Crônicas das terras arrasadas: O sentimento algoz escrita por Abistrato


Capítulo 3
Capítulo 3 - Jennifer Wagen




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Capítulo 3 – Jennifer Wagen 

 
 
 

Quando acordei Will já havia partido. Eu torcia para que ele voltasse mais cedo hoje. Para minha surpresa tinha uma pentelha dormindo com a cara fincada nos meus quase inexistentes seios e agarrada em minha cintura. A esse ponto qualquer outra pessoa já teria seus miolos espalhados pela parede, mas ela dormindo tinha um semblante tão calmo e infantil, praticamente angelical que me acalmava um pouco. Entretanto hoje eu tinha muitas coisas para fazer e para ensiná-la, então, por mais que eu não quisesse, eu deveria levantar o mais rápido possível. 

— Rachel, acorda, temos que fazer muita coisa hoje — eu disse bocejando. 

— Só mais um pouquinho. — Ela se ajeitou na “cama” me imobilizando com seu peso. 

— Não dá. — Eu me levantei numa segunda tentativa mais determinada rolando-a para o lado e logo me pus a trocá-la com roupas antigas da minha conturbada época de moleca empoeiradas pelo desuso. 

— Eu queria cortar meu cabelo — ela disse quando eu corri a mão pelo seu cabelo para tirá-lo de trás do meu top que nela parecia uma mais camiseta rasgada. Quando olhei seus cabelos longos e malcuidados que se emaranhavam apesar de agora limpos eu percebi que realmente era necessário. 

— Nós podemos ir cortar o cabelo antes de ir comprar roupas, e depois podemos ir achar uma oficina pra você. 

— “Oficina”? 

— Sim. Aqui nesse acampamento todos têm funções, como trabalhos, e você precisa aprender algum ofício para ser admitida por uma companhia de ofício e ganhar a permissão de efetuá-la... — Eu me ajoelhei para ficar na mesma altura dela para ver se um antigo short de cintura alta meu servia nela. Servia e cobria a parcela de pele exposta pelo top. 

— O que é uma companhia de ofício? — interrompeu-me curiosa. 

— A companhia de ofício é uma associação das pessoas que trabalham na mesma área. Elas são lideradas pelos mestres. Eles são os mais experientes que ensinam os mais novos, indicam como deve ser a conduta dos trabalhadores e negociam os interesses de cada classe com o coronel Dulcan. — Essa foi uma explicação ingênua do que seria o ideal, mas na realidade o maldito Coronel comandava tudo tornando os mestres em seus cães de colo com subornos e privilégios como morar em casas de alvenaria da Zona Sul. 

— Entendi! — ela disse sorrindo — Assim ele não faz vocês trabalharem demais! — Eu quase ri com essa frase. 

— É... seria isso se o Dulcan não subornasse a maioria dos mestres com casas na zona sul. 

— Aaa... — ela se desanima. — E como se faz pra virar mestre? 

— Tem que fazer uma prova prática que é avaliada por todos os mestres no final do ano. 

— E por que você não faz para morar lá também? 

— Eu não tenho saco pra aguentar nem o Dulcan nem pra... — Eu olho para a menina que esperava atenta pelo fim da resposta. — novatos... Então, já tá pensando em algo? — Troco de assunto evitando a magoar. 

— Não sei... que opções tem?  

— Bem, tem cozinheira, artesã, caçadora, militar... — Fiz questão de falar este último baixo e rápido. — exploradora, camponesa, médica e mercadora. É... Eu acho que é só. Beleza, coube. — concluí mesmo Rachel parecendo desconfortável. — O único detalhe é que exploradora, camponesa, caçadora e militar são as únicas profissões financiadas pelo Dulcan então, basicamente, são essas suas opções. 

— Eu queria algo que eu pudesse fazer sozinha... — Ela diz timidamente, surpreendendo-me. 

