A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 60
Inesquecível


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!

Como já aconteceu antes, esse capítulo tem de tudo um pouco: riso, choro, drama, romance…
Por isso, atenção à classificação etária!

Nele, eu adaptei um dos episódios mais dramáticos da minha gravidez, que também acabou se tornando um momento muito especial.

Então, foquem no "momento muito especial", porque, se o episódio já foi dramático na vida real, dá pra imaginar o que fiz nas linhas abaixo, né?

Mas acho que caprichei na parte "especial" também…



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Por Katniss

O portão da casa na Aldeia dos Vitoriosos está aberto, assim como a porta da frente.

— Annie? – chamo ainda de pé na calçada em frente à casa dela.

A ruiva surge na soleira e abre os braços, envolvendo-os ao meu redor assim que se aproxima. Ela se afasta e segura minhas mãos.

— Olhe pra você, Katniss! – Annie exclama. — Está absolutamente radiante.

— Peeta tem a mesma opinião – digo, olhando para ele, quando chega ao meu lado.

— Estar grávida de seis semanas fez isso com a minha garota, Annie.

— Se Katniss está radiante, eu não tenho nem palavras pra descrever você, Peeta.

O abraço fraterno dos dois é demorado.

Ouço risadinhas atrás de mim e espio por cima dos meus ombros para ver Finn, com seus cabelos vermelhos cobrindo parcialmente os olhos verdes, trazendo pela mão a pequena Victoria, filha de Johanna e Max. A menina se joga nos braços de Peeta no instante em que o vê.

— Oi, tia Katniss – cumprimenta o garoto e eu o abraço.

Victoria puxa a manga da minha roupa, ainda no colo de Peeta.

— Você acha que eu cresci, tia Katniss? – pergunta ela.

— Vocês não param de crescer – Peeta responde por mim.

— Mas pra mim você será sempre essa menina sapeca… E o Finn será sempre o menininho que ata e desata nós comigo para me acalmar.

Victoria dá risada e Finn encolhe os ombros, envergonhado.

— Vocês viram que o meu peixinho agora é surfista? – Annie se manifesta.

— Mãe… – resmunga Finn, antes de me lançar o sorriso torto que herdou de seu pai. — É bom ver vocês dois – declara ele, indo abraçar o padrinho.

— Agora são três, filho.

— Eu acho que é uma menina! – Victoria anuncia.

— E qual o seu palpite, Finn? – Peeta questiona.

— Eu sempre apostei numa menina também.

— Sempre, Finn? – questiono, recordando-me daquela conversa entre ele, Maysilee e Elliot anos atrás, no quintal de nossa casa. — Vamos descobrir daqui a alguns meses se vocês estão certos.

— Agora vamos entrar? – Annie convida.

Todos permitem que eu passe à frente e esperam minha reação ao ver o que prepararam.

Meu aniversário é daqui a poucos dias e, na sala de estar, há uma verdadeira festa organizada pra mim.

— Isto é pra você. Assim como tudo o que importa – declara Peeta.

O bolo sobre a mesa, sem dúvidas, foi decorado por Peeta. Sobre ele, há confeitos no formato de um ninho, com dois passarinhos dentro, um na tonalidade laranja e o outro com matizes verdes.

— Como aprontou tudo isso sem eu saber?

— Aproveitei essa sua fase dorminhoca e fiz o bolo na casa da Sandy, que é vizinha da sua mãe, enquanto você dormia. E Annie e os outros arrumaram todo o restante essa manhã, quando estávamos no hospital para fazer o exame.

— Obrigada pelo bolo. Ele é lindo!

— Você não vai nem provar, não é?

— Estou com medo de fazer uma cena, se ele não parar no meu estômago – informo, com uma entonação vacilante.

— Então, você não vai aproveitar nada do presente que lhe preparei?

Abaixo os olhos e nego com a cabeça.

— Ainda bem que eu tenho um plano B. – Peeta ergue meu queixo e pisca pra mim, deixando-me curiosa.

Aos poucos, outros de nossos amigos vão chegando: Johanna, Max, Dra. Ceres e Martin, que é o filho dela com o Dr. Augustus. O médico e minha mãe não vieram, por ainda estarem no hospital.

Peeta conversa com Johanna e Max, depois de cumprimentar a todos:

— Agora temos que nos preocupar em deixar tudo pronto para nosso pequeno ou pequena… Só assim vou poder dormir sossegado.

— Você realmente acha que vai conseguir dormir depois que a desmiolada confirmou que engravidou? – pergunta Johanna, erguendo uma sobrancelha.

Peeta assente de modo contundente e convicto. No entanto, a gargalhada de Max mina sua confiança.

Solto um suspiro demorado.

— O que foi? Você também gosta da ideia de dormir sossegada, não é? Você pode até conseguir. Agora. Então, aproveite! – avisa Johanna.

— Mas o Peeta… Nem sonhando! – Max complementa.

Peeta solta um suspiro mais demorado ainda e todos riem.

A tarde é muito agradável na companhia de pessoas tão queridas, comemorando a novidade da gravidez e também a proximidade do meu aniversário. Recebo muitas dicas sobre a gestação de Annie e Johanna.

Um aconselhamento em especial me impressiona e fica gravado em minha mente.

Depois de me passar preciosas informações sobre os diferentes tipos de parto, a Dra. Ceres me recomenda:

— Você tem que cuidar, não só de si mesma, mas também da cabeça e das emoções do Peeta, pois os próximos meses serão intensos, estará tudo à flor da pele. E, infelizmente, sabemos o que acontece quando algo sai fora de controle.

Isso só pode significar uma coisa… que eu tenho que me policiar. Muito.

