O QUE EU ME TORNEI DEPOIS DE VOCÊ escrita por Serena Bin


Capítulo 9
Capítulo 10 - Peace Park




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Entendo que a morte seja um rito de passagem. E eu, particularmente jamais tive medo de morrer, contudo, não posso negar que naquela época, quando eu ainda era uma bomba relógio, pensava em minha partida todos os dias, mas não em mim, e sim em como os que eu amo reagiriam a ela.

Agora, vendo a expressão de desespero e o choro inconsolável das filhas de Maddie frente à ausência permanente da mãe, consigo ter uma noção de como minha família se sentiria. Quando perdi meu pai, me encontrei num estado desolado semelhante. Ainda dói relembrar a sensação.

A morte não diz respeito apenas aos que partem. Ela também marca aqueles que ficam.

Passo a maior parte da madrugada sentada num banco no lado externo do hospital. Não acho que tenho o direito de incomodar as filhas de Maddie, mas ao mesmo não me sentiria confortável em simplesmente sair sem dizer algo a elas.

Andy Robbins se recusa a sair do meu lado. Durante toda a noite, ouço sua respiração serena que atua como uma espécie de alento para meu coração acelerado.

Em algum momento da vigília, cedo ao cansaço e caio em um sono leve. Acordo horas depois com os canto despreocupado dos pássaros empoleirados nos fios de eletricidade.

Contra a luz do sol, suas diminutas silhuetas parecem notas musicais da canção triste que embala esse dia.

— Você acordou.

Andy Robbins aparece ao meu lado.

— Quando eu adormeci? - pergunto.

— Um pouco depois das quatro da manhã. Agora são quase oito.

Respiro fundo e me inclino para levantar. Uma jaqueta de couro que estava sobre mim cai no chão.

Andy sorri.

— Fez frio durante a madrugada. - ele diz - Como se sente?

— Não sei. - respondo estendendo a jaqueta de volta para ele. - Já levaram o corpo dela?

— Vi o carro de uma funerária mais cedo, mas não sei se era o dela.

Andy faz uma pausa, depois, pergunta de maneira hesitante.

— Você vai ao funeral?

Eu deveria ir? Afinal, o que eu sou de Maddie para testemunhar o momento em que ela dá adeus às pessoas que ela amou por décadas?

Andy Robbins percebe meu embaraço. 

— Eu imagino o que deve estar se passando em sua mente, - ele diz.- Mas, eu acho que você deveria ir.- Andy faz uma pausa rápida. - Maddie gostava de você.

Depois, ele me entrega um pedacinho de papel com um endereço e conclui: 

— A menos que você não queira.

Meu pai se foi há três anos sem que eu pudesse ter dito adeus a ele.

Na época em que tudo aconteceu, eu estava em uma das piores fases da luta contra a doença, e James não pode permitir que eu deixasse o hospital para acompanhar o velório e o enterro por causa das condições críticas em que eu me encontrava.

Porque eu não reagi bem à proibição, fui sedada.

A lembrança de acordar no dia seguinte ao enterro é a memória afetiva mais dolorosa que eu tenho dos últimos dez anos. Acordar com a certeza de ter perdido a última chance de vê-lo, de tocá-lo e de dizer adeus é uma ferida que não cicatrizou ainda e, acredito eu, jamais cicatrizará.

É relembrando dessa sensação de chance perdida que decido ir me despedir de Maddie. Eu lhe devo isso, porque pelo breve momento em que fizemos parte da vida uma da outra, sinto que fui marcada por ela.

— Meu pai sempre acreditou que as grandes pessoas não precisam de anos de convivência para nos marcar. - digo em voz baixa. - Às vezes, um dia é suficiente.

Andy sorri, depois me acompanha até o local onde será o velório.

***

No lado oeste da cidade de Elizabethtown há uma capela que guarda resquícios de seus tempos antigos, atrás dela, o cemitério se estende pela calma planície que vai além de onde minha vista alcança.

Ao contrário do modelo medonho e triste dos filmes de Hollywood, o Peace Park, com seus salgueiros floridos e túmulos cobertos por rosas brancas transmite exatamente o que o nome sugere. A tranquilidade é complementada pelo sol dourado que atinge o descampado a essa hora do dia e pelas borboletas que cintilam pelos raios solares.

Contrariando o meu pesar, tudo parece irremediavelmente belo esta manhã.

Ainda do lado de fora da capela, consigo ouvir a movimentação dentro do espaço. Timidamente pela porta e me estabeleço num canto ao lado da porta enquanto os familiares e amigos de Maddie depositam todas as suas últimas lamúrias sob o corpo pálido dela.

