Muito Além de Mim escrita por Mi Freire


Capítulo 21
Sem esperanças.




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Os dias eram longos e todos iguais. As pessoas até que se esforçavam para me tirar daquele buraco, mas o problema era eu e não elas. Eu só queria ficar ali e me amarrar com o máximo de forças as coisas que ainda me ligavam ao Andrew naquele quarto. Eu tinha medo de que se saísse dali por algum momento, quando voltasse eu perderia todas essas conexões e sensação que me mantinha viva e reconfortada.

Eu passava o tempo todo deitada e de olhos bem abertos, atenta a tudo. Tentando de alguma forma absorver todos os detalhes a minha volta, com receio de que tinha perdido algo muito importante e que me ajudaria nesse processo de luto. Eu mal comia, mal me levantava, nem mesmo para ir ao banheiro. Só dormia quando os olhos e corpo não aguentavam mais. Só que esse sono não durava muito, pois eu tinha criado o péssimo habito de acordar subitamente assustada, por conta dos terríveis pesadelos que assombravam a minha mente.

Eu não sei quando esses pesadelos começaram, mas de repente eles estavam lá, me roubando as poucas horas de sono que eu tinha. E alguns desses pesadelos eram terrivelmente fortes e cruéis comigo. Eu acordava assustada, suada, com o corpo tremulo. As vezes não sabia reconhecer o lugar onde eu estava e nem a pessoa que eu era. Outras vezes as pessoas vinham ver o que estava acontecendo comigo, porque eu gritava muito e me contorcia inteira na cama.

Era perturbador.

Eu já não dormia muito, agora eu evitava ao máximo. Acontece que o corpo não aguenta tanto quando eu gostaria e eu acabava pegando no sono sem nem perceber. Mas eu só queria ficar acordada, vendo a luz do dia entrar no quarto pela janela e o céu escurecer com a chegada da noite. Eu só queria que os dias passassem logo e essa dor fosse embora, junto com os pesadelos e a terrível sensação de angustia.

Do lado de fora daquele quarto, as pessoas continuavam vivendo suas vidas normalmente. Célia parecia passar boa parte do seu dia cuidando de suas flores, ela travava as flores com suas verdadeira filhas. Catarina cuidava da casa e da cozinha. Isabeli saia para o colégio pela manhã e só voltava no meio da tarde. Max... Bom, eu ainda não sabia muito sobre ele. Eu mal podia ouvi-lo. Ele era silencioso. Não sei o que fazia de sua vida e se passava muito tempo em casa.

Eu quase não sabia nada sobre as pessoas que eu estava morando agora.

Em certo momento daquele dia eu ouvi o barulho de um carro se aproximar da casa. Nem se quer me dei o trabalho de ver pela janela, eu só escutei, como fazia com tudo ultimamente. Deveria ser a Célia, Max ou Catarina. Talvez até um visitante, um vizinho. Mas então, eu logo ouvi aquela voz. E eu soube que Eli estava de volta em minha vida.

Não era um bom momento, mas o que eu poderia fazer? Manda-lo embora depois de ele ter interrompido sua volta ao mundo só minha causa? Seria crueldade da minha parte.

— Ela está lá em cima. No quarto dele. – Ouvi Célia dizer, provavelmente da sala lá em baixo. Onde eles estavam.

— E como ela está? – Perguntou, Eli.

— Muito pior do que antes. Ela não sai daquele quarto para nada, nem mesmo para ir ao banheiro ou esticar as pernas. Ela não come também, quase não toca no que levamos para ela comer no quarto. Só fica lá deitada, olhando para o nada. E tem tido pesadelos quando dorme. Ela grita muito...

— Minha nossa! E eu que pensei que chegaria aqui e veria com meus próprios olhos uma nova versão melhorada da minha melhor amiga. Esse lugar é lindo! Como ela pode não se dar conta disso? De que ainda está viva e precisa viver isso.

— Não sabemos mais o que fazer. Estamos dando tempo e espaço para ela, mas do jeito que as coisas estão... Ela pode acabar adoecendo de tendo que ser internada num hospital.

Só de ouvir a palavra hospital meu corpo gelou.

— Eu sou muito grato pelo que a senhora está fazendo por ela, Dona Célia. Sem você eu não sei o que seria de nós. Obrigado, viu? Bom, agora eu vou lá ver ela um pouco.

— Fique à vontade, querido. O quarto é a segunda porta do corredor, bem próximo da escada. Não tem erro.

