Os de azul não dançam bem escrita por Ped5ro


Capítulo 7
“Não o conheço, eu não o conheço”


Notas iniciais do capítulo

Bom, talvez eu tenha demorado um pouco! Peço mil desculpas. Espero que gostem :)



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Encontrei com o Giovanni no bar algumas semanas depois. Veio acompanhado de dois amigos, um deles era o Carlos. Era quinta e eu, sinceramente, não esperava vê-lo, pelo menos não por um bom tempo. Mas ali estava ele e quando me aproximei da mesa, lembrou de mim e nos cumprimentamos rapidamente. Depois fui ajudar na cozinha, já que o movimento não estava tão grande como ficava nas sextas. O Ben veio me chamar lá dentro, depois de umas 2 horas, dizendo que um cliente queria falar comigo e quando tirei o avental, ele estava com os cotovelos apoiados no balcão de mármore preto, me esperando.

— Eai cara! Achei que você já tivesse ido embora. – falou, sequei minhas mãos na camisa e sai detrás do balcão até o lado de fora, onde os amigos dele esperavam.

— É que eu prefiro ficar na cozinha quando o movimento no bar tá mais tranquilo.

— Não vou te atrapalhar, eu só queria te convidar pra uma festa, vai ser sábado, meus amigos estão organizando e disseram que eu podia chamar quem eu quisesse. Topa?

— Uau! Não sei, quer dizer… – fiquei surpreso pelo convite, de verdade, quase comovido. Eu não conhecia ele tão bem assim, mas não era como se eu desconfiasse dele, podia até ser completamente o contrário, eu já tinha por ele uma simpatia moderada. — Sim, claro!

— Ótimo então! Eu vou te dar o número do meu telefone pra te passar o endereço, nomes, essas coisas. – ele anotou o número dele num pedaço de guardanapo e me deu.

— Ótimo e… teria problema se eu levar mais duas pessoas?

— Não, que nada! Quanto mais gente melhor. – apertou minha mão e me deu um daqueles meio abraços, cumprimentei os outros meninos e quando eles estavam atravessando a calçada, corri e gritei o nome do Giovanni.

— Bom... eu também queria te fazer um convite Amanhã minha escola vai fazer uma tarde recreativa para as crianças da creche do lado... Se você quiser ir, não é um programa dos melhores mas… – dei de ombros. A professora de Filosofia Moderna disse que as duplas que se voluntariassem para essa “tarde de atividades” iriam acrescentar pontos extras ao trabalho final. “Por poder presenciar algum esforço que vocês fizeram”, ela disse, mas a verdade era que quase ninguém se inscreveu para o trabalho voluntário e eles precisavam de um mínimo de pessoas pra atender as crianças. Inscrevi eu e o Lorenzo no mesmo dia, mesmo sabendo que ele ia odiar.

— Como assim você botou meu nome nisso sem falar pra mim antes? Não posso na sexta, tenho aula de tarde.

— Vale pontos extras! E não sei se você reparou a gente não fez progresso nenhum, eu sei que é difícil começar, mas eu preciso da sua ajuda, não dá pra fazer tudo sozinho. – respirei, não queria falar alto demais pra ele achar que eu tava “brigando” ou dando um “esporro”, porque na verdade não era, não muito. O pior era saber que ele não tinha movido nem um dedo, quase não falava comigo nas aulas e passava mais tempo lendo do que falando. — Diz pra sua mãe, seu professor, sei lá… É um trabalho importante, vale metade da sua nota e você não pode ter o respeito como músico se não terminar o ensino médio.

Ele olhou pra minha cara entediado. Lorenzo não queria mesmo ir naquela “tarde”, mas nem eu queria. Preferia ajudar no bar ou sair ou só dormir mesmo, já não suporto a escola no tempo normal, ter que voltar lá quando poderia estar muito bem me dedicando a atividades mais interessantes já me faz perder a vontade.

— Você vai, já que a Eduarda vai também, não acho que você vá querer perder isso. – ele arregalou um pouco os olhos e corou. — Aparentemente, diferente de nós dois, ela gosta de participar desse tipo de evento.

