Os de azul não dançam bem escrita por Ped5ro


Capítulo 6
A cena do café com leite


Notas iniciais do capítulo

Bom, eu sei que demorei pra postar esse mas é que eu tive alguns probleminhas, de qualquer formar. Esse é pra quem que conhecer melhor o Lorenzo :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/705744/chapter/6

— Então, vai ser isso? – tentei perguntar de um jeito que não parecesse irritado, provavelmente sem sucesso.

— Isso o que? – Lorenzo respondeu tirando os olhos do livro. Uma luminária estava suspensa entre nós dois, jogando sua luz quente naquela mesa de dois lugares, que ficava bem no canto da cafeteria. Era minha mesa preferida, onde eu sempre ficava com Eduarda quando a gente tinha vontade de andar de bicicleta, então fazia essa passeio de uns 20 minutos até lá. Café Romeo.

— Olha, eu preciso mesmo que você colabore, okay? – respirei fundo, não tão fundo, porque não queria que ele soubesse que minha paciência era mais curta do aparentava ser e que, por alguma razão, ele a encurtava mais ainda. — Não foi fácil te chamar pra vir aqui, logo aqui, e como você aceitou, pensei que já estava tudo bem entre a gente. Se você ficar lendo isso, não tem como a gente conversar.

— Desculpa. – ele coçou um dos olhos, acho que tentando disfarçar alguma vergonha. Talvez minha voz parecesse cansada demais. E realmente eu estava cansado, minha vida parecia um para-raios de eventos cada vez mais doentios e angustiantes. E pensar sobre isso me fazia afundar ainda mais e eu queria muito esquecer tudo por alguns minutos que fossem. Já era hora de restabelecer minha mente no seu local original de ordem, ou quem sabe, o mais próximo possível disso.

— Então... Eu pensei, já que a gente não se conhece, um jogo de perguntas ia ser um bom jeito de começar. O que você acha? – ele apoiou o queixo na mão, enquanto a outra passava nervosamente o dedo sobre o relevo da capa do livro.

— Acho bom.

— Que livro você é esse?

— “A Cidade e os Cachorros” do Mario Vargas Llosa. – então ofereceu pra que eu pudesse ver. Tinham várias etiquetas coloridas marcando as páginas e, definitivamente, não era um livro novo, mas a capa era muito bonita. Comecei a folhear de um jeito meio descuidado, até que uma frase me chamou a atenção.

— “Je ne laisserai personne dire que c'est le plus bel âge de la vie”¹, é uma frase muito bonita. – era uma citação de um tal Paul Nizan, antes da abertura da segunda parte do livro, a única marcada com marca-texto azul.

— Você sabe francês? – ele perguntou sorrindo pela primeira vez, surpreso.

— Sim, sim. Aprendi com a minha avó, que aprendeu com o pai. Ela também já morou um tempo na Europa, mas não sei exatamente aonde.

— Uau, eu queria muito aprender francês, não sei muita coisa.

— Não é tão difícil, comecei bem novo, o que já é uma boa vantagem. – olhei a volta por algum tempo, buscando algo que pudesse ser interessante para o trabalho, alguma visão nova. Minha ideia inicial era fazer um vídeo, mas o que filmar? — Como você foi parar no BelleVillage? Veio de outra cidade ou já morava aqui?

— Longa história. – ele deve ter achado que eu não iria querer saber ou sei lá, pois parou aí, então cruzei os braços e esperei que continuasse. Foi então que ele tomou fôlego e começou a falar da antiga escola, na cidade vizinha, que não era exatamente ruim, mas pouco satisfatória para os níveis do pai, depois a mãe ficou grávida e como ela já não era tão jovem, era uma gravidez de risco, com 3 meses ela teve que fazer uma operação de risco pra retirar o feto, várias complicações, um breve período de depressão…

— Aí veio a super-atenção! – ele falou, suspirando fundo, um pouco triste.

— Super-atenção?

— É, ela focou toda atenção possível em mim, mas não do jeito que era antes, normal, virou uma coisa… Não sei explicar isso sem fazer minha mãe parecer lunática. No início pensei que era normal, por causa do aborto e tudo o mais, mas aquilo continuou e comecei a me sentir sufocado de verdade.

— E quando vocês resolveram sair de lá?