— Bem, poderia ser algum tipo de artesã, mas duvido que teremos dinheiro para pagar equipamento e tudo mais. Você vai ter que ficar entre exploradora, caçadora (pessoalmente eu não recomendo) camponesa e militar que são de graça a não ser que... — Repentinamente me lembrei de Isabella — A não ser que eu a bibliotecária esteja disposta a te ensinar. 

Isabella Norton era uma mulher de meia idade que, apesar de uma personalidade tão ou mais antipática do que a minha, tinha um grande coração e era muito generosa. Ela ajudava minha irmã, que dava aulas de história e geografia para as crianças ricas da zona sul, deixando que ela ficasse com livros por mais tempo e deixando a luz da biblioteca acesa depois do horário de fechar para que ela pudesse ler no escuro. Provavelmente se eu pedisse ela ensinaria Rachel a ser uma bibliotecária, se ela percebesse que a menina tomaria cuidado com os livros porque eram as coisas mais preciosas que ela tinha.  

Talvez sejam nossas personalidades que nos aproximavam apesar da diferença de idade. Ela era quieta e dispensava qualquer conversa desnecessária dedicando-se inteiramente aos seus livros tanto em lê-los quanto em reformá-los, era comum ela passar dias entre eles sem falar com ninguém, mas não hesitava em caçar furiosamente aqueles que demorassem a devolver ou estragassem um de seus bebês. Basicamente nós éramos muito parecidas as únicas diferenças era o que nos era precioso e por tabela como os protegíamos. 

— O que é uma bibliotecária? — Ela perguntou curiosa. 

— É alguém que cuida de livros.  

— Tá bom, pensa no caminho, agora temos que sair. — Troquei-me pondo uma calça jeans rasgada (não pelo estilo) e uma regata branca para então sairmos. 

...____________... 

O primeiro e único lugar da nossa lista de deveres era a praça principal onde se encontrava tudo que iríamos precisar. Eu deveria ir primeiro visitar Victor, um mercador que sempre tem tudo que se pode imaginar por um preço razoável, apesar de a qualidade da mercadoria ser duvidosa, para comprar roupas para a menina, porém como Rachel queria ir cortar o cabelo nós devíamos ir ao hospital onde o “cabelereiro” ficava e depois ir comer no galpão-refeitório. Felizmente tudo ficava perto. 

Era engraçado ver Rachel andando pelas ruas e vielas do acampamento olhando tudo com olhos esbugalhados como se entre aquelas ruas estreitas tivesse encontrado um universo inédito. A menina olhava de cima a baixo todos que passavam, dos militares fazendo ronda, ela se escondia; das aprendizes de caçadoras carregando seus pequenos rifles, ela se encantava com seus cabelos exóticos (algo que eu detestava quando era uma aprendiz); dos aprendizes de exploradores correndo pelas cidades com suas acrobacias ousadas, ela se maravilhava; mas foi quando chegamos à praça central que ela teve ideia da real dimensão do Acampamento. A menina arfou impressionada. 

— É bem mais bonito de dia, não é? 

— Isso é enorme. — Rachel levou as mãos à boca. — Olha quanta gente! O tamanho desses prédios — Ela apontava admirada para os prédios principais do Acampamento, então, distraidamente deu uns passos para um lugar vazio em meio à multidão. — O que é aquilo?  

— O quê? A fonte? 

— Eu gosto da fonte. Ela é bonita. 

Uma forte e alta buzina tocou quase que em cima de nós me fazendo puxar violentamente a garota para fora da estrada. Um enorme caminhão passou por nós. Ele tinha um quebra-gelo de aço em sua frente e era totalmente revestido por grossas chapas do mesmo material onde pendiam correntes por onde soldados se movimentavam ao longo do veículo. Duas metades da carcaça de um carro completavam sua armadura em cada extremidade da carreta. Depois dele, passaram mais duas caminhonetes com o mesmo tipo de soldados. 

