Ecos da voz do mar escrita por Vaalas


Capítulo 1
Capítulo único ― passei o dia ouvindo o mar


Notas iniciais do capítulo

Aos que resolveram dar uma chance, espero que gostem c:



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/704261/chapter/1

Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
— Ó voz moribunda e doce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...
E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!

                                                                                                                                                           ― António Botto

...

Aquilo não era ele.

Mesmo que você já estivesse chorando ao meu lado, eu sabia disso. Sabia porque aquilo estava morto, com lábios secos de um azul doentio e pele pálida como leite, enquanto ele era vivo, era feito de bronze e sal, com rosa nos lábios e no rosto, bem diferente daquilo, mesmo que se parecessem tanto ― tinha o mesmo sinal sob um dos olhos, a mesma cicatriz de infância no queixo e até mesmo a pequena falha na sobrancelha esquerda.

Parecia uma concha vazia, bem mais do que um corpo.

Você não pareceu notar nada disso, Clarice. Pediu que o funcionário do necrotério cobrisse o corpo mais uma vez, quase implorando, o rosto cansado com marcas profundas de dor e luto. Não havia como eu partilhar daquele sentimento, pois sabia que ele não estava morto, que aquele não era seu corpo.

Você não entendia. Nenhum deles entendia. Não entendiam porque o mar não podia tê-lo levado.

...

Havia algo no mar que lhe chamava, ele dizia, parecia vivo, como uma pessoa, e gostava quando ele mergulhava fundo em suas entranhas, como uma paixão impossível. Eu conseguia compreender, principalmente durante as tardes de sol em que ele se afastava, de costas para mim, e imergia no mar como se não pudesse ser diferente, as ondas o engolindo como um monstro feroz.

Eu não tinha mais medo ― ou preferia tentar me convencer disso ―, mas seria mentira dizer que nunca tive.

No começo, quando o via afundar, sumindo ao longe, aguardava seu retorno. Contava os segundos, encantada com o ponto no horizonte em que o céu e mar se fundiam, e então notava que já haviam se passado minutos e ele continuava submerso. Me desesperava, nadava até lá, mergulhava em sua procura, mas era como se ele nunca houvesse existido de fato.

O mar me perturbava por causa disso. Parecia que poderia esconder as coisas tão bem como se sua existência nunca houvesse sido real ― e a ideia me assustava bem mais do que gostaria, principalmente enquanto os minutos passavam, as ondas me empurrando de volta à praia como se não me quisessem ali, e ele não retornava.

Então em algum momento eu via os cabelos loiro-escuros sendo balançados, ensopados, e ele sorria para mim até nadar em minha direção. Você se parece muito com ele, talvez porque sejam irmãos, mas nunca em toda sua vida conseguiria imitar aquele sorriso de satisfação no rosto dele ao voltar à superfície, as bochechas coradas e a respiração calma, relaxado como em um sono profundo.

Naquela época eu me aborrecia, chorava e batia em seu peito, envolvida em desespero, mas ele parecia apenas se divertir, encantado com a minha preocupação.

― O mar não pode me fazer mal, June. É como se eu respirasse melhor sob a água do que sob o céu.

Eu não acreditava, estremecia de medo sempre que o via sumir mais uma vez.

 Pouco a pouco, no entanto, a magia das ondas, do oceano além, parecia fazer sentido. Parecia real. Eu quase conseguia senti-la também ― apenas um sussurrar fraco, distante, como o som das ondas se quebrando na praia ou o bater da chuva no telhado de casa ―, mas nada como ele. Nunca. Asher parecia fazer parte do mar, como se fossem feitos do mesmo material por completo, mas separados o suficiente para seus corpos não se tornarem um só. Como almas gêmeas perdidas na composição dos átomos. Não havia céu e mar. Havia Asher e mar.

Então com o tempo me acostumei. Sentava-me no chão e deixava os dedos descalços afundarem na areia, observando-o em sua dança ao longe, movido pela paixão e pela saudade. E então ele afundava, os minutos se passavam. Um, dois, três, quatro, cinco. E ele voltava à tona sorridente, com muito fôlego nos pulmões ainda, como se pudesse se manter submerso por horas e horas.