— Antes… – ele se acomodou melhor na cadeira. — Antes, o meu professor de música conversou com os meus pais, disse que tinha um ótimo conservatório de música aqui e que eu poderia fazer o teste pra entrar. Ele não podia continuar me ensinando, falou que era perda de tempo. Eu sabia que não podia recusar, afinal… A super-atenção!

— Nossa, que instrumento você toca?

— Piano.

— Piano? Caramba, minha mãe queria que eu aprendesse a tocar, pra impressionar os amigos acho, mas eu não tenho cabeça, não mesmo. – falei. Levantei e fui no balcão pedir alguma coisa pra beber, perguntei se ele queria alguma coisa.

— Um café com leite médio e cookies com gotas de chocolate. – achei graça do café com leite, parei de tomar isso quando tinha 8 anos. Pedi o mesmo cappuccino de sempre. Quando eu voltei, coloquei o prato na mesa e liguei a filmadora que estava no bolso da calça. Era grande demais pra que ele não reparasse, mas eu queria essa cena. A cena do café com leite. No início ele não reparou mesmo, pegou 5 saquinhos de açúcar mascavo e despejou todos de uma vez dentro do copo, só no primeiro gole, de tão concentrado na tarefa, ele percebeu que eu continuava de pé com a filmadora na mão. Ele quis tirar da minha mão no mesmo segundo, mas eu me joguei pra trás, quase esbarrando numa garçonete, ficando fora do seu alcance.

— Ninguém toca na câmera, okay? – falei rindo da reação dele.

— O que você tá fazendo? – ele exaltado e corando absurdamente, voltou a se sentar, sob os olhares curiosos com a nossa discussão.

— O meu trabalho.

— Seu trabalho?

— É, meu trabalho, da aula de Filosofia Moderna. A primeira ideia que eu tive foi fazer um vídeo, ainda tô tentando ver se a ideia vai dar certo.

— Não gosto quando me filmam. – ele falou resignado. Acho até que ele aceitou a ideia muito bem, a princípio pensei que por fraqueza, por não ter força pra recusar, como tinha acontecido com o conservatório. — O que é isso? Não são cookies com gotas de chocolate.

Ele encarou o prato que eu havia posto na mesa.

— Os cookies acabaram. – eu deixei a câmera ligada em cima da mesa, devia ter feito isso desde o início, o que talvez não tivesse tanta graça. Me sentei e comecei a bebericar o cappuccino. — Mas essas são as rosquinhas mais gostosas que você vai comer na vida, pode deixar que é por minha conta.

— Não gosto de rosquinha. – ele falou empurrando o prato pra mim. Empurrei o prato de volta.

— Não são “rosquinhas”, são As Rosquinhas. - dei bastante enfase no “as”, mas ele não fez sinal de pegar uma. — Okay, se você der uma mordida e não gostar, te dou direito a uma pergunta constrangedora.

— Como assim? – ele perguntou.

— Uma pergunta sem restrições e com obrigação de resposta. – ele pegou a rosquinha e deu uma mordida bem pequena. Eu insisti que a mordida tinha que ser maior. — Desse jeito você nem chegou no recheio, a melhor parte.

Lorenzo olhou pra minha cara com a boca meio aberta, de propósito, só pra mostrar a massa gosmenta que tinha ficado, revirando os olhos. Eu queria muito rir dele naquela hora; as sobrancelhas arqueadas lá no alto, as rugas que se formavam na testa e as orelhas levemente pontudas, me pareceu, naquela hora, um gesto completamente natural. Mas permaneci sério, agitei os braços, incentivando que ele desse uma outra mordida maior.

— Não vejo nenhuma cara de nojo, então deduzo que ganhei. – falei enquanto ele engolia, satisfeito, a primeira mordida e já se preparava para a segunda.

— Caramba, isso é mesmo gostoso! De que é feito esse recheio? – ele começou a falar de boca cheia, feito uma criança, tentava descrever os ingredientes e eu só tentava rir baixo para não estragar o áudio do vídeo com minha risada de hiena esquizofrênica. Porque essa cena não é estranha nem nojenta, mas agradável? Acho que ele falou por uns 5 minutos sem parar, até que fui obrigado a explicar que o nome era “Rosquinha surpresa”, logo, ninguém sabia do que era feito o recheio.

— Mas que pilantragem.

