Depois da Tempestade escrita por DrixySB


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Parte 1 - Tormenta



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/697932/chapter/1

Ela estava frustrada.

O homem à sua frente não tinha culpa de nada. Ele só estava fazendo seu trabalho e, sim, era um excelente profissional. Mas o fato é que ela já se sentia bem. Já estava recuperada dos traumas e dos horrores dos últimos meses. A única coisa que ainda lhe incomodava era o inevitável sentimento de culpa. Mas com isso, ela sabia que poderia lidar. Na verdade, podia se dizer que ela se sentia até confortável culpando a si mesma... Era melhor conviver com isso do que negar.

Ela não queria parecer tão desdenhosa e grosseira, mas diante das telas de Rorschach que o doutor Samson lhe apresentava, era inevitável cruzar os braços e revirar os olhos.

— Por quanto tempo mais vamos continuar fazendo isso, doutor Samson?

— Até você estar totalmente recuperada, doutora Simmons.

Jemma lançou um olhar surpreso a ele diante de seu tom zombeteiro que muito se distanciava do traquejo profissional de outrora. Ele devolveu com um meio sorriso ardiloso.

Abandonando por um momento a postura de psiquiatra, deixando de lado as telas, e descansando os antebraços nos joelhos, Samson se aproximou de Jemma.

— Olhe, eu estou nisso tempo suficiente para saber que, muitas vezes, os pacientes apresentam todos os indícios de que estão recuperados, mas no fundo não estão.

— Só que eu me sinto...

Ele levantou um dedo em riste.

— Jemma, você negou seu stress pós-traumático no começo. Demorou a admiti-lo, mas admiro que, finalmente, o tenha feito. Que tenha concordado em procurar ajudar quando seus colegas se preocuparam com seus pesadelos. Passou por situações difíceis. Psicológica e fisicamente. E é impressionante sua superação. Você realmente está melhor, mas é necessário ter segurança, garantia de que isso esteja realmente no passado, de que não lhe volte a atormentar.

Ela o encarou profundamente e mordeu a parte interna dos lábios. Ele já a havia analisado suficientemente bem em suas sessões para saber que aquilo indicava que ela concordava com ele, embora não expressasse verbalmente.

O que mais Jemma temia era que, futuramente, esse passado viesse assombrá-la de novo. Mas o fato era que ela já se sentia tão bem e disposta a seguir em frente que esse receio era mínimo frente à sua vontade de superar.

— Eu entendo, doutor Samson. Mas não acredito que o teste de Rorschach seja o meio mais eficiente para indicar se minha saúde mental está 100% ou não.

Ele sorriu novamente, com mais simpatia desta vez.

— Sua eficiência já foi amplamente comprovada.

Jemma jamais havia acreditado na eficácia desse método. Mas não podia negar que em suas primeiras sessões com o Doutor Samson (logo após ela desmerecer o método), as imagens que ela havia enxergado (frutos de sua imaginação lhe pregando uma peça) havia lhe atormentado a ponto de fazê-la levar as mãos à cabeça e lacrimejar. Ela ficara furiosa consigo mesma. Anos zombando de um método que agora parecia estar exercendo sua vingança contra ela por duvidar de seu efeito.

Tudo o que ela conseguia ver eram imagens do Inumano que ela vislumbrou em Maveth, do deserto inóspito no qual viveu durante seis meses que mais pareceram uma vida inteira, daquela criatura matando Will...

Não. Pensar em Will ainda trazia à tona um sentimento horrível de culpa, mesmo que houvesse diminuído consideravelmente em comparação ao momento do retorno de Fitz e Coulson de Maveth meses atrás.

Entretanto, já havia se conformado com a ideia de que havia uma parte sua que jamais iria se perdoar por tê-lo permitido que se sacrificasse por ela. Depois que seus sentimentos desembaralharam-se e ela pode compreender melhor o que realmente sentia, tudo o que restou foi essa culpa. E o desejo de que ele tivesse a oportunidade de voltar para a Terra como ela havia voltado. Não era justo que ele jamais houvesse conseguido regressar depois de 14 anos. Ela sentia que ele merecia muito mais do que ela...

— Jemma, você ficou distante de repente – ele a avaliou cautelosamente antes de prosseguir – Quer falar sobre o que está pensando?

Ela suspirou, derrotada. Era um tópico sobre o qual ela precisava conversar. Naquele momento, tornou-se inevitável tocar no assunto.

