O QUE EU ME TORNEI DEPOIS DE VOCÊ escrita por Serena Bin


Capítulo 7
Capítulo 8 - Extraordinários


Notas iniciais do capítulo

Estavam com saudades dessa história?
Bem, a espera acabou.
Espero que gostem.



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O vento frio  incide sobre mim durante a viagem de motocicleta, e meus cabelos balançam como a cauda de uma pipa no céu.

Prometi a Andy Robbins que assistiria um ensaio de sua pequena turma de musicistas esta tarde.

Quando chegamos à escola primária onde Robbins ministra suas aulas, um grupo de alunos já está a sua espera no pátio. 

Alguns são adolescentes, mas a grande maioria ainda são crianças e reconheço Tomas Wendell dentre eles. O garoto pequeno e magricela carrega uma grande caixa que suponho ser seu instrumento musical.

Ele sorri imediatamente ao ver Andy se aproximando. Uma garotinha de uns sete ou oito anos acompanhada por uma mulher que deve ser sua mãe, procura a mão de Andy e o saúda com um sorriso.

— Vamos entrando, pessoal. – Andy os convida com alegria.

Ele abre a porta de metal de um galpão que acaba se revelando um pequeno auditório onde as cadeiras não possuem almofadas e nem a iluminação é perfeita.

— A acústica é perfeita. – Andy se antecipa ao notar minha surpresa. – Um bom isolamento acústico é tudo o que precisamos.

Eu sorrio e me encolho em um cantinho qualquer.

Todos os alunos de Andy, um total de doze se acomodam em uma formação circular no centro do palco. Ele dá boas vindas a todos e me apresenta brevemente. Alguns, os que escutam, eu suponho, respondem com um "seja bem vinda", os outros,  sorriem e acenam com a cabeça.

Há apenas uma criança que não esboça qualquer reação. 

Uma menina que suponho ter uns quinze ou dezesseis anos está praticamente deitada em sua cadeira de rodas com cintas que prendem seus braços e pernas. A cabeça dela pende para o lado direito como se estivesse sem forças para sustentá-la sobre o pescoço, no entanto, seus olhos estão totalmente focados em Andy que explica no quadro branco as coordenadas para a aula de hoje.

Eu sento em uma das cadeiras da segunda fileira da platéia observo sua paciência em ensinar para cada aluno as notas de uma canção, depois, cada criança toma seu posto em seu instrumento.

Tomas Wendell se posiona próximo ao piano. O menino está com os pés descalços em uma pequena caixa de areia e à sua frente um tlabet conecta um fio até o cello.

É complicado demais tentar entender como Wendell consegue tocar seu instrumento, mas todas as vezes que ele solta uma nota, a tela do pequeno tablet muda de cor e o tablado de areia parece vibrar.

É isso. Tomas Wendell "escuta" as notas do cello através da vibração da areia sob seus pés e as organiza em uma sequencia musical através do tablet.

Então, repentinamente me lembro de algo:

Você vai se espantar com a capacidade humana de superar obstáculos.

A frase dita por Andy horas atrás agora faz todo o sentido e fico realmente impressionada como a destreza de Tomas Wendell no cello.

Suas mãozinhas ágeis tocam o instrumento com voracidade e extrai dele uma melodia belíssima. Se eu não soubesse que ele é surdo, jamais suspeitaria.

Ouvindo o doce som que sai da pequena orquestra extraordinária de Andy Robbins, reflito comigo mesma.

 Larguei tantas coisas de que gostava após o problema cardíaco que de tanto internalizar que era impossível, desistir de meus sonhos acabou se tornando algo normal para mim.

Por algum motivo me sinto tão miserável de repente, porque minhas desistências não se limitam apenas à minha saúde. Eu desisti de muitas coisas por decepções ou simplesmente medo, mas parando para pensar, foi a insana lista de Alex Riversong quem me devolveu a liberdade de dirigir e me proporcionou a liberdade de voar.

— Está gostando do ensaio? – Andy Robbins aparece ao meu lado, sorrindo.

— Eles são incríveis. – respondo, sem tirar os olhos de Tomas Wendell.

— Você ainda não viu nada. – Andy se senta ao meu lado e sem querer derruba algumas partituras no chão.

Me abaixo para juntá-las.

— É nossa canção original para as estaduais do Concurso da Academia Musical do Tennessee. Se vencermos essa etapa, vamos concorrer as nacionais em Nashville. E você está convidada.

Eu rio e agradeço ao convite.

As melodias escritas nas partituras parecem realmente muito bem pensadas.

— São realmente muito boas. – digo. – Quem as compôs? Você?

Andy faz que não com a cabeça, então ele aponta para a garota adolescente sentada na cadeira de rodas.

Não posso evitar a minha expressão de dúvida e supresa, então eu solto um riso nervos.

— É sério?

Andy ri.

— O nome dela é Elina Diaz, mas ela prefere ser chamada pelo pseudônimo Eva Dolaire. – Andy Robbins faz uma careta. – Coisa de artista. Eva compõe a maior parte das nossas canções originais.– ele então estende para mim uma canção. – Ela também compõe as letras de algumas. 

— São realmente lindas. – respondo, entusiasmada.

Não sei se deveria perguntar, mas minha curiosidade está pedindo para saber como Eva escreve suas canções uma vez que eu não pude nota-la mexendo um músculo sequer.

Andy então me explica que a doença se chama Esclerose Lateral Aminiotrófica, comumente conhecida como ELA. O nome me soa familiar até que Andy menciona que é a mesma enfermidade que o astrofísico britânico Stephen Howking possuía.