Eu fico tão ansiosa que meu temido enjoo desaparece como mágica e é substituído por um apetite tão voraz, que consigo provar todas as delícias da festa.

Isso deixa Peeta muito feliz. Mal sabe ele o motivo…

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Eu e Peeta voltamos para casa dois dias depois e chegamos ao Distrito 12 no dia 08 de maio, meu aniversário, quando ele pôs em prática o seu plano B.

Peeta pediu para que, depois de atender aos clientes na primeira parte da manhã, a padaria fosse fechada para celebrar a data.

Por isso, a padaria é a nossa primeira parada assim que desembarcamos.

Todas as pessoas próximas estão reunidas atrás do balcão quando entramos, fazendo soar o sino que fica pendurado na porta.

É uma pena que, assim que eles gritam "Surpresa!", preciso correr para o banheiro. O enjoo matinal está voltando com toda a força.

Peeta aparece logo depois para me auxiliar. Assim que saímos do cômodo, nós nos deparamos com Haymitch do lado de fora, de onde ele deve ter ouvido meus engasgos, provocados pelo mal estar.

— Você surrupiou algumas garrafas de licor do trem, bebeu todas e agora está passando mal? – Haymitch pergunta, com um sorriso maroto de quem sabe das coisas brincando em seus lábios.

— Não. Isso seria uma péssima ideia para mim agora – Balanço a cabeça em negativa. — E também pelos próximos nove meses, no mínimo.

Ele já sabia de tudo antes mesmo de minha resposta.

— Feliz aniversário, mamãe! E parabéns, papai! – Haymitch nos felicita.

— Obrigado! – agradece Peeta. — Nós teremos um bebê no fim do outono.

— Depois de tantos anos, finalmente o padeiro colocou um pãozinho no forno! – Haymitch graceja e ele mesmo ri muito com sua frase. — Eu sou uma piada, não é mesmo, garoto?

— Você não é uma piada. Você deveria ser engraçado pra se chamar assim – retruco, sem segurar a língua. — Não foi culpa dele o fato de ter levado tanto tempo. Foi minha.

— Esquece isso, docinho. Está na hora de contar a novidade a todos.

Quando retornamos ao grande salão, sou recepcionada com um bolo com as velas acesas e a cantoria do "Parabéns".

A festa transcorreria normalmente, se não fosse a interrupção de Peeta para fazer um discurso.

Comigo a seu lado, ele primeiramente agradece o carinho de todos e, de súbito, solta essa bomba:

— Vocês vão ganhar um novo patrão – anuncia com ar bastante sério.

— Ou uma nova patroa – complemento, sorrindo.

— A padaria vai ser vendida? – Lionel pergunta preocupado.

— Não pode ser, Peeta. A padaria não pode ficar sem você! – Casper afirma, sem ocultar seu temor.

— Vocês vão ganhar um novo chefe, mas eu não vou deixar a padaria. – Peeta afaga meu ventre e toca minha mão, que eu inconscientemente levei à minha barriga também. — E ele, ou ela, está bem aqui.

O burburinho inicial se transforma em exclamações de alegria.

Todos nos felicitam e os cumprimentos são quase sempre acompanhados de conselhos bem-intencionados.

Quando chega a vez de Delly, ela segura a minha mão e a de Peeta.

— Estou tão feliz por vocês! – Seu sorriso fácil está ainda mais aberto. — São tantas coisas a serem ditas que nem sei por onde começar.

— Se Delly fala como fala sem ter muito assunto… Imagina quando ela tem tantos assim! Vocês reservaram a tarde inteira pra ouvir tudo? – Haymitch graceja e Delly finge indignação.

— É melhor passar as informações aos poucos, Dell… – Peeta implica com ela também.

— Por mais que eu fale, podem ter certeza de que vocês iniciaram a longa e incrível jornada de não saber nada, de não entender nada, de não adiantar muito ouvir explicações, de aprender vivendo… — Delly não se intimida com as indiretas dos dois.

— Eu quero ouvir tudo o que você tem para nos dizer. – Peeta abraça a amiga, que, incentivada, discorre sobre algumas de suas experiências no início das suas gestações.

Num dado momento, ela me pergunta:

— Você vai aposentar o arco e flecha por uns tempos?

— Não pretendo… Eu costumo ir à floresta para limpar minha cabeça. É o lugar em que eu posso realmente espairecer. E o arco e as flechas vão comigo, com certeza.

Peeta presta atenção às minhas palavras. Seu sorriso esmorece, mas não fala nada.

Ele coça a nuca, num sinal claro de preocupação, e vai até a bancada da pia, onde deixa o copo que está segurando. Em seguida, o loiro se encaminha para o segundo andar da padaria.

Depois de alguns minutos, subo as escadas atrás dele. Peeta está parado em frente à janela, admirando a cidade.

Seus olhos azuis estão dispersos e um pouco preocupados.

Franzo a testa e vou até lá. Quando estou a poucos centímetros de distância, eu o chamo bem baixinho.

Ele se vira ao som da minha voz e, ao me ver, sua expressão séria se dissipa.

— Olá – murmura, puxando-me para junto dele.

Peeta me aninha, apoiando minhas costas em seu peito largo. Nós dois ficamos olhando para a praça e, mais adiante, para a floresta, enquanto ele pousa o queixo em cima da minha cabeça.

Ele demora vários instantes para indagar:

— Está com saudades da floresta?

— Você está com receio de que eu continue indo até lá? – respondo com outra pergunta.

Seu queixo se mexe em meu couro cabeludo, quando balança a cabeça afirmativamente.

— Não posso dizer que adoro a ideia de você continuar indo caçar – diz devagar.

