Crônicas de uma galáxia escrita por Mrs Dewitt


Capítulo 9
Outubro




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              - Mês que vem tem show do Red Hot aqui. – Ele falou, sentado na mesa ao meu lado. Às vezes, ele substituía algum professor que faltava, e passava mais tempo na minha sala. Comigo.

            - Tu vai, certo? – Não era bem uma pergunta, era mais uma confirmação.

            - Claro. Aquele ingresso está guardado a meses já. Muito ansioso.

            - Bom, depois me conte como foi. – Sorri.

            Ele abriu a boca para falar, me olhou, fechou a boca, respirou fundo e fitou o chão.

            - Que foi? – Perguntei.

            - Ah... – Ele começou. Vasculhei seu rosto a procura de algum vestígio ou sinal do que estava por vir. Qual estrela estava comandando aquela constelação agora? – Meu contrato termina mês que vem. – Murmurou.

            - O que isso quer dizer? – Perguntei. Mal havia deixado que a ideia entrasse na minha cabeça, e já tinha começado a disparar perguntas a respeito dela. Mês que vem era muito próximo.

            - Quer dizer que é o meu último mês aqui.

            Continuei sentada, na mesma posição em que estava, sem me mexer. Fitando o vácuo escuro e frio que de repente eu sentia em volta de mim.

            - Quantos dias ainda? – Perguntei a meia voz. Eu não sabia onde ela tinha se escondido, e não quis sair pra procurar.

            - Uns vinte, vinte e cinco.

            Abaixamos ambos a cabeça. Eu sentia sua mão próxima a minha, mas não me movi para tocá-la. Veja bem, é antiético e antiprofissional uma relação “professor x aluno”, e nós concordávamos que nos encaixávamos nesse quadro. Nunca demonstrávamos o que sentíamos um pelo outro na escola. Pelo menos, não até agora.

            Assim que ele saiu, peguei uma folha qualquer e comecei a escrever. A principio, escrevia a lápis. Uma letra quase ilegível, rabiscada e irregular. Deixava que as palavras viessem, e se colocassem à ordem que se sentiam mais a vontade. Deixava que os sentimentos – dor, amor, tristeza - guiassem a dança que meu lápis realizava. Quando acabei, contemplei por alguns segundos o papel abarrotado de emoções e grafite, antes de alisá-lo e reescreve-lo em uma folha limpa, com uma letra redonda e traço firme. Um buquê de sentimentos colhido no mais desarrumado dos jardins.

            Dobrei algumas vezes, insegura de entregar ou não. Tinha tentando não me expor nem o forçar, mas ao mesmo tempo tinha sido sincera. Tinha o chamado de querido...

            Parei um pouco de poetizar minhas decisões e percebi que tinha sido bastante estranha quando o chamei de querido. Mas como tinha escrito à caneta, botei a carta na mochila e esperei o resto da manhã passar.

            Antes de ir embora, eu e Isabella fomos nos despedir dele, como sempre. Quando o alcançamos, respirei fundo e coloquei a mão no bolso. A carta estava ali. Sorri pra ele, enquanto lhe desejava uma boa tarde de trabalho. E então, ignorando o quão estranho parecia, estiquei a mão com a carta, abri um dos bolsos da jaqueta que ele usava, coloquei o papel dobrado com esmero lá dentro e o fechei.

            - O que é isso? – Perguntou, meio rindo, me fitando.

            - Só pode ler quando chegar em casa. – Disse. Isabella me encarou, tentando entender o que estava acontecendo. Enderecei-lhe um sorrisinho, abanei para os dois e segui meu caminho para fora dos portões.

            Quando cheguei à escola no outro dia, havia esquecido completamente da carta que tinha escrito. Até o olhar de novo. Vi que usava a mesma jaqueta do dia anterior, e tudo voltou. Senti um pouco de vergonha, minhas estrelas nunca gostaram de serem postas em uma vitrine como eu tinha feito.  

            Ele caminhou devagar até mim, mãos nos bolsos, rosto sério. O esperei, em transe, no meio do pátio. Quando ele parou, sorriu. E senti meu coração derreter.

            - Tenho uma coisa pra ti também. Mas não vou te dar agora.

            Com o passar dos horários e o vai e vem dos professores, eu comecei a me sentir ansiosa. E depois, nervosa. E por fim, com ânsia de vômito.

“Não tô me sentindo bem” enviei uma mensagem para ele, esperando que a visse logo.

“O que aconteceu?” a resposta chegou, minutos depois.

“Ânsia de vômito” escrevi.

            Depois de alguns minutos mais, o socorro veio. Marco entrou na sala, com alguma desculpa que não lembro qual era. Falou alguns segundos com o professor, e por fim parou em frente a minha mesa.

            - Está tudo bem? – A expressão séria, mas eu via as estrelas brilhando em seus olhos.

            - Não muito. – Resmunguei.

            - Professor, a Luísa não está se sentindo muito bem, posso tirá-la da sua aula um instante para ser medicada? – Ele se virou para o professor que, ocupado como estava explicando suas teorias sobre alienígenas entre nós, só abanou em sua direção com uma das mãos. – Vamos. – Ele me puxou de leve pelo braço, e levantei.

            Descemos as escadas, e eu sentia meu coração prestes a sair pela boca. Possivelmente com algumas coisas mais. Estranhamente, ao invés de irmos em direção à secretaria, ele me guiou para trás de um dos prédios da escola.

            - Que foi? – Perguntei, mas ao invés de receber uma resposta, fui abraçada.