— Você quer ser atropelada, garota?! Você não pode ficar no meio da rua!  

— Hã? — Rachel estava atordoada. — O que é aquilo?  

— É um caminhão de guerra — respondi. 

— Eles sempre passam por aqui? 

— Não, isso é coisa de gente do Norte. Alguém importante deve ter chegado. — Eu estava desconfiada. 

— Eu não gosto de gente do Norte. — Medo, quase pânico, emanou da menina que logo agarrou-se ao meu braço com força.  

Qualquer um estaria com medo depois de ser quase atropelado, ainda mais por um caminhão, mas o que Rachel sentia era muito mais do que medo e, o mais estranho, era que a fonte dele não foi o caminhão em si, mas o fato de que pertencia a pessoas do Norte. Será que a pirralha teve alguma relação com o Norte que despertou tanto medo nela? Talvez ela tenha sido mal-tratada por algum nobre por ser da plebe como os rumores dizem. Por mais que eu fosse grossa e estúpida, e eu sabia que era, não era insensível, eu percebia que ela estava sofrendo e perguntar o motivo apenas aumentaria sua aflição. Já fazia tempo que eu não via uma menina com tamanho e tão puro medo, mas, também, não tinha intensão nenhuma de descobrir o porquê. Sabia que não me traria prazer nenhum, muito pelo contrário. 

— Tudo bem, eles não devem ter nos visto. — Ela se acalmou ao ouvir isso. — Vamos, Rachel, ou podemos perder a hora.  

Depois de alguns minutos de caminhada, nós chegamos ao galpão-hospital, onde um dos médicos, Samuel, além de praticar a medicina também era dentista e cabeleireiro (o mais barato dentre todos do Acampamento).  

O hospital era um enorme galpão de dois andares repleto de macas dispostas lado a lado em linhas e colunas com amplos corredores entre cada linha. O primeiro andar era onde se faziam as consultas básicas e ficavam feridos, já o segundo andar era isolado por uma larga porta corta-fogo. 

A maioria dos funcionários eram enfermeiros que corriam para cima e para baixo com cadernetas onde anotavam as doses que deveriam dar a cada paciente sob seus cuidados. Já os médicos ficavam em duplas próximos as entradas para rapidamente atenderem novos enfermos e feridos. 

Uma vez dentro do hospital notei que havia muitas macas ocupadas como sempre, mas, mesmo assim, a esforçada dupla médica estava jogando pôquer em uma mesinha no canto ao lado da entrada. 

— Não devia ter alguém aqui para olhar os doentes? — gritei brincalhona. 

— Não devia uma pobretona ficar quieta dentro do hospital? Desculpa esqueci que você não teve aula de etiqueta. 

Essa boa-vinda fez um ódio gélido correr minha espinha me deixando em alerta. Aquele dia era justo o turno da Angel. Eu não poderia vir em um horário pior se tentasse. Apesar do nome nada nela era angelical. Nada além de sua beleza, ou pelo menos essa era a fama que ela tinha entre os rapazes do Acampamento. Seus longos cabelos loiros e ondulados formavam uma bela cortina sobre todo o comprimento de suas costas. A pele perfeitamente lisa e brilhante era uma alva moldura para olhos tão azuis que até o céu acima de nós os invejava. Tudo isso bem disposto em um corpo escultural de um metro e setenta e cinco o que a faria três centímetros mais alta do que eu se ela não andasse quase sempre em saltos-altos. 

Angel era filha de um Major, o que já deixa claro como ela entrou para o seleto hall de médicos do Acampamento. Não bastando ser uma patricinha herdeira de um militar de alta patente, uma esnobe de 28 anos que achava que já havia experimentado de tudo na vida e, como quase todos os médicos (salvo Samuel), achava que era a dona da verdade santificada por um tipo de manto sagrado chamado jaleco, ela ainda, depois da morte de seu pai, começou a namorar meu arquirrival, Carl. Foi assim que surgiu nossa inimizade. 

