The A Team escrita por Clara Cristiane


Capítulo 1
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1

Abro os olhos e tento me acostumar com a manhã, mais um dia e mais um pesadelo, não que fosse assustador, mas a vida do mundo real há muito tempo tinha virado “a hora de dormir” e a hora de dormir tinha virado “a realidade”. Aqui nesse mundo, cada ser, cada coisa, poderia ser uma ameaça ou um amigo, e por isso, eu sempre dei o poder da dúvida para que eles escolhessem de qual lado queriam estar.

O meu quarto continuava sendo um local seguro, com uma madeira bem envernizada e cheiro de lavanda, com um travesseiro que continuava macio e cheio de plumas, com uma escrivaninha que ainda tinha suas marcas, e o mundo fora desses 25m² era apenas um mundo em que se escondia o meu tesouro. Ao descer as escadas da cozinha encontrava mamãe, a Raposa, no fogão, e papai, senhor Leão, lambendo o pelo enquanto lia o jornal e esperava o café. Eles sempre foram gentis comigo, na medida do possível, cada um tinha sua história, seu motivo de ser do jeito que eram, e eu compreendia, como também, o meu jeito de ser deveria ser respeitado.

— Como foi a noite, meu querido? Dormiu bem? – Mamãe perguntou.

— Dessa vez eu estive em Marte, sabe aquele meu tesouro? Ele também estava lá, ele sempre esteve onde quer que eu fosse. – Respondi.

— Oh, você sempre fala desse seu tesouro, acho que é um sinal! Será que tem uma forma? Uma cor? Se é tão importante para você, talvez pudéssemos te dar. – Ela disse enquanto terminava de fazer as nossas panquecas e nos servia.

— Não é algo que dê para comprar, mas tudo bem, ele está por ai em algum lugar, basta encontrar.

— Eu sei que vai encontrar filho, cedo ou tarde. – Ela respondeu.

— Eu também sei que você vai, você é como eu – Meu pai me apoiou – Sempre iremos conseguir aquilo que queremos, é como eu digo.

— Obrigado, pai. – Eu disse.

Terminei meu café, coloquei a louça na pia, peguei meu gorro, minhas botinas de neve, minha mochila, e fui para o meu trabalho. Não que nevasse sempre em minha cidade, mas hoje era um dia especial, e sempre nevava em dias especiais, eu sabia disso.

Eu trabalhava numa daquelas livrarias de hoje em dia, com sua grande seção de livros (quilômetros, para ser mais exato), sua seção de jogos e eletrônicos que ficava no subterrâneo, e sua seção de café intergaláctico. Meu chefe era duende idoso e simpático chamado Emanoel, ele sempre tinha bons conselhos para dar, e mesmo com a perda da filha, Cassiopeia, ainda encontrava forças para vir trabalhar.

— Como vai a busca pelo tesouro, Daniel? – Ele perguntou.

— Continua a mesma coisa, quem sabe eu esteja mais preparado para achar-lo. – Respondi.

— Quem sabe... lembre-se que é o interior que conta, esteja preparado aqui em cima, e todo o resto pode acompanhar... – Ele disse enquanto apontava para a cabeça.

— Belas palavras. Por onde o senhor quer que eu comece hoje?

— Pelo sótão! As caixas te esperam! – Era sempre a mesma resposta.

Ele sempre deixou a organização comigo e com Mike, meu melhor amigo. Como eu, ele era humano também, e tinha uma certa obsessão por arrumar, éramos a dupla certa para o trabalho. Das 9 da manhã até o meio dia, e das 13 horas até as 17, ficamos trabalhando no sótão. Toda vez que ficava pronto (o que geralmente demorava 365 dias) a livraria ganhava mais um andar, aposento ou qualquer que seja o nome que queira chamar.