Peeta escolheu o momento certo para fazer este comentário, pois estamos na padaria e sabe que não vou esbravejar com ele. De qualquer modo, sou tomada por uma onda de chateação e começo a reclamar:

— Você sabe que vou enlouquecer, se ficar enfurnada em casa todos os dias.

— Eu não quero isso. De jeito nenhum. – Ele ri baixinho. — A questão é que você precisa cuidar melhor de si mesma.

— Eu sei cuidar de mim mesma – rebato, dando um passo à frente para me afastar dele, recostando a testa no vidro da janela.

Eu realmente deveria dar ouvidos a seus conselhos, mas estou muito ocupada sendo petulante. Está cada vez mais difícil ser calma e razoável na maior parte do tempo, mas eu me lembro das recomendações da Dra. Ceres.

Para minha sorte, Peeta permanece sendo calmo e razoável por nós dois. Suas mãos afagam meus braços cautelosamente, puxando-me de volta para si.

— Você me prova isso todos os dias… Mas vai chegar um momento em que não será bom você assumir tantos riscos na floresta.

Peeta tem algo na voz que sempre me convence, até das coisas com as quais não tenho a menor intenção de concordar.

Então, eu me viro nos braços dele para conseguir ver seu rosto. E ele me encara sem dar chance a evasivas.

— Há um monte de coisas lá fora que poderiam machucá-la e não se trata apenas de você agora – recomeça ele. — Seu corpo vai se transformar e você vai deixar de conhecer tão bem seus próprios limites. Não é mais preciso que se arrisque tanto.

Hesitante, coloco a mão sobre o lugar onde nosso filho se encontra.

— Eu não vou deixar nada acontecer com este bebê – asseguro. — Você sabe disso, não é?

— Sim. Apenas não posso deixar de me preocupar. Você parece tão delicada agora…

— Basta esperar alguns meses e não vou parecer tão frágil, quando eu estiver andando por aí como um saco de farinha ambulante.

— Eu não me importo. Sacos de farinha nunca me assustaram.

— Ah, você nunca lidou com sacos de farinha cheios de hormônios – resmungo.

Sua gargalhada me faz rir também.

Peeta coloca a mão sobre a minha e entrelaça os dedos com os meus.

— Você sempre foi e sempre será a melhor coisa que já me aconteceu. Este pequeno só vai acrescentar a isso. – Ele se ajoelha à minha frente e beija minha barriga. — Já imagino uma menina linda com seus cabelos escuros e com sua boca, fazendo esse bico e…

— E com os olhos azuis suaves do pai – completo e ele se levanta, cuidadosamente me segurando em seus braços, como se eu fosse feita de cristal.

— E o que mais você imagina? – Peeta questiona.

— Se for um menino, eu o imagino com seu sorriso e esses cachos loiros.

— Katniss, nossa família será linda. Muito obrigado por mudar de ideia.

— Eu é que devo agradecer a você por me fazer mudar e por ser tão paciente por todos esses anos. Você esperou por isso durante um tempo muito, muito longo.

— Valeu a pena.

Nós olhamos para baixo, onde as nossas mãos tornam a se unir, descansando sobre o nosso filho que vai nascer.

— Prometo ir à floresta, nas áreas mais tranquilas, sem me arriscar em caçadas.

— Prometo não ser tão chato, preparar pães de queijo sempre que desejar e estar aqui por você, para escutá-la e abraçá-la sempre que pedir, mesmo que nem você saiba o que você quer ou do que precisa… O que tem acontecido com certa frequência.

Isso me faz rir, ao mesmo tempo em que golpeio seu braço com meu punho fechado.

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Acordo com o som do liquidificador no andar de baixo. Mantenho Dandelion perto de mim, desfrutando do toque suave do seu pelo. Ele sempre foi mais amigável e menos arredio, em comparação com o seu antecessor, porém isso não significa que eu não sinta falta do Buttercup.

O bichano ronrona em meus braços quando coço suas orelhas.

— Você vai ganhar mais uma companhia em breve, sabia? – sussurro e ele espia para mim com seus olhos azuis pálidos.

Ele ergue uma pata e começa a brincar com minha trança, até que eu a jogo para trás, longe do seu alcance. Ele rola em suas costas e começo a fazer cócegas, enquanto ele se contorce, para, em seguida, ficar entediado comigo e saltar para fora do quarto, da forma arisca como os gatos fazem.

Eu me animo a me levantar também.

Enquanto me banho, acaricio o pequeno monte que assoma com insistência em meu corpo.

Estou grávida e não é uma ideia alheia e distante, é real e está acontecendo agora. Meu corpo está formando um novo ser, uma nova vida.

Quando vejo meu perfil no espelho, quero conhecer a pessoinha que se desenvolve aqui e que é parte de mim e de Peeta. Um pouquinho de cada um de nós dois.

Assim que desço as escadas, o telefone toca e eu atendo.

— Alô?

— Oi, filha! Tudo bem?

— Sim, mãe. E você?

— Tenho boas notícias! Hoje e amanhã são meus últimos dias de trabalho no Distrito 4.

— Mas, mãe, a vaga aqui ainda não está certa. O hospital nos deu o prazo de uma semana para uma resposta. Esse prazo já passou e nada ainda.

— Não há problema, Katniss. Vai ser bom mesmo não emendar um trabalho no outro. Será mais fácil até. Vou poder me organizar com calma.

— Tem certeza?

— Sim. Eu tenho algumas economias.

— Você sabe que não precisa se preocupar em usá-las…

— Eu sei, filha. É por isso que estarei aí em, no máximo, uma semana – assegura ela. — Está se alimentando bem?

— Com Peeta no meu pé, o que você acha? – murmuro e ela acha graça.

Nós ajustamos alguns detalhes sobre a vinda dela e, por fim, terminamos a ligação.