Não preciso dizer que depois disso o assentimento foi mútuo. Me senti um idiota por convidar o Giovanni para aquilo, mas eu não tinha nada melhor pra falar e senti que precisava tirar o sentimento de estar lhe devendo alguma coisa dos ombros. Não esperava que ele fosse ou que aceitasse logo de cara.

— Sim, sim. Eu vou aparecer lá. – falou num tom neutro, acho que só pra fechar o assunto.

— Bom, vai acontecer no BelleVillage, aqui perto, você deve saber onde, 14h. – torci as mãos e mexi no cabelo meio sem graça. — Mas não se sinta obrigado aparecer, bom… Não vai ser nenhuma festa, então…

— Que nada! Vou arrastar esses caras comigo também. – me despedi uma última vez com um aceno e voltei para a cozinha do bar correndo.

***

Minha mãe me acordou na manhã seguinte. Achei que fosse um sonho porque ela raramente faz isso. E quando eu digo “raramente” é como se fosse: anos bisextos, eclipse solar ou aurora boreal. Minha mãe tem uma dificuldade gigantesca de levantar da cama antes das 9h. Então vê-la se levantar antes do meu despertador era uma ocasião especial.

— Querido, preciso da sua ajuda para preparar o jantar. Seu pai anda tão desanimado esses últimos tempos, queria fazer alguma coisa diferente, levantar o ânimo dessa casa. – ela me explicou na mesa, enquanto eu tomava café da manhã. Também não era do feitio da minha mãe cozinhar. Em geral, se não comíamos o que a Cecília deixava pronto, ou jantávamos em algum lugar por perto ou devorávamos o que tivesse na geladeira, sendo essa última a minha última opção, quando meus pais saiam e voltavam tarde pra casa, fato que acontecia frequentemente.

— Tudo bem, mas não vou poder ir ao supermercado com você. Tenho compromisso à tarde.

— Que compromisso? – perguntou fazendo um pequeno muxoxo com a boca. — Faz tanto tempo que a gente não sai juntos. Podíamos comprar umas roupas novas pra você, não quero que se vista com aquelas roupas velhas.

— Não posso faltar, é coisa da escola… – levantei antes que ela continuasse a falar, tomei os últimos goles do cappuccino bem rápido e completei. — E minhas roupas não estão velhas.

***

Depois de acabado o último tempo de aula, me encontrei com a Eduarda na saída. Combinamos de almoçar no restaurante da mãe dela, já que era mais fácil do que ir pra casa e logo em seguida ter que voltar pra escola.

— Vamos? – perguntei, eu já tinha começado a caminhar, mas ela continuou parada no portão.

— Seu amigo, Lorenzo, não vem? – Merda, esqueci dele.

— Hmm, claro, claro. – devo ter feito uma cara meio azeda, pois ela socou forte meu braço e começou a brigar comigo.

— Seja legal com ele, okay? Ele é novo e não conhece nada por aqui.

— Eu estou sendo legal, mas o cara nem se esforça. Ontem eu liguei pra casa dele, a mãe atendeu e disse que ele já estava dormindo.

— SÉRIO? – eu não consegui evitar o tom de surpresa. — São tipo… 22h.

— Amanhã você pode ligar um pouco mais cedo, hmm? – Ironia. Okay, okay, já entendi.

— Tudo bem, então, só avisa que eu liguei.

— Ué, algumas pessoas dormem cedo, nem todo mundo tem o sono desregulado igual ao seu, e também é que… – ela suspirou, segurou na minha mão brincando com os meus dedos. — Acho que vi aquela galerinha do Tim caçoando dele na fila do refeitório.

Todos os alunos do BelleVilage tinham o perfil de quem sofre bullying, por isso, ninguém tinha o poder para inferiorizar ninguém. Talvez fosse mais do que isso… Talvez eles mesmos tivessem adquirido a consciência de não praticar bullying, pois não gostariam de sofrer tal coisa (ou voltar a sofrer, vai saber) ou… Talvez essa ideia seja complicada demais pra cabecinha deles.