A apreensão nunca ficava menor. Sempre que ele se demorava eu esperava que não retornasse, visualizava seu corpo se perdendo, as ondas o levando para longe, como se o oceano quisesse roubá-lo para si completamente e aquilo me matava um pouco mais toda vez que acontecia.

Mas ele sempre voltava, e eu aceitava que o mar me deixaria ficar com ele pelo resto do tempo. Era como um acordo silencioso, em que teríamos que dividi-lo justamente. Eu aceitei, claro, porque sabia que por mais que ele me amasse também, sempre escolheria o mar, porque o que havia entre ele e o oceano não era amor. Era necessidade, dever. Era respirar, viver, sentir. Era o que o mantinha são, o que o mantinha Asher. Não era uma escolha.

...

O mar nunca o levaria embora porque ele era o mar ― o mar era ele ― e havia sal em suas veias no lugar de sangue.

E durante as noites Asher era meu. Deitávamos em silêncio no sofá da sala e assistíamos a algum programa tolo da tv aberta. Ele se divertia, brincando com meus cabelos e cutucando meu rosto quando achava que já havia assistido tv o suficiente pelo dia. Então me beijava ― e seus lábios tinham gosto de água salgada com frescor de brisa, assim como toda sua pele ― e dormíamos aninhados ali até que ele acordasse no meio da noite, levantasse até a janela e ficasse observando as ondas noturnas por horas, antes de me carregar para o quarto e dormir ao meu lado.

...

Então não, Clarice, aquele não é o seu irmão. Não é, porque ele nunca morreria assim, perdido no mar por três dias. E sim, eu sei que você está desesperada e sei que as coisas estão um caos porque agora você já não tem família alguma, mas você não o conhecia como eu. Vocês se viam nos natais e no dia de ação de graças, mas você não sabia ― não sabe ― de fato quem é ele hoje. Não sabe que ele coleciona conchas de diferentes tamanhos e cores, nem que me deu uma pérola linda e enorme de aniversário. Não sabe que ele se queimou com uma água viva no verão passado, nem que às vezes, no meio da noite, sumia de mansinho para um mergulho noturno. Não sabe quão doente está, que o mar é uma obsessão, nem que ele já tentou suicídio três vezes nos últimos dois anos. Não sabe que ele quer sim, morrer, e não, eu não nego o fato de que ele poderia morrer a qualquer momento por puro egoísmo, mas Asher nunca se afogaria e se perderia no mar. Ele sumiu por três dias e nos desesperamos, mas deveríamos continuar as buscas. Não, Clarice, você não entende. Não entende. Não consegue ver que ele apenas saiu para dar um mergulho? Já vi ele ficar por quase dez minutos submerso e voltar com uma respiração branda e normal. Me escute, por favor, você vai ver. É só olhar para a água ― para aquele ponto no horizonte em que o mar e o céu se fundem em um só plano ― e ele vai emergir novamente e todos entenderão que ele sempre faz isso e que não passa de um mal entendido. Não, eu estou bem, de verdade. Sério. Apenas me deixe em paz. Cala a boca, Clarice, ele não estava louco. Ele não se matou.

...

Acordei certo dia e vi Asher sentado na beira da cama, encarando a janela fechada do quarto com os ombros caídos para frente. O relógio de cabeceira indicava que era quatro e meia da manhã.

― Por que você acordou? ― cocei os olhos, sonolenta ― Ash, volta a dormir.

Ele não olhou para mim quando respondeu.

― Não posso, ele está me chamando. ― respirou fundo, sonoramente ― O mar quer que eu vá até ele, não para de repetir. Está quase gritando.

Sentei-me também, encarando o perfil de seu rosto. Asher tinha os cabelos loiros, quase castanhos, com três marcas de espinhas na bochecha. Os olhos eram da cor de mel, tão doces quanto, mas ali, no escuro do quarto, pareciam tão aflitos e sombrios.

― Você vai lá fora? Se quiser vou com você.

― June ― ele sussurrou, virando-se para mim ― Se eu for lá fora, não sei se irei voltar.

Pisquei, confusa, e franzi o cenho. Asher estava lívido, com as sobrancelhas erguidas em espanto.