Eu já sei o que me aguarda para o café da manhã.

Minha mãe deu a Peeta a receita de uma gosma batida no liquidificador que, segundo ela, tem tudo o que é necessário para uma grávida, porém meu corpo discorda de forma veemente e o enjoo que me causa é intenso.

Entro na cozinha disposta a dizer a Peeta que vou comer algo que não seja a mistura da minha mãe.

Ledo engano. Peeta me entrega a vitamina, que já havia preparado.

— Aqui está!

Torço o nariz, mas pego o copo que ele me oferece. Em seguida, a primeira coisa que Peeta faz é prender minha cintura com suas mãos gentis. Seus dedos se fundem no lugar que, no momento, é o lar provisório de nossa semente. Parece impossível para ele manter suas mãos longe dali.

— Eu não sei o motivo de concordar com vocês de que eu tenho que beber isso.

— Instinto materno – afirma ele, retirando suas mãos, que eu logo substituo pela minha.

Sorrio tristemente, olhando o ponto onde toco.

— Será mesmo instinto materno? Eu tenho tanto o que aprender.

— Nosso bebê vai nos ensinar tudo o que precisamos saber.

— Puxa… Sempre tentei fazer tudo pela minha família, por aqueles que amo. E vocês são minha família e meus amores. Meu marido e meu filho… Por isso, vou tomar essa gororoba.

— Você não vai se arrepender.

Bebo a vitamina e ela está, de fato, muito gostosa. Peeta deve tê-la incrementado do jeito dele.

Meu sorriso escapa, embora eu tente manter a boca e o rosto paralisados, para não dar o braço a torcer.

No entanto, eu mesma me traio quando passo a língua por meus lábios, limpando os resquícios do líquido saboroso.

Ele balança a cabeça afirmativamente, como forma de incentivo. Olho para a bebida e dou mais um gole.

Peeta serve mais um pouco em meu copo, com um sorriso desenhado no rosto.

Eu suspiro, sentindo-me saciada e… plena. Essencialmente, é assim que estou.

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Desde a minha conversa com Peeta na padaria, tenho frequentado a floresta apenas para manter um pouco de atividade física, porém não para caçar.

Todos os dias, volto a tempo de almoçar com ele, que – apesar de dizer que não – está sempre fiscalizando minha alimentação.

Hoje, Peeta não veio fazer a refeição comigo. Nas raras vezes em que isso acontece, costumo ir até a padaria.

No entanto, há ocasiões, como hoje, em que o sono me invade a qualquer momento do dia. Estou tão cansada, que me jogo na cama logo após o banho.

Estou sem acesso à boa parte dos meus remédios desde que interrompi o uso dos contraceptivos. Eu pensei que seria mais fácil ficar sem os medicamentos, porém há dias em que a ansiedade me consome, especialmente quando algo interrompe minha rotina.

Por que Peeta não veio? Será que aconteceu algo grave?

Uma orda de dúvidas e pensamentos negativos me invade.

É horrível estar com tanto sono, mas não conseguir manter os olhos fechados ou as mãos paradas. Eu me viro e reviro no colchão e nada de conseguir descanso.

Pra completar, um felino peludo arrasta-se pra cima e pra baixo ao meu lado na cama e fuça meu rosto, miando com insistência em busca de atenção.

Aliso seu pelo branco espesso, sem ânimo para me levantar, até que escuto Peeta chamar meu nome.

— Katniss! Meu amor, estou em casa!

A frase de Peeta atravessa as paredes do quarto e a sonolência é espantada de vez.

— Por favor, diga que você trouxe alguns pães de queijo maravilhosos pra mim! – ergo a voz, para que ele me escute no andar de baixo.

— É seu dia de sorte, então!

Desço as escadas preguiçosamente, com os pés descalços e cara sonolenta, vestindo apenas uma camisa dele, abotoada de modo descuidado, com botões e casas desencontrados.

Peeta me fita como se eu fosse a visão perfeita. Seu olhar desce até meu estômago.

Um pequeno volume desponta ali sob o tecido, ainda discreto, mas perceptível para quem sabe que estou grávida, especialmente para Peeta, que conhece cada parte da minha anatomia.

— Está com fome?

— Faminta – respondo de modo lânguido.

— Vim em casa apenas pra trazê-los quentinhos pra você e estou voltando pra padaria. – Peeta põe as mãos para trás antes que eu alcance o pacote que ele trouxe. — Posso ganhar um beijo antes?

— Pode.

Estico-me para beijar sua boca, tão suave e quente, que tenho certeza de que não vou me contentar em apenas sentir os seus lábios.

Então, o que era pra ser um simples beijo, transforma-se em algo mais.

Ainda estou me acostumando ao fato de meus níveis de hormônios oscilarem tão drasticamente, a ponto de transformarem meus sentimentos e desejos em um turbilhão impossível de controlar.

Meu corpo responde de modo muito peculiar à gravidez, em vários aspectos e com todos os meus sentidos. Reajo ao menor estímulo. E Peeta reúne estímulos demais para uma simples mortal como eu resistir.

Ele acaricia meu rosto com os dedos da mão livre. O aroma de aneto e canela ainda me entorpece, como na primeira vez em que o senti.

Com meu braço estirado por trás de Peeta, alcanço um dos pães, saboreando com gosto a primeira mordida. Ele se inclina para beijar meu pescoço.

Fico tão envolvida que a única coisa em que presto atenção é em sua voz aveludada em meu ouvido, fazendo-me ofegar e ansiar por mais do que palavras.

— Gostei do modo como você está vestida. – Os olhos dele pousam na curva dos meus ombros, onde a camisa teima em escorregar. Depois, ele desvia o olhar para a pele nua do meu colo.

