E.S.B. em contos escrita por Lize Parili


Capítulo 1
O sabor de um bolo


Notas iniciais do capítulo

Às vezes os filhos passam tanto tempo aguardando o retorno de alguém que não irá retornar que se esquecem de prestar atenção naquele que nunca foi embora e nem tem a intenção de ir. Passam tanto tempo sonhando com os momentos que irão viver ao lado daquele que esta longe que se esquecem de aproveitar os momentos com aquele que esta perto. Passam tanto tempo buscando o abraço daquele que há muito tempo fechou os braços, que nem percebem os braços abertos atrás deles.
Um sêmen não faz um pai. Este se faz no amor, no cuidado, na proteção.
Às vezes é preciso não ter mais aquilo que nunca se deu conta que tinha para perceber o quanto quer ter.

OBS. Dia dos Pais na França é comemorado no 3º domingo de junho.

AVISO: contém SPOILER.



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— Que cara de enterro é essa, Emília? — perguntou Maitê a sobrinha, após terem experimentado as amostras do bolo para a festa de debutante da garota.

— Nada, tia. — respondeu, nada convincente, com carinha de cachorrinha abandonada. — É que... — acabando por contar o que a incomodava. — Eu não gostei dos bolos.

— Meu Deus, Emília. Já é a 3ª confeitaria que nos envia amostras. Desse jeito o dinheiro do seu bolo vai ser gasto só com isso. — comentou, sentando no sofá, ao lado dela. — Nós não podemos enrolar com isso querida. Seu aniversário é daqui duas semanas.

— Eu sei, tia. Mas é que todos parecem iguais pra mim. Acho que comi bolos demais e meu paladar já esta confuso.  Depois eu resolvo qual encomendar, prometo. — disse, sem nenhum entusiasmo, levantando-se. Ela queria deitar na sua cama e pensar um pouco. Seu coração estava sentindo um estranho vazio e que ela não conseguia entender o porquê. Talvez fosse apenas ansiedade pela festa.

Maitê apenas sorriu. Ela sabia bem o que a garota queria, mas não ia dizer aquilo por ela.

* * * * * 

5 anos antes:

Era domingo, 21 de junho. O dia já havia amanhecido, mas Emília, apesar de ter madrugado pela ansiedade de ser seu aniversário, ainda estava em seu quarto, entretida com seus papéis, adesivos, brilhos e canetas coloridas, pois além de seu aniversário, era também Dia dos Pais. 6 anos haviam se passado desde que o dela havia partido, mas seu coração de filha devotada não a deixava esquecer de nenhuma data especial.

Assim que seu pequeno e criativo cartão ficou pronto ela pegou a tesoura, sentou no centro da cama em posição de lótus, colocou seu porta clipes entre as pernas, e o picotou em pedacinhos tão miudinhos que mais pareciam mini confetes. “Assim eles flutuavam mais tempo no ar” dizia ela, na sua inocência infantil. Feito isso ela foi até a janela do quarto, abriu a cortina, dando passagem à luz do sol e também a brisa daquela manhã não tão quente. Com cuidado ela apoiou o ventilador na janela, despejou os picotinhos na mão e “assoprou” para longe com o auxílio do vento que aquelas hélices brancas e um pouco empoeiradas fizeram, desejando a seu pai biológico um Feliz Dia dos Pais.

Embaixo daquela janela seu padrasto, Pablo, afastava-se daquela pequena chuva de micro confetes regada a amor e saudade. Ele devia parar de observar aquela que carregava seu sobrenome a fazer aquilo, todas às vezes, ano pós-ano, data pós-data.

— Pablo? Você encontrou a Tinker? — perguntou sua cunhada, que estava ali para comemorar o 9º aniversário da sobrinha, filha de sua irmã caçula.

— Hã... Sim. Esta aqui. — respondeu, voltando-se para ela.

— Então o que foi? Parecia distraído.

— Nada, Maitê. Distrai-me pensando na decoração do bolo. — mentiu, evitando assim dizer que enquanto via aqueles picotinhos sujarem a frente da garagem se perguntava se naquele ano a pequena Emília teria feito para ele um cartão diferenciado, como ela sempre fazia para o pai. — Como todo ano ela quer a Tinker Bell fica cada vez mais difícil surpreende-la.