            Normalmente, eu e minhas estrelas não gostamos de ser tocadas. Não nos cumprimentem, nada de palmadinhas nas costas nem abraços estranhos. Mas, diferente de todas as outras pessoas, o abraço dele não me repelia. Passei os braços sobre seus ombros e me permiti fechar os olhos, enquanto meu coração tentava sem sucesso voltar ao ritmo normal. Ficamos assim por não sei dizer quanto tempo, mas eu senti como se tivesse sido uma vida.

            - Obrigado pela carta. – Ele murmurou. Senti-me aquecida e querida. Era um sentimento que só ele despertava em mim. Quando me soltou, eu não queria deixa-lo ir.

            Ele me olhou nos olhos por mais alguns segundos, antes de abaixar o rosto e tirar uma folha dobrada do bolso interno da jaqueta.

            - Essa é a sua. – Ele me entregou. Tinha meu nome nela. A peguei como quem segura um pequeno pássaro: com delicadeza e admiração. – Não é pra ler ainda. – Soltou, quando eu fiz menção de desdobrá-la.

            - Okay. – Concordei, sorrindo. Então, ele me deu as costas e começou a andar em direção a secretaria e o acesso dos funcionários. Um pouco confusa, decidi voltar para minha sala. Quando coloquei o pé direito no primeiro degrau da escadaria cinza, ele me chamou.

            - Tá indo aonde? Tu tens que ser medicada ainda. – E parou, me esperando. Dei risada, enquanto concordava e andava ao lado dele. Passei um dos braços pela barriga e fingi ainda estar me sentindo horrivelmente mal, apesar de sentir como se de repente eu fosse o centro do sistema solar e o sol fosse meu coração.

            - Eu não posso entrar aí. – Disse, quando ele passou pela porta com a famigerada placa “Somente funcionários”.

            - Claro que sim. Tá comigo. - E segurou a porta aberta, me deixando passar a sua frente. Andei devagar, observando o ambiente claro e mais calmo do que eu imaginei que fosse. Era como entrar na sala secreta de algum castelo medieval.  – Aqui é o banheiro feminino. – Ele apontou para uma porta. – Caso precise. E aqui é a minha sala.

            E abriu a última porta do corredor. Diferente de tudo que eu imaginava, a sala tinha dois sofás, um vaso de planta e uma televisão sobre um móvel cheio de coisas.

            - Sua sala? – Perguntei.

            - Não exatamente. Mas eu sou o que passa mais tempo aqui. Senta, vou pegar um chá pra ti. Tem alguma preferência?

            - Não. – Murmurei, andando até um dos sofás e me sentando. – Quer dizer, camomila, pode ser.

            - Okay. – E fechou a porta.

            Observei o ambiente por um tempo. Como as janelas altas iluminavam a parede a minha frente. Como a manhã parecia calma. E tentei adivinhar a espécie daquela planta. E sobre o que seriam todos aqueles papéis e livros empilhados em volta da televisão. E mesmo assim imersa em divagações, ele voltou antes do que eu esperava. Se sentou no sofá ao meu lado, e me entregou uma xícara. Quente demais. Puxei as mangas do moletom para que conseguisse segurar.

            Depois de algum tempo em que ele tomava seu próprio chá e eu assoprava o meu, ele se levantou.

            - Vou terminar algumas coisas que estava fazendo antes, volto daqui a pouco. – Concordei com a cabeça, ainda assoprando meu chá. E, antes de fechar a porta, ele se virou para mim mais uma vez. – Agora pode ler a carta.

            Assim que saiu, larguei cuidadosamente a ainda fumegante xícara no chão, e tirei o papel do bolso. Minhas mãos tremiam, e senti a ânsia voltar mais uma vez. Por mais clichê que fosse, sentia meu estômago cheio de borboletas.

            Desdobrei a folha com cuidado. Ao contrário de mim, ele a havia impresso. Estiquei-a, tentando eliminar as dobras e, depois de respirar fundo mais uma vez, comecei a ler.

            “Conhece uma sensação... Ou melhor, acredita em algo chamado amor à primeira vista?”

            A cada palavra, eu me sentia mais tensa e ao mesmo tempo, livre. Minha cabeça e coração pareciam correr por um universo paralelo de felicidade onde tudo era possível, enquanto meu corpo permanecia frio e imóvel como um cadáver ante a realidade de termos somente mais alguns dias juntos. E eu comecei a chorar.

            Não sei quantas vezes eu li aquela carta antes que ele voltasse. Secava os olhos e chorava mais uma vez. Quando senti que meu corpo fisicamente lutava com aquela confusão de sentimentos também, me obriguei a terminar meu chá. E, quando me acalmei, li a carta mais uma vez. E então ele chegou.

            Na verdade, ele abriu a porta. Viu-me, e fez menção de fechá-la de novo.

            - Espera. – Chamei, me levantando. Ele entrou, e fechou a porta. Por alguns segundos, ficamos parados um na frente do outro. Eu observava seus olhos, seu cabelo. A Luz no seu rosto. Cada milímetro da sua face, e o mundo dentro dos seus olhos. Por fim, abri os braços.

            E ele me abraçou.

            Quando percebi, estávamos girando. Me senti como uma criança nos braços dele, girando por uma sala em uma escola pública, sem sentir meus pés tocarem o chão. E enfim, paramos. De pé, abraçada a ele, eu simplesmente não queria mais nada. Nem soltá-lo, nem voltar para a realidade fora daquelas paredes, onde eu não podia dizer para quem quisesse que essa constelação tinha todo o meu amor.


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