— Obrigado.

Ouvi então seus passos se aproximando cada vez mais, em seguida uma batidinha de leve na porta e ele entrou.

— Nina... Está dormindo?

— Não... Entra.

Ele me deu um beijinho na cabeça, sentou-se próximo a mim na cama e passou a mão no meu braço nu.

— Nina... Eu estava com saudade. Você não vai nem se sentar um pouco para me dar um abraço? Quanta ingratidão.

— Me desculpe. – Fiz um esforço, sentei-me e o abracei. — Eu também senti a sua falta.

— Minha nossa! Credo... Como você está magra. Dá para sentir seus ossos espetando minha pele. E olha só para você... Está um lixo e fedida. Me desculpe falar... Mas você está péssima. Não acredito que você parou de tomar banho de novo.

— Ei, não me julgue. Eu tomei banho essa semana!

— Uma vez na semana? Meu Deus! Que Horror!

— Então você veio aqui só para isso? – Voltei a me deitar. — Recado dado. Pode ir embora agora. Muito obrigada.

— Sinceramente – Ele bufou. — Não sei o que faço com você. Minha vontade é de te puxar pelos cabelos e te colocar a força debaixo de um chuveiro para um banho forçado ou então amarrar você numa cadeira e colocar comida na sua boca.

Respirei fundo.

— Eu vou dar um jeito nisso logo, logo. Pode esperar. – Ele se levantou. — Eu volto mais tarde.

Ele se foi.

Eli realmente voltou, muitas e muitas vezes por dia. Ele não chegou a realmente me arrastar pelos cabelos até o banheiro, mas ele me obrigou a sentar, calçar os chinelos e ir ao banheiro ao menos jogar uma água no rosto e escovar os dentes. Depois ele trouxe o que comer para mim e para ele, disse que não sairia dali enquanto eu não comesse tudo que estava no prato, que Catarina havia preparado com tanto gosto.

— Ela é uma graça. Uma moça incrível! E tem mãos de fadas. Além de ser linda, admito. E a sua filhinha, Isabeli, ela é um anjinho. Muito comunicativa e inteligente. Me fez brincar de Barbie com ela, acredita? Célia é uma deusa. A melhor mãe que alguém poderia ter. O tal Max... Bom, eu quase não vi ele desde que cheguei... Mas meu Deus, que genética é essa, hein? Dona Célia caprichou na hora de fazer os filhos.

— Pois é. Pena que um deles morreu.

Sim, fui amarga, mas só porque ele estava sendo muito duro comigo.

— E todos nós sentimos muito por isso. Mas olha só para ela, firme e forte, mesmo após ter perdido um pedaço de seu próprio coração. Ela continua viva e seguindo em frente. Muito guerreira. É de se admirar. Você deveria pegar isso como exemplo.

— Eu não vou nem discutir isso com você. – Olhei feio para ele. — Você não faz ideia do que estou passando, então não ouse me julgar por isso. Mas enfim... Mudando de assunto. Porque o Fernando não veio?

— Ele optou por ir visitar a família e preparar o terreno antes de me apresentar a eles. Você sabe como eles são... Quase enfartaram quando souberam que ele gostava de garotos. Mas ele mandou um beijão para você e disse que está torcendo muito pela sua recuperação. Todos nós estamos.

Permaneci calada durante o resto do tempo, enquanto ele tagarelava sem parar sobre diversas coisas e assuntos.

Já era bem tarde quando ele saiu do quarto, levando nossos pratos vazios. Ele disse que iria dormir e se eu precisasse dele, poderia procura-lo no quarto no final do corredor. O mesmo quarto que eu estive dias atrás.

Eli era um pé no saco, mas era de se admirar o esforço que ele estava fazendo por mim. Eu certamente teria feito o mesmo por ele, caso a situação fosse inversa. Ele me incentivava a comer e usar o banheiro de vez em quando. Parecia um pai que nunca tive. Ele também falava muito, mesmo que eu não estivesse tanto afim de conversar.

Quando eu acordava a casa inteira no meio da noite por causa dos meus pesadelos, ele vinha correndo até mim e deitava-se comigo e permanecíamos assim, juntos, até eu me acalmar e me sentir melhor. Aos mesmo tempo em que ele era um pai, era um irmão e um amigo fiel e companheiro. 