— Imagino. — comentou enquanto o via entrar na cozinha. — Se precisar de ajuda é só dizer. Vou ajudar a Sara com a decoração. — deixando-o trabalhar tranquilo, até porque, naquele dia a cozinha era proibida para qualquer um.

Emília desceu para o piso térreo da casa e deu de cara com seu café arrumadinho na copa. Ela, mais que a mãe e a tia, estava proibida de pisar na cozinha por qualquer motivo.

Ela sabia que ia ter uma festinha, com a presença de seus familiares próximos e seus melhores amigos. Assim era todo ano. Sara não gostava muito de bagunça na sua casa, mas não fazia oposição. Ela podia até reclamar quando a irmã ligava avisando que tal dia estaria na casa deles para comemorar o aniversário da sobrinha, mas no fundo gostava.

Enquanto isso Pablo fitava seu bolo de chocolate, pronto e montado, aguardando apenas a decoração. Ele havia passado a noite anterior preparando-o, do gosto da enteada. Naquele momento bastava-lhe apenas decorar.

Depois de colocar o bolo na base giratória, foi ao banheiro.

Como era de se esperar, Emília não ia passar aquela manhã sem dar um jeitinho de ver seu bolo antes de ficar pronto. Assim que Pablo saiu da cozinha ela correu e entrou. Ah, ela adorava os bolos do seu padrasto. A boca dela salivou quando viu o pote com um restinho de recheio ao lado da base giratória. Rapidamente ela se aproximou da mesa para pegar um pouco, pois se Pablo chegasse e a visse ia lhe dar uma bronca, pois ele fazia questão de surpreender quando preparava algum prato, fosse uma salada ou mesmo um bolo de festa.

Se ela enchesse mais a colher de recheio não caberia em sua boca.

— Emília! — surpreendeu-a. — O que esta fazendo?

Antes Maitê tivesse ficado quieta e a deixado enfiar aquela 2ª colherada na boca. No susto a garota esbarrou na base giratória e seu bolo foi ao chão.

Os olhos dela, ao mesmo tempo em que arregalaram pelo estrago, lagrimejaram, pois aquele não era um bolo qualquer, era o bolo do seu aniversário e que em poucas horas estaria comemorando com os amigos. Sem ele sua festa não poderia acontecer.

Maitê não disse nada, pois sabia que na primeira palavra emitida por sua boca a garota ia sair dali correndo e se trancar no quarto. Ela apenas pegou uma tigela na pia e começou a recolher os pedaços do chão, a frente da gulosa chorona que apertava as mãos com tanta força que dava dó. Maitê estava brava sim, mas precisava manter a calma, afinal, a sobrinha já estava sofrendo o suficiente.

— Nossa, Maitê, esta amolando a faca? — reclamou Sara, adentrando a cozinha atrás dela. — Mas o que é isso? — questionou assim que viu a cena, deduzindo o óbvio ao ver a filha no local, aos prantos e com cara de culpa. — O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ, EMÍLIA? — bradou.

— Esta tudo bem, Sara! Foi só um acidente. — Maitê não queria que o dia já iniciasse com uma briga.

— Posso saber que bagunça é essa na minha cozin... Santo Deus... — Pablo não acreditou no que viu. Seu bolo estava destruído. O coração dele acelerou e suas mãos suaram.

— Fora da minha cozinha todas vocês.

— Calma, Pablo. Nós damos um jeito. Eu te ajudo. — Maitê até tentou acalmar o gastrônomo, mas...

— AGORA! — se ele já não gostava de gente invadindo seu reduto sagrado quando as coisas estavam bem, num momento como aquele então, era pedir para ele virar atirador de facas se insistissem em ficar ali.

— M-Me descul-lpe... — foi a única coisa que Emília balbuciou ao passar por ele, correndo direto para o quarto, jogando-se sobre sua cama, agarrando-se a sua boneca.

Enquanto Sara voltou para a decoração do quintal, irritada, e Maitê foi falar com a sobrinha, Pablo terminou de limpar o chão. Feito isso ele sentou na cadeira e olhou a tigela com os pedaços do bolo que não tiveram contato com o chão. Aquilo não seria suficiente para servir na festa. Um suspiro longo e pausado foi o que ele deu antes de abrir o armário e pegar sua batedeira. Embora comprar um bolo pronto fosse mais aconselhável, aquele bolo não era qualquer bolo e aquele prazer ninguém tiraria dele. Era um dos poucos que ele tinha.

