Os de azul não dançam bem escrita por Ped5ro


Capítulo 3
Da última vez era tão diferente


Notas iniciais do capítulo

Aqui vai mais um! Vou postar regularmente durante a semana, já que parte da história já foi adiantada, depois vai ser só na fé em Goku. Espero que gostem!



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Com certa relutância levantei no sábado bem cedo para acompanhar meus pais até o hospital. Não era muito longe, ficava na cidade vizinha. Ficaram com medo do vovô não resistir se o levassem para muito longe, já que tinham que transportá-lo sedado e isso poderia cansa-lo mais ainda.

Acabamos chegando lá bem rápido, o hospital era muito claro e limpo, tinha um jardim nos fundos bem grande e bonito pelo qual vários pacientes tomavam sol em cadeiras de rodas ou sentados nos bancos conversando com parentes e amigos. Eu odiava hospitais, mas esse, particularmente, não parecia tão mal, digo, se você está prestes a morrer e tem todas essas coisas tão bonitas pra se olhar. A maioria dos hospitais são frios e deprimentes, de dar pena. Foram raras as vezes que fui ao hospital, só me lembro especificamente de duas: a primeira eu era bem guri e tinha cortado muito fundo um dos dedos e tive que levar pontos, foram as piores 3 horas da minha vida, meu pai segurava minha mão o tempo todo e me apertava contra seu corpo enquanto a enfermeira costurava meu dedo anelar. A segunda foi menos traumática, porém estressante, eu estava muito magro e vinha tendo umas tonturas estranhas, fiz vários exames naquele dia, só pra descobrir que estava com deficiência de vitaminas. O que era muito bizarro porque eu fazia questão de comer muito bem, mas como a médica havia dito que meu organismo queimava mais energia do que eu podia repor, por isso eu tomo comprimidos de ferro e outros complexos de vitamina desde então. Fiquei por um tempo numa “dieta de engorda”, mas na minha opinião não mudou muita coisa, apenas notei que minhas tonturas foram sessando de ocorrer e meus dedos pareciam um pouco mais gordos (observação essa não feita por mim e sim pela Cecília. Comecei a olhar frequentemente para os meus dedos para ver se eles pareciam magros demais, mas até hoje eu não sei distinguir quando estão magros ou mais gordinhos).

Encontramos tio Theo sentado numa cadeira de frente para a porta do quarto, já nos esperando. Ele parecia cansado, tinha umas marcas muito sutis de olheiras que o deixavam um pouco mais velho do que parecia, os olhos castanhos claros demais pra alguém que parecia tão mais velho naquele momento, um pouco vermelhos, talvez de lágrimas ou de sono, quem sabe os dois. Tio Theo era o caçula dos 6 filhos que o vovô teve com a vó, sendo que os dois mais velhos morreram quando ainda eram jovens num acidente de avião. Pouco se falava deles, e só fiquei sabendo de sua existência quando me peguei olhando com mais atenção as fotos nos porta-retratos.

— Irmão, como você está? Quanto tempo já ficou aqui? – meu pai disse abraçando ele forte e apertado. Quase não vejo meus tios, assim como meu pai também não.

— Alguns dias.

— Você precisa descansar. Ninguém mais veio? – no que ele respondeu negando com a cabeça, depois de também abraçar minha mãe. Então me viu e abriu um sorriso, meio cansado, mas daqueles que faz os olhos virarem duas fendas apenas. Ele tinha esses sorrisos bonitos.

— Já liguei pra Roberto e o Hugo, mas eles ainda não conseguiram arrumar um voou. – ele suspirou, passou o braço por cima dos meus ombros e pude sentir que se apoiava em mim um pouco. – Você cresceu muito, olha só. Da última vez era tão diferente.