**

Numa certa noite, dessas em que eu lutava contra mim mesma para não pegar no sono, ouvi uma movimentação estranha no corredor. Mas já era muito tarde e fazia um bom tempo em que todos já tinham ido se recolher.

Esperei que não fosse nada de mais, até que eu ouvi barulho de beijos. Alguém estava se pegando com outra pessoa no corredor. Imaginei que só poderia ser o tal Max e a Catarina, sua esposa. Eles tinham todo o direito de serem felizes, certo? Resolvi então ignorar. Mas não foi tão fácil assim, porque mesmo após eles baterem a porta e entrarem em um dos quartos, pude ouvir o rangido da cama durante longas horas.

Eles nunca se cansavam, não?

Eu ainda estava bem acordada e atenta quando ouvi uma das portas se abrir, mais barulho de beijos, alguns sussurros e então passos descendo a escada. Por fim, a porta principal lá em baixo abrindo e se fechando. Ao que parecia, alguém estava indo embora. Mas como poderia? Eles não eram casados? Ou será que um deles tinha um compromisso as três da madrugada? Ou será que... Max estava tendo um caso?

Já era de manhã quando Catarina entrou no meu quarto com uma bandeja.

Ela parecia feliz e animada.

— Seu amigo foi a cidade com a Tia Célia, então eu fiquei encarregada de trazer seu café da manhã. Espero que não se importe. – Ela colocou a bandeja sobre a escrivaninha. — Eu fiz ovos e torradas e preparei também um suco de uva.

— Ah, obrigada.

Olhei bem para ela, de maneira mais discreta possível e tentei imaginar se o motivo de sua felicidade essa manhã, mesmo sendo tão cedo, era porque sua noite havia sido incrivelmente selvagem. Mas não era da minha conta e além do mais, ela estava sempre com essa carinha de contente.

— Você me parece bem nova... Quantos anos sua filha, Isabeli, tem?

— Ah, bom – Era surpresa em seu rosto por eu ter puxado um pouco de assunto? — Eu a tive muito nova. Eu só tinha 15 anos na época. E hoje, ela já tem sete anos. O tempo voa.

— Ela é uma garotinha muito impressionante, parece se dar bem com todo mundo. Muito diferente do pai dela. Na verdade, ela se parece muito com você, no jeito e fisicamente.

—  Oh, obrigada. É o que todos dizem... Mas, como é que você sabe sobre o pai dela? Eu nunca mencionei...

— O pai dela não é o Max?

— Meu Deus! Não! – Ela não pareceu ofendida e deu muita risada. — Max não é o pai. O pai de Isabeli é um homem muito mais velho... Na época ele era casado, mas achou que essa informação não era importante. Nós tivemos um breve romance, coisa de semanas. Eu era nova, muito boba e iludida. Achei que tinha encontrado o amor da minha vida. Mas aí eu engravidei, ele ficou uma fera e me abandonou.

— Sério? Não acredito! Eu pensei que você e o Max... Oh, minha nossa! Eu sinto muito por isso.

— Tudo bem. – Ela sorriu. — Somos muito próximos mesmo, desde pequenos. Mas somos praticamente irmãos.

— Desculpe por ter tirado conclusões precipitadas...

— Sem problemas... Bom, preciso começar a pensar nos preparativos para o almoço. Espere que coma seu café da manhã. – Ela piscou e saiu, deixando me sozinha outra vez.

Enquanto comia as torradas, pensei então na noite passada e concluí que se não era Catarina com Max... Então quem era? A namorada dele? E porque eu nunca a vi aqui? Vai ver é porque eu nunca saio do quarto, não é mesmo? Bom, pelo visto eu ainda tenho muito a descobrir por aqui.

Eli chegou mais tarde e trouxe tudo que havia comprado para me mostrar. Ele até tinha comprado um novo vestidinho para mim que segundo ele ficaria perfeito, mas primeiro eu teria que tomar um banho e dar uma boa lavada no cabelo. Caso contrário, ele daria o vestido a Catarina que era muito mais limpinha e legal que eu.

Chantagista!

Essa noite foi muito parecida com a anterior. Foram todos dormir, passou-se algum tempo e ouvi um barulho no corredor. Max e sua parceira estavam atacando novamente. Eles tinham muito fogo ao que parecia. Ela só ia embora três horas depois, foragida pela calada da noite. Isso despertou uma certa curiosidade em mim. Quem era ela, afinal? E porque tinha sempre que fugir antes que todos acordassem?

