Masochist Heart escrita por Another Story


Capítulo 1
Venerando




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A parede em tom carmim passava-me um calor aconchegante, os adornos nela desenhados pareciam cravados a mão. O ar estava úmido e com nenhum esforço, o cheiro férreo impregnou-me um enjoo repentino.

Aquele sorriso sem mostrar os dentes, aquele modo de escovar os cabelos. Profundamente irritante, em todos os detalhes, irritante.

Varney lambuzava as mãos com alguma substância pegajosa e escura, enquanto me olhava fixamente.

Lembro-me das várias conversar em silêncio que tivemos. Sua voz possuía tom grave e rouco, e durante esses anos pouco a ouvi.

Sua áurea escura pairava nitidamente em volta do gélido corpo. Alguns pedaços de algodão estavam absorvendo o sangue escuro, nas narinas e ouvidos do cadáver. Mesmo de longe pude notar as veias tão escuras e marcadas sob a pele pálida e rachada.

Levantei-me da poltrona peculiarmente posicionada próxima aos discos, e da vitrola me aproximei. Varney possuía, obviamente, mania detalhista e cuidadosa. Tudo estava colocado e arrumado no devido local, itens simetricamente controlados. Irritante.

Agora via-se um fio de sangue escorrer, como que correndo atrás da lâmina de corte. Varney cortava lentamente o busto da jazida moça. Sangue escuro, com o mesmo tom de sua gravata - e das paredes - manchava o lençol que estava estendido na maca. A sombra que o lustre demarcava, contornava os seios e cintura do corpo. As velas próximas à mesa de instrumentos tornavam o espetáculo do sombreamento ainda mais macabro.

Uma pequena estátua no formato de um anjo estava ao lado da pilha de discos. Passei a ponta dos dedos na textura das asas, acariciei o rosto de porcelana, e corri as unhas nos cachos saltados do menino. Que belo contraste de inocência: o cruel, a apática, a profana e o anjo. Pude visualizar uma cena noir e quase soltei as palavras em voz alta, mas não, guardarei para um momento mais oportuno.  Despertei dos devaneios, com a mão de Varney invadindo-me o pescoço. Ergueu-me a cabeça e ficou com os olhos presos aos meus. Levemente passou os dedos molhados de sangue em meus lábios, e com um sorriso – aquele mesmo de antes, sem mostrar os dentes - soltou-me e foi em direção à poltrona.

— Anna... Deixa-me guiar teus medos e tão facilmente me entrega a mão. Quão grande é seu temor?

— Lhe entrego a mão e a alma. Perigosos são os fantasmas que me assombram, não meus medos.

— Mas se não são perigosos, esses medos... Por que os tem?

— Nem todos os medos são reais. Nem todos os medos são físicos. Como temer algo que não lhe é palpável? Parece-me irracional e nada perigoso.

— De todos meus temores, o maior deles não é palpável, e considero-o perigoso.

— E qual seria? 

— Perder-me de ti.

Acendi um cigarro e apenas inclinei-me para frente. Aquele perfume misturava-se com o cheiro de sangue, deixando meus instintos aguçados.

“Perder-me de ti”. Ele tinha um medo, pois sim. Me perder.

E eu também temia a perda. Essa perda. Tê-lo próximo, e simplesmente tê-lo. Meu, por completo, meu humano favorito. Que tipo de amor era esse? Maníacos pela solidão, masoquistas de coração e sádicos de alma. Como poderíamos amar alguém, se nos odiávamos por dentro?

Ele era lindo, secretamente lindo.

Sentada na poltrona, observei os detalhes de Varney e sua presa.

A cada pequena agulha cravada na pele, a cada pequeno risco deixado pela lâmina, todos esses mínimos detalhes, seus olhos brilhavam e nossas mentes conversavam em silêncio, compartilhando o sabor do momento.

“Perdoe-me por ser fortemente dependente de seu casulo protetor”, pensava eu frequentemente.

Talvez fôssemos completamente iguais e opostos, um luz e o outro trevas. Mas ao mesmo tempo nossa escuridão emaranhava-se em um desespero vulgar. Fomos costurados pelas linhas do pecado, e cá estamos testemunhando um o segredo do outro.

“Tão quieto e confiante. Tão irritante e adorável”.

Há quanto tempo nos pertencemos?

— E os sabores, Anna... Qual provará hoje?

— Algo exótico e forte. Picante, talvez.

— Cravos acompanhando, deixando na boca o amargo provocativo... Sim, sim. Algo forte.

E mais uma vez ali estávamos, de frente para o corpo marcado com hematomas e sutura, chá e vinho á mão, conversando em silêncio.

“Você é o único amigo humano que eu tive”.


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