― Se eu for lá fora, ele não me deixará voltar.

...

 Havia uma tempestade acontecendo. O céu era cinza chumbo e as ondas se quebravam com fúria contra a praia. Fechei com esforço as janelas da sala, o vento forte atiçando meus cabelos para todos os lados.

Andei até Ash, sentando na cadeira à sua frente. As panquecas estavam intocadas, com o desenho de uma carinha triste feita com chantilly. Ele me encarou, sombrio, e vi a palidez do seu rosto e as olheiras escuras pendendo dos seus olhos como bolsões.

― Ele está furioso, June. ― falou por cima do som da chuva e do vento batendo nas janelas ― Eu amo você, você sabe disso, mas precisa entender...

― Não. Ash, você não pode ir até ele. Não pode sumir. Me prometa que não vai sumir.

― Mas June, eu-

― Por favor ― pedi, numa súplica. ― Prometa.

Ele suspirou, fechando os olhos com força. Parecia tão cansado, destruído, entupindo-se de comprimidos para ajudar naquela luta contra as dores. Não adiantava. O mar gritava. Gritava por ele, chamava-o, mas eu sabia ― ele sabia ― que daquela vez o mar não iria devolvê-lo para mim. Queria-o por inteiro. Para sempre.

E eu não o perderia. Mesmo que Asher olhasse pela janela e desejasse se jogar de cabeça na imensidão azul cheia de segredos. Mesmo que eu precisasse amarrá-lo a uma cadeira para impedi-lo de se machucar. Mesmo que o preço fosse sua sanidade, eu era egoísta o suficiente. O mar não o tomaria para si.

...

Pode parecer loucura, Clarice, eu sei muito bem que sim. Mas entenda que era algo inexplicável como magia, inumano, forte como apenas deuses poderiam ser. Eu mesma cheguei a ouvir certas vezes ― nada de gritos ou vozes, mas sussurros misturando-se à brisa e às ondas. Eu sei o que isso parece, mas a loucura dele não estava me contagiando, era real. Durante as noites em que tentava dormir, as ondas soavam altas como se estivessem bem abaixo da janela, as águas parecendo tentar invadir a casa, tentando puxá-lo com tudo. Asher já não dormia, Clarice. Sentava-se quieto na beira da cama, as unhas roídas até sangrarem, os lábios secos e rachados sobre uma face doente.

Um dia ele me acordou em desespero, sacudindo meus ombros com força.

― Não consigo mais, June, ele está berrando em meus ouvidos! Preciso dele, preciso voltar. Ele não vai se calar, preciso... me desculpe, me desculpe...

A voz diminuía até não ser nada, os braços caídos ao lado do corpo, tremia como uma vareta. Eu já não sabia o que fazer àquele ponto. Deveria levá-lo para longe dali? Fugir até que o cheiro de maresia e brisa salgada se tornasse uma ideia distante? Deixar que se fosse, que mergulhasse no oceano e nunca mais voltasse?

Eu não sabia, então apenas o tomei nos meus braços e o embalei com uma canção doce, o som do mar como plano de fundo.

― Você prometeu, lembra? Prometeu que não o faria.

Ele não respondeu, nem assentiu. Parecia uma boneca de pano sobre meus braços, morta e sem vida. Mas ele não quebraria a promessa. Essa parte você conhece dele, Clarice. Asher nunca quebrava uma promessa.

...

Eu conheci Asher enquanto ele tentava se matar.

Eu sei que a história que contamos para você foi diferente. Envolvia flores, um celular perdido e um bloco de post-its coloridos cheios de frases famosas.  Sinto muito por termos mentido, mas acho que deveria saber agora. Você está bem? Quer sentar? Não, não tem problema. Bem, tudo aconteceu muito antes disso tudo. Antes do mar e da obsessão, da doença, dos gritos e dos machucados, antes do pânico e dos remédios de tarja preta para ajudá-lo com as alucinações. Não acho que queira lhe contar detalhes, mas o encontrei no banheiro do dormitório da universidade com os pulsos cortados. Havia muito sangue pelo chão, pelas roupas e pelo seu rosto, mas ele estava consciente, me encarando sentado ao lado da banheira. “Saia de perto da porta” ele sussurrou “eles podem lhe ouvir”.