— Não é pilantragem, é genial. Alguém coloca a palavra “surpresa” no nome de uma comida, então quando virem vão ter de perguntar o que vem ali, mas o balconista diz: “Terá que provar se quiser saber”. De novo, genial! – expliquei. Na verdade eu só repeti o que a Eduarda tinha dito pra mim numa das vezes que viemos ao Café Romeo, e, daquela vez, eu tinha sido o desafiado. Parecia que uma espécie de micro-roteiro secreto vinha se desenrolando por trás do que fazíamos e tudo tão cronometrado; falando ao Lorenzo sobre a razão do “surpresa” me vinham duas sensações tão malucas, de que: a primeira, passando essa informação pra ele era como se estivesse levando adiante um tipo de tradição (bem esquisita? Sim, contudo, importante pra mim) e a segunda era, um fiapo, involuntário por sinal, de intimidade. Agora, vendo ele fazer parte dessa recordação, mesmo que não suspeitasse nenhum pouco disso, produzia em mim um pouco mais de conforto.

— Não, não isso! A aposta, foi pilantragem sua, era óbvio que eu ia gostar. Essa coisa é ridiculamente gostosa. – pensei mesmo que ele fosse lamber os dedos, essa cena até passou pela minha cabeça, mas ele não fez. Eu ri disso mesmo assim.

— Okay! Você pode fazer sua pergunta, mas só se eu tiver direito a fazer uma também. – Lorenzo encolheu os ombros, pegou o copo de café com leite e tomou um grande gole. — Então eu vou levar isso como um sim, mas você pode perguntar primeiro.

Ele excitou, bastante. Na verdade meio que já sabia o que ele ia perguntar, por isso esperei pacientemente, com a melhor cara de “já sei o que você vai dizer, mas não vou aliviar” que eu pude.

— Vamos, pergunta logo! - eu incentivei.

— Tá… O que você e… Ahn… O que você e aquela garota são? – claramente morrendo de vergonha daquilo, eu estava bem com a pergunta, mas não sabia o que responder. Resolvi protelar a pequena tortura por um tempo.

— Que garota? – falei como quem não sabe do assunto, ele encostou as costas na cadeira, os dedos rolando sobre o copo.

— Você sabe, a que estava com você naquele dia no intervalo.

— Aah sim, Eduarda. – esperei. Queria formular bem as palavras na minha cabeça antes, pra que tudo ficasse claro, de um jeito que eu não seria necessário repetir; é numa dessas que eu tropeço nos meus próprios argumentos e me embaraço. — Eu e ela nos conhecemos faz tempo, éramos amigos… quero dizer, somos amigos, ela conhece meus pais e eu os dela…

— Vocês namoram? – ele me interrompeu. Nós namoramos? Acho que nem Eduarda saberia responder. Olhando de um certo ponto de vista, parecia que sim: nós ficávamos, íamos sempre na casa um do outro, nossos pais achavam que namorávamos, pelo amor de deus! Mas pelo outro lado: ocasionalmente ficávamos algum tempo sem nos falar, nunca por muito tempo, claro, mas não sei explicar como isso era importante pra nós, além disso, mesmo que raramente, ficávamos com outras pessoas, e isso nunca pareceu ser um problema. Ela sempre reclamava que todos os garotos perdem a graça, não há nenhum teste, nenhuma força maior que impeça nada, é tudo muito fácil e rápido, quase que dado de graça. “É assim que o amor deve parecer?”, ela me perguntava, e eu nunca respondia porque achava que o amor era só uma desculpa esfarrapada pra alguém gastar $100 num urso de pelúcia gigante (que provavelmente vai virar cinzas numa fogueira ou morar fundo de um armário) no dia do namorados. “Você devia ter nascido no meio do enredo de uma novela mexicana, lá você ia encontrar dificuldades, principalmente com a dublagem”, eu brincava e depois tentava mudar de assunto, aquele papo era chato e piegas, mas eu sempre me questionava se ela não tinha um pouco de razão. As coisas que nos são oferecidas, que valor damos à elas?

— Não, não, não! – repeti várias vezes, tentando convencer a mim mesmo de que era aquilo. Eu sabia que estava errado, mas não sabia por que e nem onde. Talvez aquela não fosse a pergunta certa. E poderia existir uma? Um bom bocado de coisas na minha vida poderiam respondidas com perguntas diretas assim, mas não sem o uso abusivo e intencional de metáforas, citações, fotos, filmes, recordações. Uma resposta complexa ainda é uma resposta? Vale a pena tentar? — Você gostou dela, não?

