John

Conheci a pequena Daisy através de Paul, que já havia me contado sobre o super talento musical que a garota tinha. Ele foi na minha casa para compormos uma música, estávamos planejando montar uma banda.

Qual não foi minha surpresa quando ela - que devia ter uns catorze anos na época - adentrou a sala de estar, tropeçando no tapete e rindo de si mesma, dizendo que se chamava Daisy e que aqueles acidentes aconteciam o tempo todo.

A morena me cativou logo de início. Tanto que, se Paul havia me deixado com uma boa impressão dela, depois daquela visita eu a achava mais genial ainda. Agora era eu quem fazia propaganda dela para os outros.

Compomos músicas incríveis naquela tarde, músicas que nunca teriam ganhado vida se ela não estivesse lá, tendo ideias brilhantes e derramando suco de laranja na própria roupa.

No ano seguinte, Daisy fez por mim algo que nunca vou esquecer.

~~~~

A paisagem do outro lado da janela era quieta e deprimente. As árvores balançavam suavemente com o vento, fazendo um barulho baixinho e relaxante. Já era madrugada, mas a última coisa que eu queria fazer era dormir.

Olhar o mundo lá fora sempre me acalmava e inspirava. Transmitia-me um sentimento ótimo que eu quase sempre aproveitava para aplicar nas músicas.

Mas naquela noite eu não conseguia por nada escrever sequer uma palavra ou nota no papel. Minha mente estava cheia e vazia ao mesmo tempo.

Deite-me na cama, observando o teto e me perguntando o porquê de estar tão bloqueado criativamente. Aquilo me dava nos nervos.

Para falar a verdade, acho que não conseguir compor é o que mais me frustra até hoje...Como se eu fosse uma abelha sem ferrão, a beira da morte.

Música sempre foi a única coisa que soube fazer na vida, se me tirassem isso, não sobraria nada. Era tudo que eu queria e podia fazer.

Eu já havia revirado metade do quarto, arremessado a maioria das coisas e arrancado quase todos os meus cabelos quando algo fora da janela se mexeu, chamando minha atenção.

De relance, vi uma sombra correndo pelo meu jardim, rápida e sorrateira. Abri a janela e coloquei a cabeça para fora.

Dei um pulo para trás quando Daisy apareceu, sorrindo para mim e se jogando para dentro do quarto, com uma mochila nas costas.

—O que você está fazendo aqui, sua louca?

—Shhhh, eu nunca estive aqui - respondeu, rindo e se jogando na cama.

— O que aconteceu?

—Fugi de casa.

—Brigou com os seus pais? - perguntei, me sentando ao seu lado.

—Mais ou menos...Mas e aí, tá fazendo o que acordado até agora?

—Tentando escrever alguma coisa, mas está bem difícil.

Ela me fitou por uns segundos, com os olhos grandes e castanhos desconfiados.

—John Lennon não consegue compor, quem diria.

—Engraçadinha. Vem aqui me ajudar.

Abri caminho entre a bagunça até achar as poucas palavras que tinha rabiscado num papel durante a aula na faculdade e entreguei a ela, que leu e releu algumas vezes, fazendo uma careta.

—Isso está bom, só precisa de um fim.

—Eu não consigo. Já tentei de tudo, estou bloqueado.

—Então descubra o motivo do bloqueio e o extermine. Simples.

—Bem que eu queria saber o motivo. - Suspirei. - Merda.

—Que tal falarmos sobre o doce?

—Oi? -Olhei para ela como se tivesse dito "Vi vacas falantes flutuando por ai hoje.".

—"Oh, ela não é um doce?". - Leu no papel que tinha em mãos. - Quem é o doce, John?

—Ninguém...- Olhei para baixo, escondendo o rosto rubro na gola da jaqueta de couro.

—Aposto que é ela quem está te causando esse bloqueio. Sabe, essas coisas acontecem quando pensamos demais em algo...Normalmente a nossa cabeça fica cheia quando pensamos no amor.

—Amor? No amor eu estou mais perdido que a própria Alice, Daisy.

—John, você já tem vinte, não é possível que não tenha ninguém. Quem é a musa dessa letra?

Fiquei quieto por uns segundos.

—Vamos, estou querendo ajudar...- disse, me chacoalhando.

—Ok,ok. Na verdade...Tem uma garota da minha aula de caligrafia...

—Aquela na qual você só entrou porque era a única que te aceitaria?

—É, essa mesma.

—E quem é a garota?

—Cynthia Powell...

—Ah, então temos alguém, Sr. Lennon.

Ela me entregou os rabiscos do que poderia se tornar uma música e sorriu.

—Só pense nela e em tudo que ela significa. Use essa confusão que está causando o bloqueio a seu favor e escreva a melhor canção de amor do século. Escreva algo que vá impressiona-la!

Quando os primeiros raios de sol saiam nós finalmente acabamos "Ain't She Sweet?" e, na mesma semana eu a cantei para Cynthia, com quem me casei alguns anos depois.

Naquela madrugada de agonia, Daisy foi o meu Sol.