Os de azul não dançam bem escrita por Ped5ro


Capítulo 4
Por que você não tem escolha


Notas iniciais do capítulo

Não vou fazer vocês perderem muito tempo aqui, mas talvez esse capítulo tenho ficado muito morninho, antes ele era junto com o cap. seguinte, mas precisei dividir, tanto pela falta de sentido que ficou, quanto para o acontece depois. Por isso, estou postando os dois juntos.



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Era de novo aula de Filosofia Moderna e eu não tinha dormido exatamente bem. Acordei no meio da madrugada com a voz da minha mãe no meu ouvido, estava falando devagar e a respiração, consegui perceber, vinha com dificuldade.

— É seu avô meu amor, ele acabou de falecer. – ela chorou mais um pouco, olhei pra ela, completamente acordado e me sentei. – Desculpa te acordar é que... Seu pai está lá e... Seu tio estava dormindo, não tive coragem de acordar ele, não depois de tanto tempo sozinho no hospital.

Meu tio Theo veio dormir na nossa casa depois do meu pai ter insistido muito, uma hora ele disse “você tem que descansar, você já fez muito, não fique nervoso, nessas horas a gente preciso ter calma”, o que era algo típico do papai dizer. E aquela coincidência de no mesmo dia que meu tio sai do hospital e o vovô Guido morrer logo em seguida, era até meio maluquice, como se meu tio fosse uma espécie de âncora do vovô.

Minha mãe até tinha dito que eu não precisava ir à escola, mas eu queria. Queria mostrar que eu estava bem, claro, não totalmente, mas o bastante pra que ela tivesse a confiança de não precisava se preocupar comigo. De certa forma eu também queria me distrair, mesmo que fosse difícil e que essa fosse a pior maneira possível, mas eu preferia um monte de “blá blá blá” do que os pensamentos da minha cabeça.

***

— Bom, vou passar uma lista, quero que preencham com seu nome e o nome da sua dupla. E não demorem, presumo que a essa altura já tenham se organizado. – a professora falou escrevendo a data e o tema da discussão na lousa branca. Esqueci completamente daquilo, com tudo que vinha acontecendo. Eu nunca anoto nada dessas coisas porquê sempre acho que vou lembrar, mas nunca lembro. Olhei para as únicas duas pessoas que eu poderia formar dupla no projeto, mas, por outra coincidência, estavam sentadas conversando exatamente sobre fazerem juntas. Não queria fazer dupla com a Morgana, nem com mais ninguém. Desanimei. Até que olhei para o lado, no típico círculo de cadeiras, Lorenzo estava observando a agitação e o vai-vem dos outros, quieto. Levantei e fui até ele.

— Oi. – eu não queria parecer simpático demais, era apelação, mas boa educação podia me redimir um pouco. Eu só parei pra falar com ele umas 4 vezes e em 3 delas a gente discutiu. Ele não fazia o tipo de pessoa fácil de se lidar. Então olhou pra mim, com aquela expressão que me deixava levemente irritado, era uma cara de aborrecimento com ironia.

— Oi. – ele respondeu sem nenhum entusiasmo, quase suspirou.

— Eu queria saber se você quer fazer dupla comigo no trabalho? – quase travei, odiava ter que “pedir”. Nesse caso, nessa situação específica, pra mim era quase como implorar.

— Comigo? Você quer fazer dupla comigo? – ele parecia verdadeiramente surpreso, acho que nenhum de nós dois esperávamos por isso.

— Olha, sei que eu talvez tenha sido meio arrogante...

— Talvez meio arrogante? – me interrompeu. – Se implicar com alguém por nada é ser “talvez meio arrogante”, nem quero saber sobre o resto de você.

— Eu não sou assim. Eu só... não sei. Foi um mal-entendido, interpretei você mal. Foi isso, começamos com o pé errado. – ele desviou o olhar. Respirei devagar e apoiei as mãos na mesa dele, cheguei bem perto do ouvido. – Olha bem pra sua frente, tá vendo aquela garota de cabelo emaranhado e muito lápis de olho? Aquela é a Morgana. Vou confessar que você não foi a primeira pessoa que imaginei pra fazer esse trabalho, mas nós dois sabemos que não temos escolha. Ou sou eu ou é provável que você faça com ela. Qual vai ser?

Deu pra ver que a visão intimidadora de Morgana deu um efeito a mais no discurso. Quem já conhecia ela há muito tempo, tipo eu, já estava acostumado com as roupas estranhas e os cortes de cabelo. E ele parecia ser do tipo que se deixava impressionar fácil. Ficou olhando pra ela, calculando o que pretendia fazer.

— Okay. Mas eu só vou fazer isso por que...