— Vish... Já vi que tem uma malcomida aqui. O que é, cobra? Mimada demais para trabalhar ou é medo de estragar suas unhas? — retruquei enquanto Angel me fuzilava com seus olhos. 

— E você ainda não desistiu de chafurdar na lama todo dia e arrumar um emprego decente? Ou um namorado decente? Ou quem sabe aprender ser uma pessoa decente como a sua irmã? — Angel rebateu fazendo um ódio quente e sob alta pressão subir pelo meu corpo até minha cabeça. Nessa hora até os pacientes mais distantes levantaram a cabeça de suas macas para nos ver digladiando, cada um chamando outro mais distante. 

— Você quer morrer, Angel? 

— E o que você vai fazer, tábua? Feder até eu desmaiar? Por que se for o caso eu posso te doar um sabonete e te ensinar a usar. 

— Se você não calar a boca agora, quando eu terminar com você, vai ter que catar os cacos da tua bunda se quiser cagar de novo. 

— Ahhh... — Ela me desafiava com um sorriso. — Eu adoraria ver você tentar, mas eu não posso me sujar, sabe eu acabei de pintar as unhas e o meu esmalte custa mais caro que os cinco litros do seu sangue, não que você saiba o que um esmalte é. 

— Ah há há... você vai se arrepender, sua pu... — Eu estava já com o punho cerrado quando Rachel segurou meu pulso e balançou a cabeça negativamente. Eu respirei fundo, tentei engolir a raiva. — Mas eu não vim aqui pra perdeu meu tempo com você até por que eu estou num hospital, eu vim pra falar com o Samuel, eu preciso de um corte de cabelo. — Os pacientes abaixaram as cabeças decepcionados.  

— Sério, eu pensei que você nunca mais ia me deixar cortar seu cabelo, já faz o quê? Seis ou sete meses que você não vem dar uma aparada? — disse o gordo asiático que levanta lentamente da cadeira para procurar sua tesoura e sua navalha. A verdade é que, por contenção de gastos, Will e eu cortávamos o cabelo um do outro há mais de dois anos, mas eventualmente eu venho aqui para aparar, pois o Will como cabeleireiro é um ótimo caçador. 

Samuel era bem diferente de Angel, o que já o torna bem agradável. Ele era um simpaticíssimo balofo de pele morena repleta de marcas deixadas pelas espinhas estouradas durante sua adolescência. Seu cabelo era negro e cortado no formato de uma tigela por preguiça de cortar o próprio cabelo. Diferente dos demais médicos, Samuel adorava conversar com todos seus pacientes e clientes e se abstinha de julgamentos desnecessários. Ele sempre me ajudava com conselhos quando eu vinha parar aqui, normalmente por conta das brigas que eu me metia. Além de tudo isso, o principal fato que me levou a ter tanta amizade com Samuel foi que tinha sido ele o responsável por abrir meus olhos para os sentimentos de Will com relação a mim. 

— Por aí... Mas não é para mim, é pra essa pentelha aqui, Samu. 

— Ei! — disse Rachel — Eu não sou pentelha!  

— Ai! Ela é uma linda, olha que fofa! Não sabia que você tinha adotado... — disse Samuel que depois de achar seus instrumentos veio me cumprimentar com um abraço que pôs minha cara entre seus seios! Nojento... e sim, ele tem seios, não tão grandes como os de Angel, mas ainda sim grandes. 

— Não foi bem uma adoção... é uma longa história — eu respondi. 

— Sei... — Samuel consentiu. 