— É só que... – Jemma fez uma pausa, engolindo em seco – toda essa culpa que eu sinto... Bem, que eu ainda sinto... Isso é devastador...

— Compreendo. Por que exatamente sente culpa, Jemma?

No olhar que ela lançou ao doutor havia um misto de descrença com cinismo.

— Sério que está me perguntando isso.

— Sim, é sério – ele a desafiou.

— Não lhe parece óbvio? – ela não conseguiu evitar altear um pouco a voz.

— Sente culpa pelo fato de seus amigos, as pessoas que ama, arriscarem constantemente a vida para te salvar ou para mantê-la segura. Mas onde exatamente está situada essa culpa, doutora Simmons?

Ela esfregou as mãos uma na outra, sem saber o que dizer e incerta de que havia compreendido aonde o doutor queria chegar.

— Eu não sei bem se entendi a pergunta.

— Jemma, quando essa culpa lhe invade... Ela geralmente não vem só. Vem acompanhada de outro sentimento. A raiva, certamente. Seria raiva de si mesma por se julgar impotente ou indefesa quando os outros se arriscam por você, ou raiva daqueles que estão dispostos a cometer sacrifícios pelo seu bem-estar? Ou talvez não seja raiva. Seja ressentimento. E se sinta arrependida por não ter tomado a frente, por não ser você a cometer o sacrifício ao invés dos outros.

— Bem, eu posso dizer sinceramente que a segunda opção é ridícula. Eu não sinto raiva daqueles que se sacrificaram por mim. Eu sou grata. Sinto raiva da situação em si, um pouco de raiva de mim mesma por não ter feito nada, e arrependimento, lógico. Por não ter tentado outra maneira, fazer diferente... Sem que vidas tivessem de ser perdidas por minha causa.

— Tudo bem, eu entendi. Não seria incomum sentir raiva de quem se arrisca por você. Há muitos casos assim.

— Definitivamente não é o meu caso.

— Mas há um porém, não há?

Jemma havia desviado o olhar do médico. Mas agora tornara a encará-lo, com um semblante enigmático, difícil de ser lido pelo psiquiatra. Ele não conseguiu sondar o que mais havia naquela expressão além da culpa demasiada que ela sentia.

— Na verdade... Eu me sinto péssima na maior parte do tempo. Quer dizer, por que eles não poderiam ser egoístas às vezes? Pensar mais em si mesmos ao invés de se sacrificarem por mim...

— Não sente raiva deles, mas ressentimento – o psiquiatra sabia exatamente a quem ela estava se referindo.

— Não tenho certeza se é isso – ela agitou as mãos no colo, ainda mantendo a posição entre sentada e deitada no divã.

— O sentimento deles por você falou mais alto em ambas as situações.

— Ambas – Jemma riu, sem humor, no entanto – você se refere a que situações específicas? Eu posso apontar numerosas vezes em que Fitz arriscou a própria vida por mim.

— E Will arriscou apenas uma vez. A vez que lhe custou a vida...

Subitamente o ar pareceu tornar-se rarefeito e ela sentiu dificuldade em respirar, lágrimas traiçoeiras ameaçaram lhe turvar os olhos e Jemma as espantou de imediato.

— Essa é a origem da sua culpa, Jemma?

— O que mais seria? – ela soou rude, mas não pediu desculpas por isso – me colocar acima da própria vida... Eu não merecia tanto. Quer dizer, nunca, jamais vou poder retribuir o que fizeram por mim. Eu sou a razão desses sacrifícios e odeio isso. Nenhum deles... – sua voz quebrou, mas se recuperou rapidamente – nenhum deles merecia passar por tudo isso por minha causa. Will merecia viver. Muito mais do que eu. Depois de mais de uma década preso naquele inferno, ele tinha o direito de sair de lá com vida, recomeçar... O fim dele foi cruel... Viveu miseravelmente seus últimos anos sem ter tido, enfim a chance de regressar à Terra.

— Não seja tão severa consigo mesma. Quando diz que ele viveu miseravelmente os últimos anos de sua vida, está sendo injusta. Você lhe deu esperança nos últimos meses em que ele esteve vivo.

— E de que adiantou? – ela riu com algum escárnio – de que serviu alguns vestígios de esperança? Não serviram de nada. No fim, ele morreu. Sem ter voltado. E por minha causa – completou, dando de ombros.

