mim de alguma forma naquela noite, acabei não pensando duas vezes.

— Uau! Você quer mesmo fazer isso? O outro não era da Eduarda?

— Sim, mas ela não vai querer e ainda não vai deixar eu tomar.

— Tudo bem então. – dei um dos quadradinhos pra ele e coloquei o meu debaixo da língua.

— Quanto tempo você acha que vai demorar. – de novo ele sorriu daquele jeito diferente, como a Kelly, meio sem destino, traiçoeiro na medida que você apontava mais um pé na frente dele. Me puxou pelo braço para o meio da pista, na procura das garotas. Será que eles são irmãos?

Muito mais tarde, acabamos por encontrar Kelly num esbarrão que eu dei. Pedi desculpas e quando eu vi que era ela, me abraçou como se a tempos não nos encontrássemos.

— Onde a Eduarda tá? – perguntei.

— Acho que deve estar com algum cara. – depois apontou pro mezanino e pude ver ela apoiada no umbral, se agarrando com Leo. Bem a cara dela.

— Ela é sua namorada? – Kelly perguntou, meio de provocação.

— Não… – olhei de novo para o mezanino e não parecia que a coisa ia acabar tão cedo. — É só uma amiga.

— Para com isso, vem dançar. – os dois falaram, quase ao mesmo tempo, ou parecia ter sido ao mesmo tempo. Aquelas horas, meu corpo já tinha um calor completamente estranho, mas agradável, sentia a mim mesmo feito de nuvem, tamanho era a facilidade de mexer meu corpo e meus braços, pernas; criaturas rondavam cada brilho e cada sombra, o místico adquiriu formas tão diversas. Eu era o centro de um ritual. Pagão? Divino? Oculto?

Giovanni segurava na minha cintura e Kelly, na minha frente, me agarrava pelo pescoço. Ambos tão próximos que já era difícil responder onde eu próprio terminava. Eu sentia uma boca no pescoço e aquilo me arrepiou, me despertaram logo outras coisas, minhas mãos tocando seios, depois bunda, então uma mão seguindo no meu peito até minha barriga e nós pressionando e juntando ainda mais.

Kelly beijou minha bochecha, depois a minha boca, bem devagar, acho. As sensações eram fortes, mas a maneira como iam ocorrendo poderiam não ser assim de fato, como o gosto de cereja na boca dela; ou era a minha? Pareciam horas e eu podia ficar ali quanto mais tempo fosse. Meu coração batia mais forte quando ela me largou e disse por cima do meu ombro:

— Sua vez. – me aconcheguei no pescoço dela e senti o ar fresco nos cabelos, antes de virar meu corpo ainda ouvi. — Ele beija bem.

Giovanni foi então me virando lentamente e quando ficou na minha frente, alto e protetor, senti uma vontade louca de me aconchegar no peito dele, a pele estava mais quente que a minha, meu nariz roçava a barba rente e logo eu senti o lábio dele na minha orelha. Nos olhamos por alguns segundos, ele passou a mão pelo meu rosto, passei meus braços envolta da sua cintura e então fui me aproximando, incerto. Era diferente, estar com ele tinha um jeito diferente agora, deixei-me afundar um pouco mais nessa sensação; eu sentia a excitação dele e minha pele não parava um segundo de se arrepiar. O que era isso? De repente a música, como se por uma falta de atenção minha, foi gradualmente mudando com os meus sentimentos, ele, de alguma maneira, sussurrava no meu ouvido planos, sugestões, orações de confiança e profundidade.

— Je vais commencer d'une nouvelle vie aussi bien.⁴ – eu sabia de onde era isso. Talvez um filme?

— Avez-vous peur?⁵— ele deitou minha cabeça no seu ombro, por um momento consegui ouvir o coração dele pulsando, mais alto do que a música. A mão fazia carinho na minha nuca, meu corpo relaxava e deitava cada vez mais naquele misterioso desejo que ia surgindo, nos movíamos lentamente e de igual maneira minha boca foi se aproximando da dele; como o décimo segundo planeta, cruzando o infinito espaço, continuamos a seguir o nosso caminho.

— Não adianta sentir medo das coisas que desconhecemos completamente. Você é igual a uma criança. Sente medo do escuro.⁶ – então sua boca embalou a minha e foi como ter o centro da terra no estômago, a lava se mexendo dentro da gente. Eu o apertava mais de encontro a mim no esforço inútil de me fundir, como se eu estivesse quebrado e ali, nas minhas mãos, se encontrasse uma parte que faltava terrivelmente. Lágrimas foram brotando no meu rosto e as palavras continuaram soando junto da música, de tudo. Me apertei contra seu peito, encolhido, enquanto ele e Kelly me envolviam no maior abraço que eu já tinha recebido na minha vida.

Nos três permanecemos naquilo durante algum tempo. Muito tempo? Pouco tempo? Quanto tempo? Tem importância? Aquele era um instante único em tantos, não importava a passagem da hora, de nada; estávamos acontecendo e tudo parecia místico, assim sucedia o ritual daqueles estranhos deuses de carne.


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Notas finais do capítulo

¹ Fantasie in D minor, K. 397, Mozart
² Song On The Beach, Arcade Fire
³ gírias para LSD e ecstasy.
⁴ “Eu vou começar uma nova vida também”, tradução livre.
⁵ “Você tem medo?”, t. l.
⁶ A história secreta, Donna Tart

Então, o que vocês acharam? Recomendo que vcs ouçam as músicas pq são muito lindas, a primeira ele toca só até mais ou menos a segunda parte (5:15 na versão do Daniil Trifonov). A segunda é da soundtrack de "Her", um ♥
Espero ver vocês logo ;)



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