— Até que ela é bonita mesmo! — disse a médica irritante — Com certeza não vai ser uma chapa como você. Linda, por que você não corta um pouco desfiado, depois faz um ondulado para dar volume e faz um penteado de lado? Vai ficar maravilhoso! — Ela se aproximou de Rachel, se abaixou e olhou com seus grandes olhos azuis para seu rosto enquanto fazia seu diagnóstico capilar, mas quando tentou tocar nos cabelos da garota, Rachel desviou fazendo a médica encolher o braço confusa com aquilo que me pareceu ser a primeira rejeição de sua vida. 

Eu juro que vou matar essa vadia! Quem ela pensa que é? Alguma fashionista? Uma musa? Uma filha da Afrodite?, eu pensei, brava. 

— Olha, Angel, ela vai cortar do jeito que ela quiser! Ela não vai ser uma patricinha que se acha gostosa como você! — Pus-me entre a garota e a médica quando a primeira levemente puxou minha roupa.  

— Então... eu meio que gostei do que a moça bonita falou — sussurrou Rachel envergonhada.  

— Ai! Era só o que me faltava... Tá bom, se é o que você quer — arfei decepcionada ao passo que Angel dava um sorriso sarcástico pra mim, então pegou na mão da pirralha e a conduziu para uma cadeira de frente a um espelho onde Samuel amolava a tesoura. 

Quando viu o que Samuel fazia com as tesouras ela travou dando um tranco no braço da médica, seu rosto mudou, sua garganta se enrijeceu fazendo um barulho agudo. Angel, percebendo a reação da garota pôs seu carisma em prática. A médica se ajoelhou e, olhando no fundo dos olhos verdes, disse: 

— Qual o problema, Rachel? 

— Eu tô com medo — ela disse bem baixinho. 

— ‘Magina, linda. — Ela passou a mão nos cabelos de Rachel que dessa vez não desviou enquanto falava com uma voz calma e reconfortante. — Você sabia que o Samuel é a única pessoa que a Jennifer confia para cortar os cabelos dela? — Angel já havia compreendido como a mente de Rachel funcionava, percebi 

— É verdade? — Ela se voltou para mim 

— É verdade — confirmei 

— Então vamos lá? — disse Angel e Rachel, olhando para mim, deixou que eu respondesse. 

— Pode ir sem medo, Rachel. 

 
 
 

Rachel caminhou lentamente com Angel olhando repetidamente para mim como quem esperava por aprovação enquanto eu a olhava com os braços cruzados. A cadeira em que ela sentou era feita de aço, exatamente igual àquela em que os dois médicos estavam sentados antes e estava posta de frente para uma das paredes do galpão. Samuel puxou um espelho que estava atrás de uma cristaleira, onde alguns medicamentos ficavam guardados, e o pendurou de frente para onde Rachel estava sentada. A jovem olhou novamente para mim quase que me chamando e eu, a contragosto, fui até ela que rapidamente segurou minha mão forte por todo o tempo do corte. 

— Ela é realmente apegada a você, não é? — perguntou Samuel ao notar nosso movimento enquanto escolhia pentes e tesouras que utilizaria. — Há quanto tempo tá cuidando dela? 

— Umas quatorze horas... — Samuel olhou assustado quando respondi e decidiu mudar de assunto. 

— Ok, vamos começar! — disse Samuel — Me fala, Rachel, como você foi parar com a Jenny? 

— Eu fui salva por um rapaz alto e uma loirinha mais ou menos do meu tamanho de um campo abandonado pelos Draugs e aí a Jenny é quem vai cuidar de mim. 

— Aaah... essa loirinha deve ser a Emily. 

— Emily? 

— Emily é a esposa do Marcus. Esse casou bem cedo, né? — comentou Angel enquanto checava um paciente 

— Pois é — disse Samuel —, mas como você foi parar nesse antigo campo de Draugs? 