— Você alimenta sua culpa com tanta energia que chega a ser espantoso. Você parece querer isso... Como forma de punição, talvez. Você acha que merece se afogar em toda essa culpa. Isso não é saudável, Jemma. Definitivamente, você ainda não está bem.

— Por favor, doutor. Eu estou sendo realista. Apontando fatos. Eu sou a culpada e nada pode apagar isso. ­

— Jemma, me escute: não pode se sentir culpada pelas escolhas dos outros, ou por não corresponder às expectativas que depositam em você. Também não é culpada pelo que sente – aquelas palavras lhe eram extremamente familiares. Era o que Fitz havia lhe dito pouco depois de seu retorno de Maveth e, portanto, elas agora, lhe atingiram em cheio, como uma flecha disparada diretamente em seu peito – ainda outro dia, comentou sobre a culpa em relação ao doutor Andrew Garner, por tê-lo libertado na base da HYDRA e o massacre de Inumanos que se seguiu como consequência disso. Bem... Não é sua culpa.

— Eu sabia dos instintos assassinos dele. Sabia o que ele tinha se tornado. Assim como sabia do que aquele ser em Maveth era capaz. E mesmo assim abandonei Will para morrer lá, deixei que se sacrificasse. Do mesmo modo, deixei que Fitz fosse para aquele lugar, correndo o risco de nunca mais voltar. Eu sabia de todo o perigo a que eles estavam expostos e deixei acontecer. Simples assim.

O doutor Samson baixou o olhar e suspirou longamente.

— Preste atenção no que vou lhe dizer. Há uma porta para um recinto qualquer. Neste recinto há uma infinidade de possibilidades, boas e más. Você, Jemma Simmons, abre essa porta porque não há outra saída que não seja abri-la. O que as pessoas fazem ao atravessar essa porta é uma escolha exclusiva delas.

— Eu poderia fechá-la. Antes que qualquer um a atravessasse.

— Você a abre com a melhor das intenções. Procurando uma solução. Desejando com todas as suas forças que seja a melhor solução possível e que ninguém saia machucado. Não abri-la é estagnar. É ficar parado em um mesmo lugar, sem tomar uma atitude...

— Então por que eu não a atravesso simplesmente, ao invés de deixar que os outros o façam.

— Porque os outros se adiantam e a atravessam na sua frente. Por se importarem com você. É uma escolha delas.

— E quanto às minhas escolhas, doutor? E quanto a deixaram que eu decida?

— Você já tentou, Jemma?

Ela não soube o que dizer.

— No que estava pensando quando libertou o doutor Garner? Ou quando Will correu de encontro àquela criatura que a assombrou em outra dimensão?

— Em me salvar – um vislumbre horrível de compreensão atravessou seu rosto, endurecendo-o – É isso o que está dizendo, então? – seu tom era austero – que eu fui egoísta? Que eu só pensei em me salvar e não me importei com a vida de mais ninguém?

— Não é isso o que eu disse. Você está distorcendo minhas palavras. Você agiu guiada pelo seu instinto de sobrevivência. Mas não pediu que vidas fossem sacrificadas por sua causa, jamais cogitou essa ideia. Não era no que estava pensando. No entanto, você não tem autoridade sobre as decisões que os outros tomam. O que eles escolhem é exatamente isso: escolhas deles. Não são suas escolhas.

Jemma parou para refletir melhor a respeito do que o doutor Samson acabara de lhe dizer. Mas sabia que isso lhe tomaria tempo. Provavelmente aquelas palavras a atormentariam por dias, tirariam seu sono, não lhe deixariam descansar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente pela noite.

— Bem, eu acho que isso é tudo por hoje ou há algo mais que queira acrescentar?

— Não... – respondeu um tanto insegura de sua negativa.

— Tudo bem, então. Acho melhor você se apressar – ele começou a dizer, com um sorriso e olhar perspicazes - O cavalheiro lá fora vai ficar farto de esperar.

O olhar de Jemma se voltou imediatamente para a janela do consultório, e repousou na figura de Fitz, recostado em seu carro do lado de fora e consultando persistentemente o relógio de pulso a intervalos mínimos de segundos. Olhou para cima, na direção da janela em que ela se encontrava. Mas Jemma sabia que ele não conseguia vê-la de onde estava. Um sorriso sorrateiro surgiu no rosto da bioquímica.

Ele a esperava. Como sempre.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Depois da Tempestade" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.