— Por que você não tem escolha. É eu sei. – completei. Ele pareceu aborrecido com isso, mas eu sabia, e ele também, que era a mais pura verdade. Caímos numa cilada da vida. Uma delas. Voltei para o meu lugar. Durante todo o tempo de aula eu não abri minha boca, não tinha nada de interessante a falar sobre “o que Kafka quis dizer com...”, Lorenzo também não quis falar sobre, e pude perceber que de vez em quando ele me olhava, quase compenetrado, e eu fazia o mesmo, sem medo ou vergonha. Nos encarávamos.... nos olhávamos como se aqueles tantos segundos pudessem finalmente revelar, pela primeira vez, alguma coisa um do outro. Porém a realidade era bem outra, porque não é nada fácil conhecer alguém de verdade, conhecer todos os detalhes de uma vida que não é sua, saber o que se sonha de madrugada e aceitar isso com todos os defeitos que vierem. E ainda tem  muitas outras coisas que não se podem dizer, são momentos e coisas impossíveis de sintetizar numa frase ou palavra que seja. Conhecer, estar com alguém é, sobretudo, ir até o âmago de si mesmo.

Mas para um simples trabalho de escola eu não precisava saber tudo, o essencial bastaria. Contudo, a gente nunca sabe realmente do que acha que sabe, são nossas limitações gritantes, nossa simples capacidade de estar aqui e somente aqui, no presente.

No fim da última aula, fui para o cinema com Eduarda. Era legal sair da escola e ir direto para o cinema ao invés de ir pra casa, às vezes ela chamava alguns amigos, a gente rodava um pouco pelas lojas do shopping, comia besteira, ria. Mas esse era o tipo de coisa que não se podia fazer o tempo todo, tinha que ser especial, o dia tinha que pedir isso, e esse foi um deles. Eduarda sabia que eu precisava me distrair um pouco, e também que não precisava de ninguém além dela ali comigo.

Assistimos um filme qualquer, mas fiquei sem entender do que se tratava, em parte porque ficávamos zoando os personagens asiáticos no decorrer das cenas e noutra porque, uma cena em particular, o amanhecer no alto de uma montanha, me fez ter uma súbita vontade de viajar e então fiquei pensando aonde eu poderia ir. Já viajei algumas vezes com meus pais nas férias e tive a chance de visitar algumas poucas cidades, mas eu tinha mesmo era vontade de ir pro meio do nada, pra uma cidade escondida no mapa, com poucos habitantes, sem trânsito.

— Você tem alguma coisa? O que foi? – Ela me perguntou no caminho pra casa. Paramos na minha loja de chocolates preferida, compramos algumas coisas e vínhamos comendo.

— É que meu avô morreu. – falei alheio, como se fosse só mais uma coisa comum. Mas morrer todo mundo morre, então não sei se existe outro jeito de dizer isso.

— Como assim? Quando? Por que você não me falou antes? – ela me empurrou e parou no meio da calçada, parei também. A rua estava relativamente vazia, já era o meio da tarde e o tempo era um pouco quente.

— Foi hoje de madrugada. É que… não sei… ainda estou tô tentando entender. Me sinto um pouco culpado, sabe? Fazia tempo que eu não via o velho.

Ela me abraçou em seguida. Na hora eu só pensei o quanto é bom quando alguém que você admira ou gosta muito, te abraça num momento feito esse. É bom sentir algum conforto vindo de alguém você gosta porque é sincero, isso pra mim é uma das poucas coisas que não tem preço.

— E como está lá na sua casa? Seus pais estão bem? - ela foi me perguntado, depois que voltamos a caminhar, um pouco mais devagar dessa vez. Naquela hora, eu não tinha me dado conta do quanto aquilo tudo me afetava, o quanto modificaria - mesmo que uma pequena parte - a minha vida. Porque os natais e as festas nunca seriam as mesmas, já não eram desde a morte da vovó, o propósito da reunião pareceu perder o sentido. Sem meus avós, agora, tudo parecia fragmentado, dividido. Sentir isso se superpor as lembranças que eu tinha era triste.

— Eles estão encarando bem, quer dizer, minha mãe parece sofrer mais do que o meu pai, mas acho que é só porque ela é mais sensível. Meu avó gostava muito dela, os pais dela moram tão longe, foi meio que uma “família substituta” pra ela. - Não que não fossemos uma família de verdade, mas ela entendeu o que eu quis dizer.

Ela ficou em silêncio depois disso e eu também não vi mais nada que pudesse dizer. Deixei ela em casa e então peguei um ônibus pra minha, não que ficasse longe, mas eu queria chegar mais rápido, queria descansar, poder me isolar um pouco pra pensar, talvez não fosse a melhor ideia, mas eu queria mesmo ficar sozinho.

O funeral do vô ia ser no dia seguinte, achei muito rápido, mas meu pai disse que era assim mesmo. E a leitura do testamento do que ele tinha deixado ia ser no dia após esse, isso sim era uma surpresa, mas tinha que ser feito. Os irmão do meu pai vinham de muito longe, viriam com família, então não podia ser adiado pra depois. A melhor parte disso é que íamos nos reunir no sítio do vovô, talvez pela última vez, não poderia dizer com certeza, mas seria possivelmente minha última oportunidade de ver todos juntos.

Assim que cheguei em casa, tirei minha roupa, fechei as cortinas do meu quarto e me joguei na cama. Eu não tinha reparado antes, mas estava mesmo muito cansado. Dormi pensando nas luzes pisca-pisca que pendurávamos na árvore mais antiga daquele antigo sítio.


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Notas finais do capítulo

Agora só corre pra ler o próximo!



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