— Eu não sei..., eu morava em um lugar verde, muito verde. — Subitamente sua voz mudou junto de sua face agora perturbada cujos olhos rapidamente se encheram de lágrimas sobre o lábio tremulo e fala enroscada — Um dia tudo estava pegando fogo... eu não entendia o que estava acontecendo e estava com medo, estalos para todo o lado e aqueles homens maus... — A pausa foi maior dessa vez e sua voz já se distorcia entre profusas lágrimas e soluços — Eles... Eles tinham armas e uniforme... e... e... um monstro! — Ela berrou nessa parte fazendo até eu, que não estava impressionada, assustar-me — eu nem conseguia andar direito... Tentei fugir... mas ele me pegou... — A cada segundo que se passava a história nos prendia cada vez mais a ponto das minhas orelhas saltarem para frente para escutar melhor — Era horrível! Eu estava com tanto medo. — Ela escondeu o rosto. — Seis braços, seis olhos, uma boca repleta de dentes enormes!... — Eu fiquei ainda mais tensa por que não conhecia nenhum animal com essa descrição. Talvez a dúvida havia se instalado em mim — Depois disso estava num lugar escuro e barulhento, apanhando para fazer coisas... — Lágrimas ainda corriam de seus olhos verdes, mas agora ela soluçava baixinho, com olhos escondidos sob seu cabelo semicortado e mãos entrelaçadas segurando uma a outra entre as pernas. 

— Não precisa falar mais nada, querida, você já sofreu demais — disse Samuel se ajoelhando para enxugar os olhos da pequena enquanto eu e Angel estávamos boquiabertas ouvindo a história. 

— Não, tudo bem, a parte ruim já passou. 

— Tá, mas como você saiu de lá? — eu perguntei. 

— Eu consegui fugir com uma mulher que dormia na mesma cela que eu. E então decidi voltar para casa, rodamos em círculos dias e dias até que ela morreu de fome foi quando eu cheguei ao campo de Draugs, lá eu encontrei alguns buracos no chão que eram túneis de toupeiras, os bichinhos eram muito estranhos, mas eu estava com tanta fome.... Quando a chuva começou, aquele casal me encontrou. — Ela se referia a Marcus e Emily 

— Mas se a outra menina morreu de fome por que você não morreu também? — perguntou Angel. 

— Você é burra, Angel?! — eu gritei — Cala a boca! 

— Eu não morri de fome porque a Sarah morreu primeiro. — Eu já esperava essa resposta, por isso não queria que Angel perguntasse. Os caçadores e exploradores estavam acostumados com histórias canibalismo, mas pessoas que nunca saíram de trás da muralha eram ignorantes às desventuras que atingiam os infelizes fora dela. Samuel foi muito sensível em parar de cortar o cabelo deixando que por fim ela se pôs aos prantos. 

— Meu Deus, isso é doentio — Angel disse. 

— Feliz agora, Angel? — Eu corri para abraçar a menina enquanto fuzilava Angel com meu olhar. — Rachel acalme-se, você não fez nada de errado. Qualquer um teria feito o mesmo na sua situação.  

— Olha, você pode virar uma lenda! — disse Samuel tentando animá-la. 

— É! Você nunca ouviu falar de uma lenda ou um mito? — reforcei. 

— Nunca... — O fluxo de lágrimas era o mesmo, mas já soluçava bem menos  

— A minha lenda favorita é o Carl “Dead Eye” McCoin o pistoleiro mais preciso das terras arrasadas, dizem que ele enfrentou 15 homens fortemente armados numa noite de chuva e matou todos com tiros na cabeça um a um, quando chegaram lá descobriram que nenhum homem tinha gasto uma bala sequer das suas armas e um atirador de elite que estava a 800 metros dali levou um tiro através da mira telescópica — contou Angel e logo suspirou sonhando com aquela história estupida que eu nunca comprei por nenhum segundo, até porque eu sabia que essa era impossível acertar alguém através de uma mira telescópica, pois as lentes desviam a bala. Sim, eu tente. — Imagina, que homem. — esse comentário só me fez revirar os olhos com desgosto.  