Não demorei muito para saber o que ele tinha, sabe. Desde então eu o acompanhava, vigiava-o de perto para impedir que acontecesse o pior. Ele tentou mais duas vezes depois dessa ― uma envolvia remédios em excesso e outra algum material de limpeza forte ―, mas ele havia parado nos últimos tempos, havia mudado, havia prometido ― e Ash nunca quebrava uma promessa, você sabe.

Ele estava feliz, Clarice. O mar lhe fazia feliz. O mar lhe completava, lhe partilhava memórias e sentimentos. Eu estava feliz.

Então não, ele não se matou. Pense o que quiser, enterre aquela coisa com seus caixões caros e espalhe para todos os parentes distantes sobre sua morte. Um dia você vai voltar aqui e ele estará na cozinha fritando ovos mexidos e bebendo uma xícara de chá, e então todos nós iremos rir e chorar juntos, sentados no sofá para ouvir sobre as grandes aventuras que vivenciou nas profundezas do oceano.

Eu esperarei por isso, Clarice. Esperarei a volta dele.

...

No outono eu ouvi a voz dele. Era clara, bonita e doce como um sonho ― e quem sabe talvez fosse. Eu sequer conseguia lembrar dela com tanta clareza, depois de tanto tempo desde sua partida ― as coisas se apagavam aos poucos. Já não conseguia lembrar se a cor dos seus olhos era de um castanho mel ou de um tom de bronze, nem se seus cabelos eram mais voltados para o claro ou para o escuro.  Não sabia dizer se havia algum cheiro além da maré no seu corpo, nem conseguia lembrar de como era o desenho das suas unhas.

E então ele me chamou e me lembrei de sua voz. Saí de casa e caminhei para a praia, olhando para a areia e para o além-mar em busca dele. Não havia nada, no entanto, mas o eco de sua voz vinha do mar, me chamava para o mar. E ainda que fosse fim de outono e as águas estivessem frias como gelo, cruzei o limite de areia seca e segui em frente, as ondas batendo contra meus joelhos.

Continuei em frente, sempre em frente, até chegar mais longe do que jamais fui. A praia estava distante como uma linha branca em um quadro azul escuro e a lua não estava cheia para iluminar meu caminho. Abaixo de mim, água, sal e segredos. Um espaço interminável e escuro, profundezas desconhecidas. E a voz dele, chamando-me.

Então mergulhei. Nadei para baixo e mais abaixo ainda. Ali era tudo silêncio, tingindo de azul escuro, o único som vindo das batidas do meu coração e das bolhas que escapavam do meu nariz e boca. Asher estava ali, sabia que sim, sentia-o. Sua voz soou mais uma vez, pedindo para que eu continuasse, que fosse até ele, mergulhando mais fundo e mais fundo e mais fundo.

Então meu pulmão começou a queimar como fogo e meus braços e pernas travaram, simplesmente pararam de funcionar. Olhei para cima, em desespero, e tomei impulso para voltar à superfície, pois meus pulmões se apertaram e havia pânico dentro de mim, as bolhas escapando sem controle. E então eu já não sabia onde estava a superfície, nem onde era o fundo: os dois eram do mesmo tom abissal de azul e lá fora era uma noite sem luar. Continuei me impulsionando, tentando com todas as minhas forças, mesmo que talvez estivesse indo para o lado errado.

E a voz de Asher soou mais uma vez. Dizia meu nome. Parei de me mover e me deixei flutuar, a água me bailando em seus braços. Em breve estaríamos juntos, ele disse. Estava tudo bem, eu só precisava dormir.

Eu acreditei nele, sempre acreditaria. Então afundei, fechei os olhos e tentei esquecer a dor nos pulmões.

Tudo ficou preto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Para quem não captou, Asher era esquizofrênico, e sim, ele morreu (ela também). A esquizofrenia é uma doença terrível e realmente consome até mesmo quem convive perto da pessoa. Não a deixa louca, mas transmite uma certa angustia e desconforto quando a pessoa entra em crise.
Espero que tenham gostado desse curto conto.
Até mais