Peeta sempre me faz me sentir bonita e desejada, mas desde que soube que carrego um filho dele, isso se multiplicou.

Posso antever esta vontade querendo escapar de mim, desejando que Peeta não precise voltar para lugar algum.

Ele umedece os lábios, talvez pensando o mesmo que eu.

— Não foi à floresta hoje? – pergunta, fitando meu rosto com atenção para disfarçar seu olhar ávido para o meu corpo segundos antes.

— Voltei no horário de sempre. – Eu me aproximo e pouso a cabeça em seu ombro. — Mas você não veio almoçar comigo, então eu…

Ele me interrompe com um beijo que começa com ternura, mas fica imediatamente profundo, explorador.

— Também estava com saudades. Tive um dia cheio no trabalho e só consegui sair agora há pouco. – Peeta acaricia meus cabelos soltos e seus dedos precisos se embrenham suavemente neles até tocarem meu couro cabeludo.

— E tem mesmo que voltar pra lá?

Ele poderia até estar pensando que sim antes de chegar em casa, mas acaba de se decidir que não, quando minha boca chega à pele debaixo da sua orelha, fazendo-o se arrepiar.

— Acho que vou me atrasar um pouquinho.

Movo os dedos para sua barriga e para seu peito, sentindo a maciez da pele, a firmeza dos músculos se flexionando, enquanto ele se aperta em mim, com uma pressão cuidadosa.

Suas mãos buscam em meus quadris a única peça de roupa que está sob a camisa, deixando clara sua pressa em se livrar dela, sem desgrudar os olhos dos meus.

Retiro sua blusa e ele desabotoa a camisa que estou usando, ao mesmo tempo em que abro o seu cinto e a sua calça, que rapidamente são chutados para o lado. Tão logo o tecido que me cobre escorrega até o chão, Peeta me volteia, posicionando minhas costas em seu peito e sua boca em meu pescoço.

Seus lábios acariciam-me e me fazem estremecer. Ele se senta na cadeira mais próxima. Mais um giro e estou encarando aquele sorriso de canto de boca. Ele puxa minhas pernas nuas para mais perto dele.

Eu aprecio seu toque suave e dedicado a me tomar com sutileza.

No entanto, estou tão excitada, tão ansiosa por seu toque, que tenho certeza de que não vou ser tão prudente. Fecho os olhos e apenas me concentro em respirar, focando no ar entrando e saindo de meus pulmões. Cada inalação traz mais de seu cheiro inebriante, traz mais dele para dentro de mim, até isso acontecer literalmente.

Ele arranha meu queixo com a ponta do nariz, inspirando-me também.

Eu preciso dessa conexão. Então, desligo-me de tudo, menos dos beijos úmidos deixados em minha pele, espalhando um rastro de calor, que dura alguns segundos até desaparecer e ressurgir em um novo ponto de contato com seus lábios quentes.

Seus orbes azuis pairam sobre mim, deleitando-se com nosso momento.

Seus braços me sustentam, a temperatura se eleva, o fôlego acelera, o ventre se tensiona.

Uma febre intensa queima em minhas veias, rastejando através de mim, e se liberta com toda a força, e o mesmo efeito acontece com ele logo depois.

Sua respiração vai desacelerando até sincronizar com a minha.

Peeta afaga minhas costas e levo minhas mãos aos seus cabelos.

Sua pele grudada na minha é algo mais poderoso do que qualquer coisa que eu já senti, tem a química mais forte que meus remédios, que eu não posso, nem quero mais precisar usar.

Peeta é o meu calmante mais eficaz.

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Como havia me dito, minha mãe chega no Distrito 12 depois de poucos dias, antes mesmo de ser transferida para o hospital daqui.

Ela está passando alguns dias aqui em casa. Peeta anda muito ocupado, terminando de resolver toda a papelada da compra da casa. Pelo menos, é a justificativa que ele dá.

No entanto, sei que não é só por isso, pois o loiro fica zanzando por aí, passando boa parte do dia fora, voltando tarde, com manchas de terra pela roupa… Peeta está armando alguma coisa, tenho certeza.

Ele também tem me mantido longe do estúdio, sob o pretexto de que o cheiro de tinta pode me fazer mal no meu estado.

Ontem, porém, andei espiando suas obras, mas não descobri nada. E era o último dia para tentar fazer isso, pois hoje é a data em que a casa na Costura é oficialmente nossa e eu vou levar minha mãe até lá.

Os pássaros cantam enquanto eu e ela caminhamos às margens das fileiras de novas casas daquele que era talvez o bairro mais pobre de Panem. O vento varre as folhas do chão e a terra não é mais tingida de preto pela fuligem das minas de carvão.

Eu e minha mãe paramos em frente ao local onde ficava nossa antiga casa.

Peeta plantou mudas de prímulas no beiral de todas as janelas, como uma lembrança e homenagem à nossa flor mais preciosa.

Pingos grossos vindos de uma nuvem cinza começam a cair em profusão ao nosso redor e não podemos mais adiar a nossa entrada na casa.

Minha mãe segura minha mão antes de dar os primeiros passos até a porta e pressiona mais os meus dedos, quando se depara com o interior do nosso antigo lar.

A disposição dos cômodos é parecida, mas não é exatamente a mesma, a decoração é completamente diferente, mas foi aqui… Aqui que fomos uma família.

Aqui fomos o teto, o solo, o ar, o sentido da vida uns dos outros. Aqui vivemos momentos insubstituíveis e inesquecíveis, por mais miserável que fosse a nossa condição.

Perder meu pai e Prim foi puro sofrimento, foi como perder a razão de viver. E, na verdade, foi assim mesmo para ela.