— Basicamente a doença paralisou a grande maioria dos músculos da Eva. – Andy diz, baixinho e eu encaro a garota. – Ela ainda possui algum movimento mínimo na mão direita, mas já não se expressa verbalmente.

—E como ela escreve as canções? – pergunto, interessada.

— Um aplicativo de celular a auxilia na comunicação. – Robbins gesticula ao explicar. – Ela digita uma palavra que é falada pelo auto falante do ipad que ela carrega como seu fiel escudeiro. Para escrever canções, o processo é o mesmo.

De repente eu me sinto tão pequena novamente. Volto a ler as canções de Eva Dolaire.

As letras falam sobre amor, auto confiança e principalmente sobre liberdade.

 Vendo sua condição em uma cadeira de rodas e sua perspectiva de futuro, suas palavras no papel ganham ainda mais sentido, porque ela, mesmo tendo inúmeros fatores limitantes ainda assim não pode ser considerada uma prisioneira. Sua mente é tão livre quanto um pássaro voando no céu. Tao livre quanto ela se permite ser.

— Eva é fantástica. – Andy Robbins afirma. – Sabemos que um dia ela não estará mais conosco, porém, suas canções serão eternas. Eles estão acabando a primeira canção. Preciso voltar para o palco.

O ensaio transcorre pelos próximos quarenta minutos, até que na ultima canção da tarde, a garotinha que vi acompanhada pela mãe hoje mais cedo sobe ao palco. Ela é guiada por Andy.

A diminuta criatura se ajeita ao piano, mas suas pernas curtas mal alcançam os pedais. Suas mãozinhas percorrem a extensão das teclas reconhecendo a posição de cada uma delas.

Percebo então que as partituras estão comigo e eu as ofereço a Andy para que a pianista possa te-las como guia, mas caio em mim quando Robbins tapa os próprios olhos com as mãos.

A pianista de que não alcança os pedais do piano é cega, mas sua habilidade é fenomenal. Sem errar uma nota sequer ela e Tomas Wendel fazem um dueto memorável da música Shallow.

As duas crianças tocam com tanto sentimento que sinto uma imensa vontade de chorar e depois me recolher a minha insignificância. Porque de todos nessa sala, eu sou a única que não possuo nem um tipo de limitação, mas ainda assim tenho a ousadia de não viver a vida de maneira que valha a pena. 

Eu nunca parei para ouvir o som dos pássaros pela manhã e precisou Tomas Wendell, um garoto surdo me mostrar o quanto eu sou privilegiada por poder ouvir a bela melodia que ele toca nesse momento.

Eu nunca parei para admirar a beleza do por-do-sol, mas a pequena pianista me faz sentir pequena e ingrata ao não valorizar as oportunidades de vislumbrar as cores do mundo.

Desde que ganhei um novo coração a partir de Alex Riversong, tenho encontrado maneiras de me prender. De me engessar por medo de viver. Eu me auto encarcero, enquanto isso Eva Dolaire me mostra o que é estar em uma prisão mas não ser uma prisioneira.

Nem um deles aqui é vítima de coisa alguma. São vencedores que usaram suas limitações para extrair a melhor vida que poderiam ter.

E isso me faz pensar pela primeira vez que não somos o que a vida nos tornou. Somos o que nós escolhemos nos tornar.

Quando o ensaio finalmente termina, Andy se despede de seus pequenos e extraordinários músicos.

Terminamos o dia na oficina mecânica para averiguar o estado de minha pickup. Quando o mecânico responsável diz que o carro já pode ser retirado, dou um suspiro de alívio.

Por mais que minha experiencia em Elizabethtown tenha sido muito boa e me ensinado coisas as quais eu deveria aprender, sinto que está na hora de seguir com minha viajem.

Mas, antes, decido visitar a velha Maddie no hospital. Talvez ela já tenha até mesmo tido alta, e quem sabe se vou realmente encontrá-la, porém eu me sinto tentada a vê-la novamente porque algo em mim se recusa a partir sem dizer adeus.

— Você vem comigo, senhor Robbins? – pergunto a ele, de dentro da pickup.

— Quem diria que a menina Batman de Lousville gostaria de companhia. – ele responde, rindo.

— Eu retiro o convite então.

— Ok. – Andy faz uma careta. – Eu a acompanho. Estou de moto então nos vemos lá.

Nunca pensei que fosse me sentir tão feliz em estar de volta ao meu carro. Tudo parece estar exatamente como deixei, mas involuntariamente, a primeira coisa que faço é enfiar a mão no console e sentir a carta de Alex Riversong.

Eu a apanho e a leio pela centésima vez, mas agora ela já não parece tão impossível.

— Quem de vocês armou isso tudo? – pergunto olhando para o céu estrelado sobre mim. – Universo? Alex? Deus?

Eu rio porque dessa vez eu não me sinto irritada como quando cheguei a cidade. 

Me sinto grata.

No rádio, a playlist de Lexa toca Brand New Eyes da Bea Miller, e eu me lembro de ter ouvido essa canção em algum filme.  Acho que foi em Wonder. 

É como se eu tivesse novos olhos | E finalmente posso ver | O que sempre esteve| Bem ali na minha frente|E com esses novos olhos|Eu pegarei tudo|E finalmente vou me ver

Eu finalmente quero me ver. 

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler. Sabe, se você chegou até aqui, que tal deixar um review? Nossa, você não sabe o quando me importo com sua opinião sobre a história, então...Vamos lá. É rapidinho e de graça.

Beijocas



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