— MAITÊ! NÓS TEMOS TRABALHO A FAZER! — vociferou ao pé da escada, convocando a cunhada para ajudá-lo. Ele não era mal educado, mas sob pressão ficava impaciente e nervoso.

— Esta ouvindo só, minha querida. Eu disse que seu padrasto ia dar um jeito. Ele nunca vai deixar você ter uma festa sem seu bolo, mesmo que simples. — disse, tentando fazer a garota parar de chorar. — Acalme-se e depois vá ajudar sua mãe. Pode deixar que ela não vai brigar com você por conta do que aconteceu.  — Sol não tinha tanta certeza daquilo.

Assim que desceu, antes de ir a cozinha ajudar o cunhado, Maitê foi falar com a irmã, pedindo que não brigasse com a filha por conta do acontecido. Já bastava de estresse por aquele dia. Sara estava zangada, mas concordou em manter a calma, até porque, se não o fizesse, a irmã azucrinaria sua cabeça pelo resto do dia.

Ao entrar na cozinha Pablo já foi lhe dando ordens. Rapidamente ela pegou a tigela com a massa limpa e fez o que ele mandou, esfarelou com as mãos – bem lavadas e com luvas descartáveis -, despejou o restante do recheio, misturou até fazer uma massa consistente, forrou forminhas de cupcake com formas de papel, encheu com a massa do bolo, pressionou e colocou na geladeira por um tempo. Neste tempo preparou a cobertura de chantilly colorido.

Enquanto a cunhada cuidava de reaproveitar a massa que se salvou, Pablo preparava outra. De olho ele teve uma base de quantos cupcakes conseguiriam fazer, então fez um bolo pequeno, para completar e dar o toque especial à festa.

Assim que a massa ficou pronta ele a cortou em 3 fatias e reservou para esfriar. Neste meio tempo ele preparou um brigadeiro com cacau em pó e depois misturou um pouco de creme de leite, para dar o ponto desejado, colocando a panelinha dentro de uma bacia com água e gelo para esfriar mais rápido. Enquanto Maitê tingia a pasta americana que já estava pronta, ele, cuidadosamente, umedecia o bolo e o recheava, salpicando pedacinhos de chocolate. Terminado ele colocou a travessa sobre a base giratória e foi ajudar a cunhada a cortar e moldar as flores.

Maitê não tinha ideia do que Pablo tinha em mente, pois ele só abria a boca para lhe dizer o que fazer e como fazer. Ela sabia que ele estava correndo contra o tempo para que Emília não recebesse os amigos com a mesa principal, aos olhos dela, “vazia”, pois o bolo decorado era o que ela mais gostava de ver sobre a mesa. Ela preferiu não perguntar, para ele não se sentir pressionado.

Era estranho até para ela as reações daquele homem. Ora ele falava pelos cotovelos, ora ele se calava, bastava algo o incomodar. Ela mal conheceu o pai biológico de Emília e nada sabia dele além do nome, tendo-o encontrado por acaso duas vezes na casa da irmã. Então não sabia dizer o quanto eles eram ou não parecidos na personalidade, visto que os traços físicos herdou da mãe, tendo herdado dele apenas a cor dos olhos e cabelo, por sinal, da mesma cor que do Pablo. Se Sara quisesse o teria enganado. Pelo menos nisso sua irmã foi correta, não mentiu ao esposo – namorado na época – dizendo que Emília era filha dele. Ele assumiu a paternidade sabendo que ela era fruto da infidelidade.

Ao mesmo tempo em que Pablo se mostrava meio distante da garota, ele lhe fazia mimos que só o amor justificaria, amor este que ele não demonstrava com ações cotidianas. De certa forma ele e Emília se pareciam, embora não fossem pai e filha. O convívio deve ter feito sua parte na formação da personalidade da menina, que também tinha um pouco da personalidade da mãe, como a teimosia, o ciúme e a birra.

— Ligue a caixinha, Maitê. Por favor. — pediu, preparando-se para iniciar a decoração. A música lírica o relaxava e evitava que suas mãos transpirassem. Faltava apenas uma hora para a hora marcada da festa. — E se não se importa...

— Já sei. Estou indo. — ela sabia quando ele queria ficar sozinho.

Maitê passou no quarto da sobrinha e ao ver que ela estava tomando banho, foi fazer o mesmo. Enquanto isso, ao som de Sara Brigthman, Pablo fez florescer o pequeno jardim da pequena Tinker Bell de cera, no bolo e nos cupcakes.