Dando mais alguns passos à frente, há mais uma surpresa tocante. Peeta ampliou alguns dos desenhos que ele fez no livro de memórias, retratando vários momentos felizes da nossa vida em família na Costura. Prim, meu pai, eu e ela.

Peeta não os pendurou na parede, deixou-os sobre a mesa da sala, talvez para que ela escolha se e onde quer colocá-los.

Minha mãe demora ao observar o quadro que reproduz o dia em que Prim ganhou a cabra Lady de presente.

Acho que ela ainda não havia se despedido propriamente de Prim. Nenhuma de nós duas havia, na verdade. Simplesmente não há como fazer isso.

Prim é minha irmã e é filha dela. Por mais que eu fosse ligada à minha patinha, agora eu conheço o forte elo que as unia.

— Essa pintura pode ficar ali perto da lareira… Concorda, filha?

Antes mesmo que eu responda, minha mãe se entrega às lágrimas, num choro melancólico e sofrido.

Eu me aproximo para apertá-la num abraço caloroso, talvez o mais significativo que trocamos, como se fosse a concretização de perdão e reaproximação, amor filial e amor materno.

— Eu sei porque você não pôde voltar aqui por todo esse tempo – digo. — A dor ainda é tão crua, apesar dos anos. Quando voltei ao Distrito 12, foi principalmente porque fui obrigada.

— São tantas memórias que eu mal podia suportar a ideia. É muito difícil retornar, mas foi a minha melhor decisão.

— Acho que Peeta foi um dos poucos a voltar espontaneamente.

— Por sua causa, certamente…

— Talvez.

— Filha, sei que isso não é uma desculpa para o meu afastamento, mas eu tinha certeza de que Peeta zelaria por você muito melhor do que qualquer pessoa. Eu sabia que estava sendo bem cuidada e era tudo o que Prim, seu pai e eu sempre quisemos pra você.

À menção de Prim e de meu pai, sinto as lágrimas nos meus olhos e eu rapidamente as enxugo.

— Eu fui muito feliz aqui – recorda ela, depois de observar tudo com ar saudosista.

— Você está aqui para ficar, mãe? – pergunto.

— Eu quero voltar a ser parte de suas vidas.

— Acho que meu bebê vai gostar de ter a avó por perto.

— Seu pai teria adorado vê-la tão feliz. Embora ele fingisse ser ciumento e concordasse com você toda vez que dizia que não ia se casar ou ter filhos, com certeza, seu pai esperava que um dia você estivesse com esse brilho em seu rosto e essa luz em seus olhos. E, acima de tudo, ele gostaria de ter netos também.

— Netos?

— Isso mesmo. No plural! – confirma minha mãe, segurando minhas mãos à pouca distância. — Obrigada por me trazer de volta.

— Obrigada por ficar. – Pressiono mais seus dedos. — Estou com tanto medo de ter este bebê. Receio que eu não seja boa o suficiente, ou que algo aconteça quando eu der à luz.

Ela apenas me traz mais para perto, esfregando minhas costas e acariciando meu cabelo, como na época em que eu ainda era filha única e ficava com medo, mas meu pai não estava lá para cantar para mim.

— Oh, Katniss, você está se tornando uma mãe. Esses temores são naturais… Eu senti isso com você e eu senti com a sua irmã. Não importa se é o seu primeiro ou seu quinto filho. Você vai estar frequentemente aterrorizada até que você tenha essa criança em seus braços.

— E depois?

— Depois, só piora – brinca ela.

— Isso não é muito reconfortante – confesso, devolvendo o abraço no qual ela me envolve.

— Outras fases virão, umas mais fáceis, outras mais difíceis. Mas elas passam. Tudo passa.

A tempestade está somente do lado de fora, pois um belo dia ensolarado acaba de raiar aqui dentro.

— Eu senti sua falta, mãe.

— Eu também senti muito a sua falta, querida.

Quando passa a chuva, saímos pela porta dos fundos e reparo que as flores desabrocharam em uma profusão de cores.

Minha mãe consegue apreciar toda essa beleza, quando, por fim, colhe uma das prímulas. Ela suspira com admiração.

— Como vocês conseguiram arrumar tudo isso?

— Foi Peeta. – Encolho os ombros. — Foi surpreendente até pra mim. Só posso dizer que ajudei com a descrição da casa. Agora eu sei que ele arrancou algumas informações sorrateiramente, perguntando as coisas pra mim como quem não quer nada.

— Não é a mesma casa, mas há muitas semelhanças. Ao mesmo tempo, é mais que uma casa. Parece com um… Lar. – Ela admira todo o trabalho duro de Peeta, absorvendo tudo ao redor, e seus olhos param em minha face.

E ela sorri. Nada do olhar perdido e desfocado que eu temia reencontrar. Minha mãe olha e sorri para mim.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸ 

Minha mãe se mudou de vez para a casa da Costura. Em suas tardes agora livres, conto com sua companhia em minhas incursões pela floresta. Ela mesma colhe ervas e frutos para seus preparos, que se mostram tão úteis e são tão procurados quanto antes.

É uma experiência diferente tê-la comigo e, para a maior tranquilidade de Peeta, não ouso me arriscar minimamente, para a segurança de nós duas. De nós três.

Hoje, assim que chegamos em casa depois de uma agradável caminhada, eu me jogo no sofá da sala.

— Estou exausta.

— Você e Peeta têm que se instalar no andar de baixo, para evitar as escadas.

— Ah, eu vou fazer isso mesmo.

— Mas está tudo bem? Posso ir tranquila pra casa?

Algumas horas atrás, eu senti uma pequena fisgada no baixo ventre, mas foi algo isolado e prefiro não alarmá-la.