— Wow... — ela suspirou impressionada, com olhos vermelhos e face molhada, mas sem mais lágrimas. 

— Piff... Esse ai não teria nem chance contra o Katsushiro Kambei. Ele foi treinado por um ancião que o ensinou a arte do combate samurai que exigiu que ele mudasse de nome e esquecesse sua vida antiga incluindo sua família e ele o fez. No último dia de treinamento ele deveria lutar contra todos os outros aprendizes ao mesmo tempo e vencer, ele não só venceu como matou todos, depois desafiou o mestre e o matou também. Agora vaga pelas terras arrasadas procurando um oponente a sua altura. Dizem que uma vez ele se viu cercado por doze homens no meio do nada, então ele partiu as balas ao meio com sua espada matando dois a dois e nos dois últimos ele partiu um ao meio e cortou o rifle do outro em fatias nas mãos dele, junto com as mãos — disse Samuel voltando a cortar o cabelo. Esse era tão se não mais fantasioso que o primeiro o que me leva a pensar no que esses médicos tinham na cabeça para pensar que armas eram feitas de papel. Não que eu pudesse esperar algum bom senso de alguém que nunca cruzou a muralha. 

— Caramba... — Ela estava ainda mais impressionada. 

— Bem... eu sempre tive uma queda pela Amy “A Açougueira” Sawyer. Diz a lenda que as balas desviam dela de medo, é impossível escapar dela em lugares escuros porque ela faz parte da escuridão, os animais, até o mais temível, desviam do caminho dela, ela usa qualquer coisa com lâmina para matar, mas sua arma favorita é a motosserra, dizem que o único jeito de matá-la é cortando sua cabeça fora e que, quando o Império do Norte, tentou fazer uma limpa nas lendas que não o servissem, ela assassinou 4 batalhões de 500 homens deixando a ossada de um deles em um dos portões da capital e a carne deles no portão oposto — disse um dos enfermeiros próximos. Bem, todo mundo sabia que a Açougueira era basicamente a ameaça padrão de mães cujos filhos eram bagunceiros. Quantas vezes eu já não ouvi: “A Açougueira vai te pegar se você não se comportar”. Eu nunca acreditei, mas ainda corro pelas vielas escuras, por que vai que ela tá lá me esperando, né? 

— Meu deus! — Os olhos dela brilharam. 

— Eu sempre gostei da Kimber “A Leoa”. Ela uma vez destruiu um comboio de carros de guerra com seis carros, oito motos e dois caminhões de guerra sozinha. Dizem também que ela enfrentou um gorilão alfa, desviou uma bala, derrubou um helicóptero em pleno voo e depois pulou para outro helicóptero e roubou-o em voo tudo isso com as próprias mãos e ainda por cima tem umas frases de efeito muito legais — eu contei — Ela era meu ídolo, quando tinha a sua idade. — Na realidade eu sabia que a lenda dela era muito exagerada, mas tinha convicção de que ela existia.  

— Imagina, eu já até ouço Rachel “Libre”, a nova lenda do pedaço! — disse Samuel com tom épico finalizando o corte de Rachel que agora tinha um cabelo decente. 

— Eu gostei! Agora tenho um sobrenome — Rachel sorriu. Nós também sorrimos, mas escondendo nossa perplexidade. 

Rachel ria como se fosse outra pessoa, alguém que não tinha passado por tudo aquilo que ela há pouco contara. Nossa! Essa menina já passou por muita desgraça na vida e continua sendo uma criança boa e simpática, como isso é possível? A maioria das pessoas teria enlouquecido, ficariam traumatizadas ou coisa do tipo, mas ela não... Ela simplesmente conseguiu passar por cima de tudo para rir como a criança que é! Ontem ela disse que eu era uma mulher forte, mas como eu posso ter esse título sabendo o que ela fez e superou? Acho que ela só queria alguém em quem se espelhar... Bem... Ela ganhou meu respeito.


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