As caixas chegavam diretamente de Plutão pela chaminé, lá ficavam os registros de cada livro que você pudesse imaginar, e enviava diretamente para a Via Láctea, todas as letras que os seres vivos deveriam ler. Por fora, eram apenas capas pretas de couro com páginas vazias, pois o conteúdo só aparecia para o verdadeiro dono do conteúdo, era interessante, uma maneira de que a vida alheia não fosse vista, afinal, cada livro era uma história, um ano de vida ou alguma memória. E já era o meu 19º exemplar sobre o tesouro, que chegara pela manhã, era esse o motivo da neve.

Quando o dia de trabalho acabava, Mike me dava uma carona de volta para casa. Essa volta ou era regada de música ou regada de apostas sobre jogos, futuro, estatísticas e coisas do tipo. Sempre fazíamos o caminho mais longo, a brisa gélida do entardecer esvaziava a nossa mente de problemas e nos lembrava que ainda éramos jovens.

Ao chegar em casa, minha mãe estava na varanda, sentada na sua cadeira de balanço, tricotando enquanto me esperava voltar para que pudéssemos jantar, enquanto isso, meu pai continuava no trabalho.

— Como foi o dia? - Ela perguntou.

— Normal, apenas trabalhei normalmente e peguei meu novo livro. – Respondi.

— Oh! Mais uma daquelas histórias, não é?

— Exato, apenas mais uma daquelas histórias.

Mecanicamente, repetidamente, tivemos a mesma janta dos outros dias, purê de batatas e carne. Depois, mamãe foi cuidar da casa, e eu fui para meu quarto, tomaria um banho e leria meu livro. Quando estava pronto e acomodado na cama, o título, a verdadeira capa e o conteúdo apareceram.

 

2

O couro preto se tornou um papel vermelho claro, com ornamentos dourados ao redor da nossa foto, o título era novamente, The A team, e as páginas eram de um papel antigo e amarelado, com cheiro de laranja, como se a história fosse tão velha quanto o aspecto de suas páginas. E era. Mais uma vez os personagens principais eram eu e Cassiopeia, o tesouro, não uma coisa, um ser humano.

Havia algum tempo que ela desaparecera. Não era porque ela fora sequestrada, morta ou fugiu de casa, mas porque, ela fora condenada a usar uma capa de invisibilidade, assim, ela poderia estar em qualquer canto, escondida, como um tesouro. Por que ela não falava nada? Pelo menos sua voz seria ouvida. Talvez, se um dia eu descobrisse a resposta e quebrasse o encantamento, ela poderia aparecer.

— Posso começar a história? – Sua doce voz saltou do livro.

— Deve. As histórias e sono são a realidade. – Eu respondi.

“Era segunda, Cassiopeia mais uma vez revirava na cama e arranjava forças para levantar, ela sabia que era preciso trabalhar, que era preciso sorrir, que era preciso ir para faculdade e conseguir se formar. Era preciso também levantar Daniel da cama, ela sabia que ele esperaria para que ela o chamasse, e lá estava ele, deitado ao seu lado de bruços, com os cabelos bagunçados e as costas descobertas.

— Bom dia, meu amor. – Ela acariciou seu rosto. – É hora de levantar, o mundo nos espera.

Ele abriu os olhos lentamente e viu seu rosto sorridente, com aquele olhar esperançoso, que não se importava com as olheiras do dia anterior, ou com a condição financeira em que eles estavam. Não importava o problema que surgisse, ele sempre saberia que ela estaria ali por ele.

— Cass...

— Nada de Cass, por favor. – Ela lhe deu um beijo terno. – Precisamos levantar!

Com essas palavras, ela deu um pulo da cama e se dirigiu ao banheiro, por outro lado, com o corpo ainda pesado e cambaleante, ele se dirigiu para a cozinha, afinal, o café da manhã não seria feito só. Por sua mente passavam lembranças de que aquele era o 3º ano em que eles viviam juntos, e que com a ajuda de Mike eles haviam encontrado um apartamento para morar quando eles fugiram de casa. Lembrou também de seus sonhos, em que ela queria ser escritora, e ele queria abrir uma empresa, tudo estava planejado.