— Estou bem, mãe.

Antes de sair, ela me ajuda a me deitar no sofá, pondo meus pés sobre uma almofada, e beija minha testa.

Fecho os olhos e quando começo a desfrutar da sensação de relaxamento, escuto alguém abrir a porta.

— Peeta?

— Não, docinho. Sou eu. O Haymitch – O tom de voz que ele usa não é um bom presságio. — Você está se sentindo bem?

— Estou sim, mas… O que aconteceu? Você está agindo de modo estranho.

— Pode ficar tranquila, não aconteceu nada muito grave. Não quero assustá-la… É o Peeta.

— O que houve? – Eu me sento num impulso rápido demais.

Haymitch coloca as mãos nos meus ombros para que eu não levante tão bruscamente.

— Ele não está ferido ou algo assim, mas não está nos seus melhores dias.

— Por quê?

— Eu não sei, lindinha. Só sei que todos nós temos nossos dias ruins. Hoje é o dia ruim do Peeta. E a única pessoa que pode ajudá-lo é você.

Eu me ergo devagar, com Haymitch me amparando. Seus lábios tocam o topo da minha cabeça, como meu pai costumava fazer.

— Peeta está tendo ciclos de lucidez e de alucinações. Ele me ligou, dizendo que não estava bem, que estava a ponto de ter um colapso. Passei a tarde na padaria, dispensei os funcionários um pouco mais cedo. Quando o deixei lá agora, ele parecia mais tranquilo, mas ainda se recusa a vir pra casa.

Mal percebo, já estou arrastando Haymitch até a padaria. O local está vazio e o sino da porta anuncia nossa chegada. Apenas a luz do escritório está acesa.

— Haymitch, vou entrar e deixar a porta aberta. Se alguma coisa sair do controle, eu chamo você… Mas não o machuque. Em hipótese alguma – sussurro, buscando o ar que me falta pelo esforço de vir correndo por todo o caminho.

— Não quero que nenhum de vocês se machuque.

Eu o abraço antes de torcer a maçaneta da sala.

Peeta está sentado atrás de sua mesa, segurando firmemente a borda, de cabeça baixa.

— Oi – Adentro o recinto devagar e me preparo para uma conversa difícil.

Ele olha para cima. O alívio toma conta de mim, quando vejo a cor azul de seus olhos, embora suas íris estejam maculadas por uma coloração rubra ao redor delas.

— Haymitch trouxe você aqui. Eu disse a ele pra não fazer isso – murmura ele, mas como não comento nada de imediato, logo emenda: — Você veio correndo. Está até ofegante. Isso não pode fazer bem para o bebê.

O cômodo cai em silêncio e escuto apenas o som do batuque nervoso de Haymitch em alguma superfície de madeira do lado de fora.

Peeta abre espaço para os cotovelos, entre sua papelada, ao se apoiar em sua mesa.

Ele mantém as duas mãos sobre os olhos, retesando os músculos dos antebraços.

— Peeta – falo e não prossigo, testando a atmosfera entre nós dois. — Que olhos vermelhos são esses, meu amor? Você andou chorando?

Ele faz um sinal afirmativo quase imperceptível, ainda sem erguer a cabeça.

— Sim, mas não era pra ficar preocupada. É que… O dia hoje foi difícil aqui na padaria e ainda recebi a notícia definitiva de que não haverá uma vaga para a sua mãe no hospital. Você acha que ela vai ficar?

— É essa a sua preocupação? Ela não vai embora, Peeta. Não fique assim por causa disso…

— Essa era a principal preocupação. Mas eu tive uns problemas aqui hoje também.

— Quer conversar a respeito?

Peeta não diz mais nada a princípio, mas os olhos dele ficam aflitos. Então, ele os fecha e deixa a cabeça pender para a frente, num gesto derrotista. Seu cabelo desliza sobre a testa.

Claramente, há algo deixando o coração dele angustiado e, se ele precisar da noite inteira para encontrar as palavras e explicar o que é, eu posso esperar. Posso esperar o tempo que for. É a vez dele de desabafar.

Peeta se ergue da cadeira e ladeia a mesa, recostando-se nela quando ficamos frente a frente.

Há uma cortina de pesar encobrindo seu semblante.

— Num dia como hoje, em que quase tudo deu errado, tendo que lidar com todo tipo de fornecedores, funcionários, clientes, vejo o quanto meu pai e minha mãe sabiam administrar bem a padaria. Eu nunca me esforcei muito para aprender essa parte dos negócios, apesar de o meu pai ter tentado diversas vezes me ensinar. Sempre achei que teria tempo suficiente para isso quando terminasse os estudos, mas…

— Você aprendeu muito com seus pais. A padaria funciona tão bem, por tantos anos, porque é você quem está à frente de tudo.

Peeta dá um sorriso. Não o seu sorriso contagiante. É um sorriso fraco, descrente, acompanhado de um ruído que não se parece com uma risada, mas com o efeito sonoro de uma atitude defensiva.

É quase como ver o veneno das teleguiadas intoxicando seu organismo e as sequelas do telessequestro tomando forma. No entanto, vou aguentar firme e ficar com ele até que se recupere, não vou permitir que Peeta caia nesse abismo de sofrimento mais uma vez.

Minha estratégia pode estar dando certo, pois sua voz ainda é doce:

— Eu sinto tanto a falta do meu pai. Queria tê-lo por perto pra dividir com ele o que estou vivendo, pra pedir conselhos. Pra tudo, na verdade.

Algo no que ele diz me deixa inquieta. Eu me aproximo dele e afago seu rosto cuidadosamente para acalmá-lo.

— Eu sei como é isso – confesso. — No meu caso, o tempo não amenizou a dor, nem a saudade.