Clary e Dianne estão juntas ao lado da mãe. Cada uma segurando uma de suas mãos. Eu sinto meu coração apertar ao ver a cena. O modo como cada Clary toca a mão de Maddie em sua bochecha como numa tentativa de captar o máximo de sua presença; depois, Dianne com olhos cheios d'água acariciando os cabelos grisalhos da mãe com carinho. Mas, o que mais me chama atenção é como sua voz mesmo emocionada não perde o tom enquanto ela entoa You are my Sunshine.

Vários familiares se despedem dela enquanto isso.

No final, quando o caixão parece ficar sozinho por alguns minutos, Andy Robbins sugere que eu vá dizer adeus.

Dianne repete os versos da música várias vezes, numa canção eterna.

Silenciosamente me aproximo do caixão e dentro dele, Maddie parece serena apesar da palidez. Não ouso tocá-la. Apenas respiro fundo sentindo a crescente vontade de chorar se abater sobre mim e meu coração parece responder a esse estímulo.

De repente, eu me pego sussurrando um tímido adeus.

Queria poder dizer mais, porém sinto que não é necessário porque eu talvez dissesse algo que não fizesse sentido.

Em vez disso, eu choro ao lembrar das nossas poucas horas juntas. O modo engraçado como nos conhecemos naquele pronto socorro e de como ela me contou sua emocionante história de vida, mas me lembrando principalmente de suas palavras de motivação na noite anterior.

Eu nunca dei adeus a uma pessoa que conheci. Maddie é a primeira de quem me despeço cara a cara. E, sentindo a tristeza pungente que me envolve agora, posso imaginar como essa dor se multiplicaria vezes dez se eu tivesse me despedido de meu pai.

Talvez aquilo tivesse sido demais para mim.

Dianne continua cantando. Embalando minhas emoções ao som de Johnny Cash.

— Adeus, Maddie. - sussurro novamente. - Foi um prazer imenso conhecê-la.

Andy Robbins permanece solidário ao meu lado.

Eu não me esqueci do último desejo de Maddie, o de ter suas cinzas lançadas sob o deserto do Arizona, no entanto, eu não faço a mínima ideia se devo mencioná-lo nesse momento, muito menos se suas filhas aceitarão.

Então, me despeço de Dianne com um abraço sincero, depois, vou ao encontro de Clary.

Ela que é parece ser a mais restritiva das irmãs aceita meu abraço com simpatia.

— Eu sinto muito. - susurro.

— Obrigada por vir. - ela responde. - Mamãe teria ficado feliz.

Antes de me soltar, Clary diz:

— Dianne e eu queremos pedir um favor.

Dianne para de cantar e me surpreende.

— Senhorita McHollen, minha tinha um último desejo. - Dianne caminha até mim. - Ter suas cinzas espalhadas sobre o deserto do Arizona.

— Eu me lembro.

— Minha mãe havia dito que a senhorita estaria indo para esse mesmo lugar, estou certa?

— Sim. - respondo.

— Eu sei que vai parecer inapropriado, - Clary diz com voz frágil e insegura - mas você poderia nos ajudar a cumprir essa última vontade dela?

O que eu deveria responder? A Reese de antes talvez negasse, mas então me lembro sob quais circunstâncias estou indo ao deserto do Arizona, e de repente me sinto incapaz de negá-lo.

Eu olho para Maddie e respondo por fim.

— Sim.

Dianne e Clary sorriem tristemente e decido deixá-las com a mãe pelo tempo que lhes resta.

No pátio do lado de fora, Andy e eu caminhamos na direção de um salgueiro.

— Fico feliz que tenha aceitado o pedido da Maddie. - Andy diz.

— Não poderia negar. - respondo. - Acho que não conseguiria.

— Isso quer dizer que você vai retomar sua viagem em breve. - tenho a impressão de ouvir a voz de Andy Robbins de repente adquirir um sutil tom de frustração. - Quando pretende partir?

Sem olhar para ele, respondo:

— Minha pickup já está liberada e eu estou totalmente recuperada do acidente. - faço uma pausa rápida. - Acho que devo retomar a viagem assim que as cinzas de Maddie forem liberadas.

Percebo um sorriso desapontado vindo de Andy Robbins, mas não me atento a descobrir o porquê dele.

***

Pouco depois das onze da manhã, Clary e Dianne me entregam uma pequena urna de porcelana onde metade das cinzas de Maddie estão.

— Decidimos reservar a outra metade para que tenhamos algo dela conosco também. - Clary explica. - Mas, essa a metade mais importante está com você. Minha mãe se sentirá feliz.

Dianne conclui:

— Eu sei que pode parecer uma ideia sem cabimento depositar nossa confiança em alguém que conhecemos há poucos dias, mas Clary e eu debatemos muito sobre isso. E, para ser honesta, quando olho para você sinto que minha mãe estará em boas mãos. - Dianne toca delicadamente a urna de porcelana em minhas mãos. - Apesar do que isso significa para ela, nem eu ou Clary temos estruturas para deixá-la ir novamente.