Quando se tinha uma vida independente, distribuir 24 horas pareceu loucura no começo, mas pouco a pouco as coisas foram se ajeitando. A princípio era apenas um colchão, uma cafeteira, uma geladeira, um fogão e livros da faculdade, em seguida, os dois conseguiram um emprego de meio turno na livraria do pai dela, assim, eles trabalhariam em conjunto pela manhã, estudariam à tarde e cuidariam da casa pela noite. Esse era o plano.

Os fins de semana eram livres, eram deles. Múltiplas brincadeiras surgiram, passeios, jogos de tabuleiros, lasanhas e fotos espalhadas pela casa, era a chamada diversão a dois, ou poderiam ir na casa de um amigo, ou coisa do tipo. A liberdade nunca foi tão exercida por alguém quanto por aqueles 2”.

Cada capítulo do livro, era um mundo paralelo, alternativo, com um final feliz. Era possível sentir a felicidade, sentir o calor do corpo dela, era possível matar a saudade. O mundo dos sonhos era a realidade mim. A cada dia eu poderia ouvir sua voz, viver uma vida diferente, e sentir a mesma emoção.

Aqui, desse lado da vida, na parte diurna das 24 horas, só existiam aparências, pois o mal havia levado seu tesouro.

 

3

Enquanto ele estava com a Raposa e o Leão, aqui estava eu, com minha capa da invisibilidade e sendo assombrada pelo passado, não existia remédio no mundo que curasse a minha dor, não existia dinheiro no mundo que comprasse a minha felicidade, tudo aquilo que eu sou ou era, deixou de ser e de existir. Eu havia sido amaldiçoada. Bem, se era o fardo de o perder que eu haveria de carregar, era esse fardo que eu carregaria.

Sempre fui muito independente, cresci assim, com meus valores incorruptíveis e com um senso de coragem um pouco alterados. Senti que era hora de mudar, já que a realidade, não mais era esse mundo em que habitava, mas sim o mundo dos meus livros e dos meus sonhos. A maldição me impunha certos limites, limites esses que me impediam de ser vista, todo mundo apelidou de ‘maldição do amor’, um nome até razoável, mas eu sabia da verdade.

Talvez eu pudesse usar minha voz para ser vista, talvez eu pudesse ser um colar flutuante que eu colocasse por cima da capa, ou talvez até mesmo entrar na universidade dos seres invisíveis. Entretanto, não era essa a minha vontade.

Meu pai era um duende dono de uma livraria, minha mãe era uma ursa dócil que trabalhava no jardim de infância, meus dois irmãos eram anjos viajantes do tempo e eu era apenas uma humana, em busca de um propósito para viver. No começo dessa minha mudança de aparência, foi um caos, mamãe ursa virou uma fera, quebrando tudo que vinha pela frente, meus irmãos quiseram consertar o passado, porém era tarde demais. Meu pai até tentou usar um pó mágico! Eu precisava partir, e assim o fiz. Não sabia exatamente para onde ou como, mas eu precisava ir.

Juntei meus poucos pertences numa bolsinha mágica: meus livros, minhas fotos, algumas mudas de roupa, cobertor, alguns trocados, comida e parti. Peguei o primeiro ônibus para o mais longe daqui, Plutão. A viagem fora longa, vazia e silenciosa, eram poucas as pessoas que queriam atravessar a galáxia em busca de uma razão. Plutão era um bom local, um pouco frio, gélido, em que a vida ainda lutava para ganhar, onde existia igualdade entre a população e oportunidades de empregos na fabricação de livros. Segundo reza a lenda, todo o planeta se dedicava para transformar em letras, os sentimentos, as histórias, os sonhos e a vida de cada um de nós.

Em Plutão, eu poderia usar algo que me identificasse. Fora me dado uma pulseira vermelha com um número, um quarto e um emprego na fábrica. A antiga Cassiopeia só poderia existir na hora de dormir, e eu a procurei, retirando o exemplar ‘The A team’ da bolsa e me acomodando para poder ler, assim, a voz dele me embalou num doce sonho.

 


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