Olhei pra ele, rindo, um pouco sem jeito. Quando falavam essas coisas pra mim, geralmente eu ignorava, porque não é como se elas realmente lembrassem de mim como eu era, mas quando é alguém que eu realmente gosto fala isso pra mim, especialmente o Theo, de súbito pego a última lembrança que também tinha dele e faço essa compensação na minha cabeça. Só pra ter certeza de quanto tempo se passou, e se realmente as coisas dentro de mim mudaram. E notei que sim, muita coisa mudara desde nosso último encontro no ano anterior, nas festas de fim de ano. Que é o único momento do ano que toda a família fica reunida sem exceções, todos fazem questão de se reunir na casa de campo que o vovô morava pra festejar. Desde que eu nasci era assim, então sempre achei que essa era a tradição da família, dos antepassados do vovô. Pra mim era inacreditável um único evento ter essa força tão poderosa de reunir tanta gente, numa data que nem ao menos comemorávamos de fato seu significado (minha família por parte de pai é muito pouco religiosa), o que significava que todos só estávamos ali porque sim, pelo simples prazer da companhia. Sempre achei isso estranho de um jeito muito bom.

— Espero que ainda esteja fazendo seus vídeos. O último ficou tão bom. – ele disse pra mim depois que meus pais entraram no quarto (só podiam entrar 2 pessoas por vez). Eu fazia alguns vídeos com uma câmera que ele havia me dado de presente no natal anterior, criava as montagens no meu computador e mandava os dvds para o endereço dele. Em geral eram cenas comuns da minha rotina, caminhadas, pessoas andando, pássaros, árvores, crianças no parque, mas era divertido pra mim, comecei a explorar um lado muito peculiar que eu não sabia que tinha. Tudo por causa dele. Ele sempre me manda cartas (gostávamos muito de papel, selos e a espera do carteiro) e alguns e-mails em resposta, dizendo sempre o que achava e uma frase que constantemente eu via nas nossas correspondências era “sua visão do mundo”. Passei dias com isso na cabeça, “minha visão”.

Tio Theo era tudo que eu nunca seria. Primeiro fora ator, o vovô tinha botado na cabeça que ele tinha jeito de ator, então o matriculou em aulas de teatro e sempre o fazia ler muitos livros, isso desde pequeno. Então ele cresceu diferente de todos, e o vovô contou pra mim que ficou muito feliz quando ele foi escalado pra um filme, mesmo que num papel secundário e aparecendo poucas vezes, quando tinha seus 16 anos. Depois disso ele começou a fazer mais sucesso, porque era muito bonito, recusou vários convites pra ser modelo, porque queria mesmo era ser ator; fez musicais, peças, alguns filmes e duas séries de tv. Ele me falava que preferia o teatro pela forma visceral que o ator era exposto, mas que a tv tinha a vantagem de te deixar mais bonito e “mais bem visualizado”. Fazia uns anos que tinha se afastado pra se tornar artista plástico, sendo antes escritor (publicou dois livros, um de contos não muito conhecido e um romance contemporâneo que foi bem recebido pela crítica), poeta e um breve período como fotógrafo amador. O início da fase “artista plástico” coincidiu com o período que ele foi morar com o vô Guido, que por ser muito velho, já não podia ficar sozinho e ninguém confiava em enfermeiras particulares, então todos queriam colocá-lo num asilo, menos tio Theo. Então ele disse que ficaria com o pai na casa de campo, que o manteria em seus cuidados até que não precisasse mais, e diante dessa alternativa mais atenuante todos assentiram, já que Theo era o único que não tinha esposa e nem filhos. Isso já tinha acontecido há uns 3 anos, algum tempo depois de a vovó ter morrido.

— Você não acha triste o vô morrer? – perguntei, lembrando das coisas antigas, me pareceu até mesmo um pensamento alto demais que havia me escapado, que deu aquele tom quase de afirmativa.

— É, um pouco. Mas seu avô teve uma boa vida. – ele suspirou. – Droga, foram 94 anos, ele teve seis filhos, enterrou dois, casou duas vezes, teve muitas namoradas de certo. Teve vida suficiente, não acha?

Depois que a vó tinha morrido, o vovô foi diagnosticado com Alzhiemer. Mas nas lembranças que eu tinha dele, da minha infância, ele falava bastante e bem alto, pra que todos pudessem ouvi-lo, sempre ria das próprias piadas. Nas fotos que tenho na parede do meu quarto, minha preferida é uma que ele estava cantando em cima de uma mesa na varanda da casa de campo, a mão fechada em microfone perto da boca. Não sei precisar quando, mas seus silêncios começaram a se estender por longos períodos e parecia carregar algum pensamento importante quando andava com a bengala. Depois da doença (ou a pior parte dela), quando falava, quase sempre era em turco, língua que tinha aprendido por causa de um antigo emprego. Ninguém sabia turco, e eu acho que o vô Guido sabia disso, apesar de nunca poder confessar.