— Eu compreendo. - respondo.

— Minha mãe, - Clary diz calmamente. - sempre soube fazer amizades. Ela gostava de viajar com amigos.

Olho para a urna em minhas mãos, depois para as irmãs.

— Eu prometo cumprir seu último desejo.

Antes que eu me despeça, Clary tira de dentro de sua bolsa um pequeno embrulho de papel dourado.

— Já ia me esquecendo. - Clary diz. - Minha mãe planejava lhe dar isto.

Ela estende o embrulho para mim e eu o aceito.

Na etiqueta, há uma instrução escrita com uma grafia trêmula, provavelmente de Maddie que diz: abra quando for retomar a viagem.

— Obrigada. - agradeço, sorrindo.

Me despeço definitivamente das irmãs naquele momento. Sem muito a dizer, apenas uma agradecendo a outra. No final, Dianne deixa seu telefone para o caso de alguma emergência com a urna, depois, elas seguem juntas para dentro da capela.

Andy Robbins ainda está ao meu lado.

— Então você está pronta para ir. - ele diz.

— Acho que sim. - respondo guardando a urna com cuidado dentro da pickup. - Mas, quero fazer uma ligação e comprar algumas coisas antes.

— Posso te convidar para um almoço de despedida? - Andy pergunta.

— Não acho que eu deva me despedir de mais ninguém por hoje.

— Então... isso significa que você ficará até amanhã ? - ele brinca.

Eu o refuto com um olhar mortífero.

— Não, significa que eu estou recusando seu convite de almoço de despedida.

Andy me encara desapontado.

— Mas, aceito um almoço comum. - concluo, já dentro da pickup. - Naquele mesmo lugar de ontem, pode ser?

Acompanho um sorriso nascer timidamente nos lábios de Andy Robbins ao mesmo tempo que eu sinto vontade de sorrir para ele também.

Depois da refeição, ele me acompanha até uma loja de conveniências e um posto de gasolina.

Uma hora e meia depois, estou pronta para retomar a viagem que sofreu esse desvio emocionante.

Na saída da cidade, estendo minha mão a Andy na expectativa de que nossa despedida seja breve e não tão dolorosa quanto a que tive mais cedo.

— Obrigada por tudo. - digo a ele. - Foi um prazer conhecê-lo, Andy Robbins. Obrigada por me ajudar com o acidente e por estar comigo nesse momento tão triste.

Continuo com minha mão estendida sentindo um estranho nervosismo me tomar. O modo como ele sorri ao aceitar a minha formalidade é de alguma maneira interessante. Parece que ele percebeu minha falta de tato e ligeiro embaraço.

— Senhorita Batman, - ele começa. - essa formalidade toda é medo de que eu peça seu telefone e passe a incomodá-la no futuro?

— Isso nem passou pela minha cabeça. - respondo. - Você é uma boa pessoa. Obrigada.

— Tem certeza que se sente bem?

— Sim.

— Então, eu não vou impedi-la de ir, - ele diz, apertando minha mão de volta. Sinto quando ele passa um pedaço de papel para minha mão durante o gesto. - Mas, se um dia quiser voltar, você terá um conhecido em Elizabethtown. Tenha uma boa viagem, senhorita Batman.

Um sorriso se forma no canto dos lábios dele enquanto ele se afasta em direção a sua motocicleta.

Quando ele coloca o capacete, seu olhar através da viseira me acompanha até que ele tenha que virar para olhar para frente.

No semáforo a frente, de costas para mim, eu o vejo olhar por cima dos ombros e acenar pela última vez.

Sua partida acaba sendo menos dolorosa que a de Maddie, mas ainda sim meu coração se sente abatido.

Abro o bilhete que Andy me entregou minutos antes. A caligrafia caprichada de um professor escreveu um recado:

"Ligue caso se meta em outro acidente. Andy."

Abaixo do recado, um número de telefone, não o dos bombeiros, mas o dele próprio.

Eu por algum motivo sorrio ao ler talvez porque seja a cara de Andy Robbins fazer esse tipo de piada ruim.

Antes de ligar a pickup, guardo o número de telefone na agenda do celular, depois encaro o embrulho que a filha de Maddie me entregou hoje de manhã.

O recadinho ainda está lá. Agito o pacote mas ele não faz barulho, parece ser algo retangular como um livro. Acabo errando por pouco.

O presente de Maddie se revela ser um caderno comum.

— Por que você me deu isso, Maddie?

A resposta está escrita na contracapa do caderno.

"Para que você registre sua jornada em cada detalhe, e tenha do que se lembrar mais tarde. Aproveite a vida, Reese. Com amor, Maddie."

Não consigo me conter e acabo chorando mais uma vez.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler.



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