Ele olhou para os lados. Uma campainha tocava toda vez que alguém entrava, o dia parecia mesmo ficar mais agradável a cada hora, ventava um pouco e um cheiro de terra adubada, chuva da noite anterior e café ia se espalhando.

— Essa é a sua pergunta sem restrição? – ele perguntou. Me pegou. Não, não era essa a minha pergunta.

— Sim. – respondi, terminei meu cappuccino e fiquei olhando o visor da câmera. O rosto dele enquadrado, a luz quente caindo sobre os cabelos, a mão de unhas curtas. Que tipos de segredo um corpo esconde? Eu sempre quis ter esse poder: tocar algo e saber tudo sobre aquela coisa; que tipo de terra as mãos cavaram, dos micro-seres que as pestanas afastaram, que galhos os braços se esticaram para alcançar.

— Sim… ela parece... ser bem legal.

— Ela é.

***

Mais tarde, saímos do Cafe Romeo e eu o levei até o mirante Malle. Contei a história do lugar e disse que era um dos meus lugares favoritos. Sentamos no banco feito de madeira de demolição, era quase um parque. Não tinham nada além dos bancos, grama e um caminho de pedras bem estreito, que dava voltas no meio das árvores. O terreno era inclinado e o mirante ficava na descida, lá no alto a estrada continuava, caminhões e motos passavam devagar por causa da subida.

— Caramba, é mesmo muito alto aqui. Acho que consigo até ver o prédio da escola. - Lorenzo falou admirado, usando um binóculo que eu lhe emprestei.

— Meu tio que me trouxe aqui pela primeira vez... ele que me deu esse binóculo inclusive. – Lorenzo virou o binóculo ao contrário e mirou no meu rosto e soltou uma gargalhada. Quando ele viu a câmera na minha mão ficou sério de novo. — Porque você faz isso?

— Isso o que? - perguntou se virando e deixando o binóculo de lado no banco.

— Algumas vezes você age tão naturalmente, espontâneo, mas de repente você muda.

— Eu já disse que não gosto quando me filmam…

— Não, não é isso… É só… Deixa pra lá!

Vimos a tarde atravessar o céu e o tempo limpo fez o pôr do sol mais agradável da estação. Tudo tinha um certo tom afável e sonolento, que eu acabei por esquecer no que deixei em casa, pesando no travesseiro, como um tipo de surdez ou paz temporária. Livre dos meus próprios pensamentos.

Contei a história da cena filmada naquele mirante, de um filme do Malles. No que ele perguntou do que se tratava a cena ou se o filme chegou em algum lugar.

— O filme sim, “Adeus, meninos!”, mas a cena ninguém sabe. Malles esteve aqui, é o que diz no jornal da cidade na época, isso não tem como negar, mas o que ele filmou se perdeu, aliás, como muitas coisas na fase das revoltas, guerras civis e exílios. – embora não tenhamos conversado muito mais que isso, ainda lembro de falar uma última coisa a ele, antes de nos separar onde nossos caminhos se bifurcavam.

— Preciso assistir uma das suas aulas de piano. – falei, parado na bicicleta de frente para ele. — Você sabe, filmar e tudo mais.

— Ooh sim! Eu tenho que perguntar ao meu instrutor. – ele respondeu girando o guidão e se virando na direção contrária. — A audição-teste para entrar na escola de música vai ser daqui a pouco tempo e preciso muito me concentrar.

— Entendo. – acenei com a mão e pisquei um olho. — A gente se vê na segunda-feira então?

— Sim, a gente vê segunda. – ele levantou o corpo e deu um impulso bem forte na bicicleta e foi sumindo aos poucos até virar numa próxima curva. Eu fiquei ali olhando, filmando e pensando. No fundo eu sabia que tinha sido um dia relativamente bom, mas tudo que eu precisava era chegar em casa, descarregar o material no computador, tomar um banho e digerir com mais calma certas coisas que vinham me arranhando os cantos da cabeça.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹ “Não vou deixar ninguém dizer que este é o melhor momento da vida”, em tradução livre.

Confesso que estou muito receoso com a continuação da história, não tenho recebido muitos comentários, mas se possível quero levar isso até o final.