Mas o Tim era uma das poucas exceções no ecossistema quase “perfeito” da escola. Ele não era nenhum bicho grande. No geral, era tão normal como qualquer aluno com TDAH consegue ser. Mas sempre que surgia algum aluno novo, ele e os demais palermas criavam a disposição pra perturbar o pobre coitado. Com o tempo, e se a pessoa tivesse um pulso firme, logo ele se cansava e deixava o outro em paz. Mas a imposição/oposição a ele tinha que ser clara e firme, senão ele montava em você durante meses. Já vi isso acontecer antes.

— Okay, eu vou tentar ser mais legal. – ela fingiu que ia me bater de novo. — Óh humanitária, dublê da Madre Teresa.

— Não brinca com isso, você sabe muito bem como eu sou e, igual a você, não morro de amores pelo Tim. – ela tinha razão. A gente quase entrou numa briga, eu e o Tim, por causa da Eduarda. Foi assim que a gente meio que se conheceu, alguns anos atrás. Ele não parava de persegui-la pela escola, dando em cima dela pra pagar de machão na frente dos amigos e eu não suportei ver aquilo. Acabamos só gritando um com o outro, já que o Tim só finge que sabe brigar. O máximo que ele pode fazer é me esmagar, acho.

No fim das contas perdemos 15 minutos do almoço esperando o Lorenzo. A desculpa foi de que ele passou na biblioteca e esqueceu de que tínhamos marcado o almoço para aquela hora. Como eu prometi ser mais legal, então não reclamei nem falei coisa alguma durante todo o trajeto da escola até o restaurante.

— Que bom que vocês vieram. – a mãe da Eduarda veio nos receber muito rapidamente, logo depois que nos acomodamos na mesa que ela havia deixado reservada. Era difícil conseguir reserva naquele restaurante, na hora do almoço era missão impossível. — Só assim pra minha filha vir aqui me ver.

Ela disse sorrindo pra mim, franzindo um pouco o nariz, mania que a filha também herdara. A Eduarda não gostava de vir no restaurante da mãe, eu não fazia ideia do porquê e também nunca tinha perguntado, tanto fazia, o lugar não me trazia as melhores lembranças.

— Eu tenho que voltar para a cozinha, aquilo não funciona sem mim, vocês sabem… – antes de sair se inclinou na cadeira da filha por alguns segundos, passou a mão pela bochecha e a segurou suavemente pelo queixo. — Tente o peixe com ervas finas, está fresco e seria bom você comer alguma coisa além daquela soja e salada.

— Tá bom mãe. – respondeu e assim que a mãe saiu, se virou pra mim e revirou os olhos. — Ela nunca muda, né?

O sonho da Eduarda era ser vegetariana, então ela começou alguns meses atrás a cortar todo tipo de carne e coisas que poderiam ter sido outra coisa se tivessem tido tempo de nascer ou morrer naturalmente, sei lá. Essa coisa toda de vegano/vegetariano me deixava confuso, mesmo que ela tenha dedicado pelo menos 2 horas do dia, durante longas semanas, para me alertar o quanto os animais sofrem em abatedouros e dezenas de outras coisas.

— Eu vou no prato do dia. – disse ao garçom e entreguei meu cardápio.

— Sem entrada? – ele perguntou.

— Não, não temos muito tempo. – Eduarda falou por mim. — Eu vou querer o mesmo, sem a carne e salada de legumes.

— Eu quero o peixe com ervas finas, por favor. – o Lorenzo pediu olhando timidamente a Eduarda e, por mais não-vegana que tenha sido aquela atitude, ela lhe sorriu complacente. Tudo bem tirar peixes do oceano para alimentar sua barriga capitalista carnívora.

Comi meu prato com costelas de consciência tranquila. Depois pedimos a sobremesa, recusamos o café e caminhamos até o ponto do ônibus. No caminho a Eduarda contou, basicamente, toda sua trajetória no BelleVilage, enquanto eu pontuava pequenas observações nas partes em que eu deveria aparecer. Falou dos professores, dos lugares, dos amigos, das atividades, falou de coisas que não cabiam mencionar, principalmente o que era relacionado a mim, mas eu deixei, me tirava dos ombros a tarefa de falar. Até então, eu mesmo não sabia o que dizer sobre mim, de início parecia uma coisa simples, mas toda vez que eu olhava para o Lorenzo – fixado em algum livro ou olhando, em silêncio, para o nada na hora do intervalo – me perguntava o que em mim ele poderia buscar e vice-versa. E a ideia do quebra-cabeças começou a ficar complicada, mais difícil. Sentia essa leve dúvida, suave, porém, inescapável, se instalando nos meus pensamentos e se desdobrando ao tanto que eu tentava prosseguir. O quanto eu sei das pessoas que estão a minha volta?