Quando Emília, às 14h00 em ponto, foi ao quintal e deu de cara com sua mesa arrumada por sua mãe, com seu pequeno jardim de cupcake e seu pequeno, porém lindo bolo, gritou de tão feliz. Ela errou ao duvidar que seu padrasto conseguiria fazer algo tão bonito a tempo.

Da cozinha ele apenas sorriu e continuou a limpar a bagunça, quase derrubando a tigela da batedeira no chão quando a garota o abraçou apertado pelas costas, agradecendo, correndo dali antes mesmo dele dizer alguma coisa, pois ouviu a campainha tocar. Um pequeno prazer que ele não abria mão. Não era uma pequena chuva de picotinhos, mas era dele.

— Deixe isso ai, Pablo. Vá recepcionar os convidados da sua enteada junto com sua esposa. — disse Maitê entrando na cozinha.

— Você pode fazer isso por mim. — respondeu. Ele não conseguia deixar sua cozinha bagunçada.

— Por favor, Pablo. Eu mesma faço isso depois, mas vá se divertir um pouco. Hoje também é seu dia afinal de contas. — disse ela, referindo a ser dia dos pais.

Um friozinho gelou o peito dele.

— Esta bem. Mas por favor, deixe a cozinha fechada. Não quero que ninguém a veja desse jeito. — concordou, saindo do lugar, indo cumprimentar os convidados da enteada, cujos pais mantinham com ele e a esposa uma relação de amizade, nascida por conta dos filhos serem muito agarrados.

— Pode deixar. — disse ela sorrindo.

Enquanto os adultos conversavam e as crianças brincavam com um tapete de dança conectado ao computador, Pablo tomava banho, tirando da pele o cheiro da cozinha. "No final tudo deu certo", pensou ele enquanto sentia a água bater em seu rosto.

— Você deve estar feliz não é, Emília? Sua mesa esta linda e este bolo com os cupcakes estão mais lindos ainda. E aposto que devem estar saborosos. — comentou a mãe do Ken, encantada com o capricho do Pablo, cujos dotes culinários eram muito apreciados por ela.

— Estou sim, tia. Ficou perfeito. Mais bonito que o do ano passado. — respondeu com um sorriso largo, fazendo um sorriso nascer nos lábios do padrasto que chegava ao local.

— Mas só podia ficar perfeito. Em se tratando de culinária, tudo o que seu pai faz fica perfeito.

— Não foi meu pai que fez, tia, foi meu padrasto. — corrigiu-a. Madeleine ficou sem graça, pois não via Pablo como padrasto e sim como pai dela, embora soubesse que não era. — Meu pai não esta aqui.

— Ah. Desculpe, querida. Não queria te chatear. Esqueça o que eu disse.

— Não tem problema, tia. Muita gente se confunde. E meu pai não esta aqui hoje porque não pode, mas um dia ele vai vir. — justificou na sua inocência, acreditando fielmente naquilo. Madeleine apenas sorriu, pois era melhor não dizer nada. Ela sabia o que era ter um filho que sonhava com a volta do pai. A diferença é que seu pequeno Ken havia sido trocado pela guerra no Afeganistão, enquanto aquela garotinha, sabe-se lá pelo quê o pai a havia trocado.

Perto dela Pablo preparava uma bebida. O sorriso já não enfeitava mais seu rosto.

Às 18h00 em ponto as luzes se apagaram e todos cantaram “Bon Anniversaire”. Logo após Sol apagar a vela e fazer seu pedido, as luzes se acenderam e ela cortou a primeira fatia. Todos os anos, desde que se lembrava, ela dividia o pedaço em dois e dava metade para sua mãe, que o recebia sempre sem graça, beijando-lhe a testa e agradecendo, fingindo que aquilo não a emocionava, e metade para sua tia, que a agarrava, agradecia, e dizia que a amava; mas aquele ano era especial. Ela estava comemorando seu aniversário no dia dos pais, desta forma, aquele primeiro pedaço não poderia ir para outra pessoa.

Meio sem jeito, pois ela achava que tinha que explicar o motivo de não dar a primeira fatia para aquelas duas mulheres, Sol falou, baixinho, mas falou.