Pensei em ser maldosa e sair do quarto no exato momento em que eles se despediam no corredor. Eu queria ver a carinha de surpresa deles e como reagiriam. Mas isso não tinha nada a ver comigo. Eu não era esse tipo de pessoa.

Na quarta noite consecutiva, esperei somente ela ir embora para ir ao banheiro. Eu estava muito apertada. Não conseguia mais me segurar. Então tive que ir rapidamente.

Usei o banheiro calmamente, lavei as mãos e saí, mas no corredor escuro acabei trombando com algo ou com alguém.

Abri a boca para gritar, quando de repente taparam a minha boca com as mãos.

— Shhhh... Não grite. Sou eu.

— Max! Ah, meu Deus! Você me assustou!

Ele se colocou diante de mim quando teve a certeza de que eu não ia gritar e acordar a todos da casa.

— O que você faz aqui? – Perguntou ele, bravo.

— Eu estava usando o banheiro! E você, estava me espionando, é?

— Claro que não! Eu ia tomar um banho.

E foi então que percebi que ele estava só com uma toalha em volta da cintura e o resto todo estava nu e exposto.

— Volte para o seu quarto e vá dormir.

— Não fale comigo nesse tom! E como você espera que eu consiga dormir com você e sua parceira fazendo todo esse barulho enquanto transam sem parar?

Opa, acabei deixando escapar. E pelo visto, ele não gostou do que acabou de ouvir.

— Isso não é da sua conta!

— Não é mesmo, mas pelo amor de Deus, façam menos barulho ou vão acabar acordando a casa inteira qualquer dia desses.

— Certo. Recado dado. Agora me deixe passar.

Nem tive tempo de sair do caminho e ele passou por mim, quase arrancando meu ombro e levando junto.

Esse Max é muito pior do que eu imaginava... Eu mal o conheço e já não gosto nenhum pouco dele.

Como Andrew conseguia encontrar tantos motivos para admira-lo? O cara é um estupido!

**

Apesar da insistência de Eli para eu sair do quarto e descer para conhecer melhor a casa, as pessoas, as redondezas, ir com ele conhecer a cidade... Eu continuei no quarto.

— Ela parece muito melhor. Tem comido e tomado banho, pelo menos. Mas não quer sair de lá por nada no mundo.

Ouvi ele dizer isso a alguém, provavelmente a Célia ou Catarina.

— Deveríamos dar um pouco mais de tempo a ela. – Comentou Catarina.

— Não! Isso não vai funcionar. Eu estou indo embora em breve e não posso partir e deixa-la nessa mesma situação.

— Nós continuaremos aqui, cuidando dela. – Disse Célia.

— Sim, eu sei. Vocês são uns amores, mas não são firmes o bastante com ela. A Nina as vezes é uma criançona e precisa que as pessoas sejam mais duras e cruéis com ela.

— Coitadinha...

— Coitadinha nada. Eu concordo com ele. – Max disse e eu nem sabia que ele estava presente. — Vocês estão sendo boazinhas demais com ela. No começo, era compreensível. Mas o tempo está passando e quase nada mudou. Ela precisa sair daquele quarto pra pelo menos respirar um pouco de ar.

— Exatamente! – Eli concordou.

Houve então um breve silencioso.

Você! Quero que você me ajude nessa.

— Eu? – Max perguntou.  — Mas porque eu?

— Você é durão e eu sei que vai conseguir fazê-la mudar de ideia.

— Não sei, não. Acho que não sou a pessoa mais qualificada para isso.

— Por favor. – Eli implorou. — Você precisa pelo menos tentar. Pelo seu irmão! Ele gostaria disso, não gostaria?

Pegou pesado, caro amigo. Tocar na ferida aberta nunca é legal.

— Olha, eu não vou garantir nada. Mas vou pensar em algo.

— Muito obrigado! Estou contanto com você.

O que o Eliezer tem na cabeça ao pedir ajuda do Max, logo do Max, a única pessoa com quem eu não fui com a cara? Certamente, ele também não foi com a minha pelo jeito como me olha. Ele nem me conhece! O Eli deve estar mesmo desesperado. Coitado. Mas o que as pessoas esperam que eu faça? Acorde de repente numa bela manhã de sol, pule da cama e grite bem alto o quanto estou pronta para seguir em frente? Não é assim que funciona. Na verdade, eu nem sei como isso tem que funcionar. Se é que existe alguma regra. O que eu sei é que eu não quero. Só não quero. Não sem o Andrew.  


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