Chegamos alguns minutos atrasados, nada grave, já que nem metade dos voluntários tinham aparecido ainda. Nesse meio tempo o instrutor foi nos informando e separando para as atividades. Cada um ficaria com um grupo de mais ou menos 5 crianças e esse grupo faria uma atividade, trocaríamos de grupo de quanto em quanto tempo, para que todos pudessem ter a oportunidade de participar de tudo.

Admito que aquele tempo foi mais divertido do que eu achei que poderia ser. Montaram uma lona, igual aquelas de circo, enorme, no jardim, vários baús e caixas e mesas de cadeiras pequenas espalhadas em nichos. Eu fiquei responsável pelas histórias com fantoches, o Lorenzo com as atividades manuais e a Eduarda pintava o rosto das crianças com tinta. Quase uma hora depois o Giovanni chega com o Carlos. Levantei correndo e fui falar com ele. A princípio o instrutor não quis deixar ele entrar, mas eu expliquei que o tinha convidado pela falta de voluntários, assim, ele autorizou e fui puxando-o pelo braço para que viesse me ajudar nos fantoches, enquanto o Carlos ajudava o Lorenzo.

— Eu não achei que você fosse vir. – falei antes de reiniciar a história com os fantoches.

— Isso que é dar uma palavra de confiança. – ele gargalhou com minha cara de vergonha e não deixou que eu me defendesse. — Eu só tava brincando… na verdade, não é a primeira vez que eu venho aqui.

E realmente, não era. Algumas crianças se lembraram dele e as outras logo engataram na agitação que ele formou, e sem dúvida ele levava muito mais jeito pra coisa do que eu, talvez o nosso grupo era fosse o mais barulhento.

— A sua professora chegou, troca de lugar com o outro menino e ajuda o Lorenzo nas máscaras. – a Eduarda me avisou depois de mais alguns minutos. Mas eu não queria deixar o Giovanni, é complicado explicar. Ele tinha jovialidade, uma maneira pra falar, um jeito com as crianças e os cuidados. Eu quase não conseguia contar a história com os fantoches por que ele me fazia rir com os improvisos desavisados e as crianças também riam. Me senti meio idiota perto dele, mas de uma maneira boa. A todo momento eu tinha que me lembrar, “não o conheço, eu não o conheço”, mas ele exercia um peso de autoridade implícito, como se tivesse uma força mas a poupa-se. Talvez fosse tudo impressão minha, mas eu não me sentia inclinado a questioná-lo em nada, obedecia e até procurava agradar sem o perceber na hora. Por alguma razão, ele me lembrava em muito meu tio Theo – embora fisicamente fosse quase o oposto –, só que jovem, com uma maturidade mais prematura, postura mais flexível.

Olhei para o grupo que o Lorenzo estava, as crianças sentadas numa roda em volta dele e do Carlos, apontando isso ou aquilo nos círculos de papel-machê com três furos que seguravam. Pareciam mais sossegados.

— Aquilo são máscaras? Achei que fossem frisbees. – ela semicerrou os olhos. Levantei as mãos em pedido de paz e fui até ele. Me inclinei no ouvido do Carlos.

— Vim te render cara. – ele se levantou. A mão completamente suja de tinta, o óculos de aro dourado pendendo um pouco mais na ponta do nariz. — Desculpa se o Giovanni te arrastou pra cá contra sua vontade.

— Que nada, não tem problema nenhum. Eu até que curti, seu amigo é bem divertido. – olhou pro Lorenzo que estava afastado, deitado no chão, enquanto as crianças experimentavam todas as máscaras nele e depois tiravam fotos. Bem divertido? — Além disso, sou calouro, tenho que seguir o Giovanni até o fim do período, não posso reclamar, ele é bem legal comigo, os outro é que sofrem.