— E-Eu amo minha mãe e minha tia, m-mas esse ano eu vou dar a primeira fatia para outra pessoa muito especial, porque hoje também é o dia dele. — falava, enquanto alguns olhares direcionam para o Pablo, que apenas a observava com seu olhar sério. — É pro meu pai. S-Sei que ele não esta aqui, mas não tem problema. — concluiu, colocando o pratinho sobre a mesa, ao lado do bolo.

Um breve silêncio tomou conta do ambiente. Ninguém esperava por aquilo, nem Sara. Na verdade, quase ninguém. Pablo já imaginava. O pai estava sempre presente nos pensamentos dela, principalmente em datas especiais. A única diferença é que naquele dia ele ganhou mais que picotinhos de cartão.

— Que lindo, querida. Agora vá brincar com seus amigos enquanto eu sirvo o bolo aos convidados. — disse Maitê, querendo encerrar aquele momento. Sol sorriu e saiu dali. Na sua inocência ela nem percebeu que surpreendeu os adultos presentes.

Pablo se manteve igual, para ele não fazia diferença. Pelo menos era o que ele queria que todos acreditassem.

— Quer bolo ou cupcake, cunhado?

— Nenhum, Maitê. Estou satisfeito de bolo por hoje. — foi a resposta dele a cunhada com a bandeja de acrílico na mão.

— Ok. Guardarei um de cada para você comer amanhã. — ela fingiu que acreditou que sua recusa foi pela loucura daquela manhã. Ela era observadora demais para não perceber o que nem Sara percebia, ou fingia que não percebia.

Cerca de meia hora depois os convidados se retiraram. A festa havia terminado. Emília estava feliz e não via a hora de abrir seus presentes, então correu para seu quarto com as sacolas nas mãos, como se estivesse voltando de um passeio ao shopping, repleta de compras.

Pablo foi arrumar sua cozinha. Maitê havia oferecido ajuda, mas este preferiu fazê-lo ele mesmo, e sozinho. Da porta ela o observou mais. Ela havia acabado de descobrir que Pablo não era chato com sua cozinha apenas por ser seu local de criação, era seu lugar de relaxamento, sua válvula de escape, seu refúgio. E com certeza, naquela noite ele estava querendo escapar de alguma coisa.

Naquele dia eles se recolheram cedo, exceto Pablo, pois a cozinha demorou para ficar impecavelmente limpa e organizada, como ele gostava. Exausto ele tomou uma xícara de chá morno e se recolheu, encontrando a esposa dormindo. Ao tirar o relógio de pulso e colocá-lo sobre o criado mudo encontrou algo que lhe era conhecido, embora fosse diferente a cada ano.

Depois de conversar com a tia, Sol lembrou que ainda não tinha dado o cartão de Dia dos Pais ao padrasto e que havia feito na escola. De tão empolgada com sua festa, esqueceu que aquele homem era o mais próximo de pai que ela tinha por perto.

Pablo o pegou sem muito entusiasmo, pois diferente do cartão que ela fazia para o pai, repleto de amor e carinho, gastando horas do seu dia desenhando, pintando, recortando, colando e decorando, aquele ela fazia na escola, como parte de uma atividade escolar. Havia um carinho embutido nele sim, mas não amor de uma filha pelo pai, amor este que ele estava desistindo de querer, pois em nada do que ele fazia ela enxergava amor, fosse numa brincadeira, numa ajuda com o dever escolar ou mesmo com os mimos açucarados que ele preparava para ela e os amigos. De certo, para ela, ele devia estar apenas exercendo sua “função” de cuidador, visto que a assumiu legalmente e era casado com a mãe dela. O coração dela, de filha, era e sempre seria do homem que não havia passado mais que uma semana por mês com ela durante seus três primeiros anos de vida. De certo haviam sido dias perfeitos, pois apesar da pouca idade que ela tinha quando ele a abandonou, nada mudou no coração dela, cujo amor parecia apenas crescer.

Ele já estava cansado de se chatear a cada vez que ela mencionava o pai. Uma simples brincadeira era motivo para ela lembrar do pai e relacionar algo que desejava fazer com ele quando este retornasse para vê-la.

Ao abrir o cartão ele se surpreendeu com a quantidade de palavras: mais que as tradicionais duas linhas.