— É, verdade. – confesso que não estava tão triste assim com a morte iminente do velho. Eu fiquei sentido mesmo era pelas lembranças que foram jorrando por causa de tudo aquilo. Comecei a me dar conta de coisas que nem sabia que tinha vivido, até as antigas fotos me despertavam mais do que eu conseguia dizer.

Quando entrei ele parecia acordado, mas não completamente. A janela estava meio cerrada, ele coberto na cama, com o rádio ligado. Ele sempre preferia ouvir rádio, “televisão tem botões demais”, ele dizia, “só dois me bastam”.

— Oi vô! – falei tentando sorrir e segurei a sua mão que estava apoiada na barriga. Era morna e difícil de segurar sem sentir todas as coisas que estavam na minha cabeça naquela hora. Ele começou a resmungar baixo e fraco, eu não entendia. E na verdade nem queria entender, não tinha nada pra falar. Então peguei uma das moedas que ele tinha me dado faz tempo e que guardei como recordação, não era das grandes, mas pensei que talvez ele ainda reconhecesse.

Depois que coloquei a moeda em sua mão, ele ficou olhando, bem rente ao rosto, como se quisesse notar todos os vincos que nela houvesse. Então olhou pra mim, sorrindo fraco e foi aí que eu saí do quarto.

***

Assim que eu cheguei em casa, tomei um banho e fui descansar. Lembrei de ligar para Eduarda; no telefone ela disse que se quisesse poderia ir na casa dela. Me arrumei rápido e fui até lá. A mãe dela, como de costume, não estava em casa. Na maior parte das vezes que eu ia lá a gente ficava no quarto dela conversando e depois se pegava, mas sempre tentava fazer com que isso não acontecesse, embora inutilmente. Nos dois éramos muito intensos para que houvesse algum controle depois que se começava. Concordávamos nos beijos, mas transar definitivamente era algo muito mais importante, principalmente, era algo que nos faria mudar pra sempre. Mas era difícil lembrar de todas as consequências quando você tem um corpo grudado no seu, uma boca tão forte na sua boca, as mãos dela passeavam nas minhas costas e agarravam a minha bunda, o que sempre me fazia rir, eu ficava extremamente duro, então quando finalmente tudo saia da linha de segurança (que é especificamente quando a mão dela entra no meu shorts e eu sinto meus dedos sob a calcinha dela), eu levanto correndo e vou pro banheiro.

Dessa vez foi diferente, quando eu cheguei no quarto dela, tudo estava tranquilo. Ela estava sentada na cama com o livro sobre origamis que eu tinha dado à ela e um papel retorcido entre os dedos.

— Oi! – ela disse desviando os olhos por um segundo do papel e olhando pra mim sorrindo. Fui até ela e beijei sua bochecha. Passamos o final da tarde conversando sobre algum filmes que poderíamos assistir numa próxima oportunidade, por que nenhum de nós dois queria sair naquele momento. No fim das contas comemos algumas besteiras da cozinha da mãe dela e dormimos sem querer no sofá assistindo reprise de séries que a gente gostava. Quando deu 21h eu tive que voltar pra casa. Estava com muita preguiça, meu corpo pesava e me sentia aborrecido, não com uma coisa específica, mas dos pequenos problemas imediatos, percebi que Eduarda evitou perguntar do vovô, talvez tenha sido melhor. Mas imediatamente quando deitei na minha cama e encarei o teto por 2 horas seguidas, as únicas coisas que me vieram na cabeça foi o retrato do vovô em cima da mesa e a risada da vovó quando eu ainda era muito pequeno. Tentei não me chatear demais com isso, afinal eu não podia fazer muita coisa, e também não podia perder meu sono. A escuridão do quarto me dragou infinitamente e meu coração, meu estômago e meu cérebro reviravam até eu conseguir dormir, porém, sem saber exatamente em qual momento daquela leve agonia.


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Notas finais do capítulo

E aí, esse foi meio tristinho, né? Pensei até em colocar ele mais pra frente, mas senti que funcionaria melhor nesse momento. Me digam se gostaram, se tive alguma coisa que ficou meio estranha. Até a próxima



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