— É. Ele é bem legal. – não sei porquê, mas gostei de ouvir aquilo, era um alívio, posso dizer. Então talvez não seja só uma ideia maluca na minha cabeça.

Antes de sentar no chão, peguei minha câmera e comecei a filmar as crianças em volta do Lorenzo. Ele tirando e pondo as máscaras ou encaixando 2, 3 ao mesmo tempo no rosto. Esperei. Era uma boa cena. E de novo, ele parecia diferente, não era o mesmo da escola ou do almoço mais cedo naquele dia. Falava mais e ria, até das coisas bobas que as crianças diziam. Uma garotinha tinha se agarrado na manga do casaco dele e ele a arrastava pra lá e pra cá segurando uma das máscaras.

— Cadê o Carlos? – me perguntou quando conseguiu se desvencilhar das outras crianças, mas com a garotinha a tiracolo.

— Foi ajudar o Giovanni com as marionetes. Vim substituí-lo. – fiz pose de super-herói com as mãos nos quadris, uma brincadeira pra pequena. — Qual o seu nome gracinha?

— Ana. – respondeu se agitando no Lorenzo. Segurava firmemente a máscara e não parava de encara-la.

— Foi você que fez? Posso ver? – ela hesitou, mas ofereceu a máscara com a pequena mão morena suja de tinta e purpurina.

— Foi o tio que fez, ele me deu porque amassaram a minha. – era uma máscara toda preta, na parte da boca os dentes eram dourados e pontudos feitos com glitter, ao redor dos olhos vários desenhos, como escamas brancas, se entrelaçavam e cobriam a parte superior. Era detalhado demais para ter sido feito por uma criança de 5 anos, e muito bonita também.

— É muito bonita, igual a você. – entreguei a máscara e dei uma batidinha carinhosa no nariz. Olhei nos olhos do Lorenzo, ele também olhava bem direto nos meus. “Você teria dado um bom irmão”, eu pensei. E sinceramente, queria que ele pudesse ler meus pensamentos naqueles exatos segundos. Queria ter dito em voz alta ao invés de ter só pensado, mas não encontrei forças, nem sabia se ele entenderia o que eu queria dizer com aquilo. Foi como uma picada de agulha no meu subconsciente, um veneno lento de culpa. Não sei porque, de repente, voltei a época do meu avô, muito antes de qualquer sinal de doença, onde todos os lugares da casa dele inspiravam um carinho no meu corpo, onde eu tinha construído um certo tipo de segurança, muito diverso dos outros, essas que fui perdendo com o tempo. De repente, me senti melancólico olhando nos olhos dele, de repente, me senti culpado por em alguma parte, no fundo de mim, eu tentar afastá-lo.

***

Cheguei em casa completamente acabado, mental e fisicamente. Queria que tivesse alguém pra me dar banho e me colocar na cama com carinho, assim que eu pusesse meus pés na porta. Mas ainda tinha o jantar e a minha mãe e o meu pai e todo o processo de conversação antes, durante e depois da preparação de tudo.

Assim que eu tomei banho e pus uma roupa confortável, o que envolve calças curtas – bastante mobilidade nas pernas e ar fresco – e camiseta larga com o adicional do cabelo molhado, olhei minha cama e todas as linhas de raciocínio terminavam na direção daquele conforto sob das cobertas, travesseiros, a paz e  a solidão necessárias para remoer todos os pequenos momentos daquele dia. Em especial os com o Lorenzo. Depois desse dia, comecei a jogar sob uma nova luz todas as antigas conclusões que já havia tirado, era como conhecer ele de novo e de uma maneira mais livre. Percebi que eu não gostava dele no início, mas essa repulsa era só uma espécie de receio. Ele era diferente, sim, provavelmente era isso. E eu tinha medo justamente por isso, por ele ser completamente diferente de todos os outros, e também por não se dar conta disso, vivia – quem poderá dizer que não? –, num nível acima, senão antes, em lugar completamente nulo de qualquer julgamento ou aversão. Na minha minha vaga percepção, ele tinha essa inspiração, de que, era muito mais fácil fingir não estar aqui para suportar estar aqui. Eu não o conhecia absolutamente e estava tentando responder um adivinha sem nem ao menos ouvi-la um tanto que fosse. Me fazia de superior quando na verdade, mutuamente, acredito agora, nos repelimos e silenciamos.