Desculpe-me, tio Pablo. Eu estava tão feliz por seu meu aniversário, que me esqueci que hoje também era o seu dia. Sei que não sou sua filha de verdade, mas o senhor tem ajudado minha mãe a me criar desde que eu era pequenininha. Sei que é difícil, pois sou chata e não percebo as coisas. Mas eu sei que o senhor gosta de mim, do seu jeito, mas gosta. E eu também te amo! Feliz Dias dos Pais e obrigada por tudo!

Embora ele soubesse que ela tinha tido ajuda, provavelmente da Maitê para escrever aquela mensagem, pois estava muito bem escrita, ele não conseguiu conter as lágrimas. Ele se sentiu um idiota por ser um homem adulto com ciúme de um fantasma do passado e que ainda ocupava o coração da “sua filha”.  

Ele dormiu com o cartão sobre o peito.

* * * * *

Atualmente, a tardezinha:

 

— Nossa! Quanta alegria! — exclamou Maitê ao sair do banheiro, por ouvir os risos da sobrinha ecoando pelo pequeno apartamento.

— Estou vendo as fotos do meu 9º aniversário, tia. — contou, contendo o riso alto por ter se lembrado do Ken dançando todo descoordenado no tapete musical, lembrando em seguida de que quase ficou sem bolo naquele dia.

— Por sorte se padrasto é bom no que faz, ainda mais quando era pra você. — comentou, enxugando o cabelo, levando a sobrinha a um questionamento.

— Eu nunca consegui entender o tipo Pablo, tia.

— Como assim?

— Sei lá. Tinha momentos em que ele me tratava super bem, noutros ele me repelia. — contou, amuando-se um pouco. — Às vezes eu achava que ele não gostava de mim.

Maitê olhou para ela e com seu jeito especial de expressar o que pensava lhe fez uma pergunta:

— Sabe por que seus bolos de aniversário eram tão lindos e saborosos, Emilia?

— É claro tia. Porque o tio Pablo é gastrônomo e um ótimo culinarista.

— Não, querida. Eles eram perfeitos porque ele punha neles todo o amor que ele tem por você, mas nunca conseguiu dizer, pois o seu coração nunca abriu as portas pra ele, sendo apenas do seu pai. Ele te afastava porque assim doía menos.

Emília foi pega de surpresa com aquilo. Seria verdade? Sem dizer nada ela pegou seu álbum e foi para o quarto, pensativa.

Minutos antes do relógio marcar 23h00 ela ligou para Londres, para seu padrasto, que atendeu com uma voz cansada. Ele havia acabado de retornar do restaurante.

— D-Desculpe por ligar tão tarde, tio Pablo, mas quero te pedir uma coisa. — disse, sem se protelar, com medo dele se negar.

— Diga, Emília. O que você quer. — ele não tinha ideia do que poderia ser.

— M-Meu aniversário é daqui 15 dias, como sabe, e... — respirou fundo para pedir. — E-Eu queria, não, eu quero que o senhor faça o meu bolo.

— Eu faria sim, Emília, mas é melhor você encomendar em alguma confeitaria daí, pois se houver algum imprevisto aqui em Londres e sua mãe e eu nos atrasarmos você poderá ficar sem bolo. Não é a mesma coisa que um bolo infantil para 15 pessoas. — recusou o pedido, tendo uma visão profissional em relação àquilo, devido à importância do evento.

— N-Não é a mesma coisa. — disse, amuada ao telefone. — Seu bolo é diferente, é especial.

— Especial em quê, Emília? Há ótimas confeitarias em Nice. De certo encontrará alguma que faça do jeito que você gosta.

— Mas o da confeitaria não vai ter... — titubeou, sentindo os lábios tremularem. Porque ela tinha que ser tão chorona.

— Não vai ter o quê, Emília? É tudo igual.

— A-Amor, tio Pablo. O seu tem amor e o deles não.

Ele já havia desistido de esperar que ela o amasse como amava o pai, ou pelo menos que reconhecesse o amor dele no que fazia para ela. Mas como o coração não acata as incertezas da mente ele emudeceu. Aquela sensação lhe era estranha, mas quente. Ela não segurou mais e chorou. Ele se rendeu e chorou com ela. Eles só desligaram os telefones após acordarem como seria aquele bolo regado a amor, e que naquele ano, para Pablo teria um sabor diferente. Ele estava feliz, pois já havia ganhado seu presente do dia dos pais. Ele voltara a sonhar com o dia de ouvi-la chamá-lo de pai, mesmo que uma única vez.


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Notas finais do capítulo

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