— Você vai fazer alguma coisa amanhã de tarde? – Lorenzo perguntou ainda olhando firme nos meus olhos.

— Não, porque? – respondi. Pensei que minha voz tivesse falhado, que aquela maneira de olhar só tivesse peso sobre mim e que ele não poderia saber disso. Ou poderia?

— Vou ensaiar amanhã. Você disse que queria ir, aí falei com meu professor, ele disse que depois das lições não tem problema, a sala vai ficar aberta quanto tempo eu precisar. – finalmente ele apoiou a menina no chão, pegou-lhe a mão e se virou novamente em direção ao grupo abandonado. — As lições acabam às 17h, vou te esperar por 20 minutos, depois eu tenho que ir pra casa.

Minha cabeça não parava de rodar em volta disso. As palavras e os gestos dele se repetiam e repetiam mil vezes até mamãe vir me chamar no quarto e arrastar para a cozinha.

— Eu quero fazer pernil. O que você acha? – começou a tirar as comprar das dezenas de sacolas e jogar onde encontrasse espaço.

— Pernil? Isso não é só no natal?

— Mas seu pai adora pernil, além disso, foi tão difícil pensar em alguma especial e só encontrei pernil num mercado quase do outro lado da cidade, então não vem botar defeito.

— Foi você que perguntou. – eu estava esgotado e não sei o quanto aguentaria ali com a minha mãe, tendo que preparar um pernil. Primeiro fiz ela parar de tirar tudo aleatoriamente das sacolas e jogar pra qualquer lugar, depois tentei o melhor possível organizar tudo na despensa, para só então separar os ingrediente, cuja lista e modo de preparo nós tiramos de um livro de receitas qualquer de um programa de culinária que minha mãe assistia. Bom seria se ela praticasse mais.

No fim das contas, ficou bom. Minha mãe comprou vinho e deixou que eu tomasse uma taça. Como nenhum dos dois prestou muita atenção em mim depois que eu falei sobre como fora meu dia, tomei mais 4 ou 6 taças. Coisa que rendeu uma leve dor de cabeça no dia seguinte. Mas os benefícios de um pouco a mais de álcool durante o jantar foram bem vindas. Consegui aturar o tom monossilábico do meu pai e a leve discussão que teve com minha mãe por causa disso. Ouvi, mas não com tanta atenção, os pormenores da aventura da minha mãe no supermercado e com a mudez do meu pai, fui encarregado de produzir algum som que fosse condizente com minha suposta atenção e que prestasse concordância.

Não me demorei. Falei que estava cansado, tive um dia cheio e precisava descansar, ainda tinham coisas a serem feitas no próximo. Indo em direção ao meu quarto, depois de ter escovado os dentes, fui dar com meu pai no escritório, revirando alguns papéis.

— Tudo bem pai? – perguntei pousando a mão sobre seu ombro.

— Claro filhão. São só essas coisas todas do seu avô, quando eu acho que já acabou, vão aparecendo mais e mais papéis.

— Aconteceu alguma coisa? – notei que ele não olhara pra mim desde que eu cheguei. Será que estava chorando? Não conseguia recordar a última vez que vira meu pai chorando, ele não chorou no funeral, não chorou no hospital. Eu mesmo não tinha, fiquei profundamente triste e nostálgico com tudo aquilo, é verdade, mas também não havia lágrimas nos meus olhos. Se tivesse alguma coisa pela qual chorar, não seria por ele, que tinha morrido e sim por nós, que continuaríamos aqui, revirando, guardando e recolocando todas as coisas que ele havia deixado pra trás.


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Notas finais do capítulo

O que cês acharam? Me digam o que vocês acharam do Giovanni e do Lorenzo até agr. Vejo vocês no próximo cap. ;)