Meu jeito de falar demonstra mais serenidade do que realmente sinto.

O sorriso triste de Peeta cede mais um pouco e ele une as sobrancelhas.

— A dor e a saudade… Não estou suportando o peso delas hoje, daí as lágrimas – explica ele.

Peeta faz um movimento curto com o pescoço, como se um inseto tivesse roçado em sua orelha. Os nós de tensão nos cantos do maxilar estão evidentes, enquanto ele coça a sobrancelha freneticamente.

Infelizmente, reconheço todos os trejeitos como o prenúncio de uma crise. Forte.

Ele não reproduz esses gestos nas vezes em que só precisa segurar a borda de uma cadeira para se recompor.

Peeta pousa as mãos pesadamente sobre meus ombros.

— Katniss, afaste-se – pede ele. — Por favor.

Suas palavras saem tão torturadas que eu congelo no mesmo instante. Ele se agarra à beira da mesa e noto que está difícil se manter de pé.

— Essa dor de cabeça está me deixando ainda mais tonto.

Percebo sua dificuldade e tento sustentá-lo, segurando-o por trás e envolvendo-o com meus braços na altura do seu peito. Ignoro as pontadas que sinto em meu baixo ventre.

Assustado, ele vira seu rosto para trás rapidamente e, por suas feições, sei que ele me vê, mas não me enxerga, pois em sua visão atormentada quem está diante dele é uma alucinação ameaçadora.

— Calma, Peeta. Está tudo bem agora – sussurro, esforçando-me para parecer tranquila. — O que você está lembrando não é real.

Peeta gira o corpo e segura meus pulsos com firmeza. Suas pupilas já estão dilatadas e sua expressão é uma mistura de agonia e medo. Meu ímpeto é o de levar suas mãos até minha barriga e dizer a ele quem sou e quem está ali agora guardado dentro de mim.

Ele não permite, resistindo quando busco mover suas mãos até meu corpo. No entanto, o movimento nos faz ficar bem próximos.

Então, eu o beijo, tentando trazê-lo de volta. Mantenho meus lábios nos dele de maneira que nossas respirações se confundem e minhas lágrimas se misturam com o suor que brota na sua pele. Quero unir cada parte minha nele, quero me fundir a ele, dar a ele cada pedaço de mim para fazê-lo se recuperar.

Peeta aceita o meu beijo, mas não solta os meus punhos.

Torço minhas mãos para liberá-las e, agora sim, consigo apoiar seus dedos em minha barriga, forçando-o a olhar pra ela.

— Estou aqui do seu lado, sempre. Nosso filho está aqui.

Ele fecha os olhos com força, expulsando as lágrimas represadas neles. Libero suas mãos e Peeta esconde a face com elas, dando alguns passos para trás.

— Peeta, por favor, olhe pra mim… – Tento persuadi-lo a me fitar, mas ele continua a usar as mãos como barreiras entre nós dois. — Peeta, eu preciso ver seus olhos!

Finalmente, ele descobre seu rosto e, quando abre os olhos, vejo que estão límpidos, com aquela cor azul, linda e única.

Acaricio o rosto e os olhos dele, como se eu precisasse de um toque para reforçar que ele está aqui.

— Eu estou aqui também… – Peeta diz essa frase quase que com leveza. E é o meu Peeta novamente.

Talvez tudo fique bem, no fim das contas. Em algum momento.

A tensão que ainda sentia se esvai num suspiro.

— Nosso bebê me resgatou antes que fosse tarde demais. Poderia ter sido tarde demais, Katniss…

— Haymitch estava aqui para proteger a nós dois.

Seu semblante ainda é tão triste, que chega a doer fisicamente vê-lo assim.

Encosto meu nariz no dele, enroscando meus dedos em seus cabelos. Os braços fortes de Haymitch nos circundam no segundo seguinte.

— Eu estava aqui para proteger vocês três.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸ 

Voltamos pra casa. Peeta precisa de descanso, eu e Haymitch também. Não torno a sentir nenhum incômodo no caminho de volta.

Peeta toma uma ducha e fico velando seu sono até ele finalmente dormir.

Quando me desnudo para também tomar um banho, uma estranha sensação de umidade me paralisa.

Nada poderia suavizar o golpe. Sangue. Por toda a extensão das minhas pernas. E não é pouco.

Um pedaço de mim, sendo arrancado de mim.

Engulo com dificuldade. Eu só quero sair daqui, rebobinar as últimas horas e voltar para a vida normal, esquecer o que acabei de ver. O que de pior poderia acontecer simplesmente… aconteceu.

Inspiro e expiro, exalando o ar com força. Seguro a pia do banheiro para apoio.

Entro no chuveiro e lavo toda a seiva vermelha que escorreu de mim. No entanto, para meu horror, constato que ainda estou sangrando.

Não posso desmoronar. Preciso manter a calma.

— Peeta! Peeta! – eu o chamo repetidas vezes.

Não demora nada e ele está com as mãos espalmadas no vidro do box.

— Katniss, o que foi? O que é todo esse sangue? – Ele se espanta com a vermelhidão espalhada pelo chão.

As palavras se agarram à minha garganta, estrangulando minha voz, empurrando uma torrente de lágrimas pelo meu rosto.

— Diga-me que não vamos perder o bebê – imploro.

— Isso não vai acontecer – promete. — Vamos ao hospital agora mesmo. Não há mais como fugir daquele lugar.

Peeta corre para pegar uma roupa para mim, pois havia levado apenas uma camisola para o banheiro. Ele traz também um pacote de absorventes.

Em seguida, ele me envolve na toalha e me abraça. Solto o meu peso nele, sem forças para me sustentar.

Seu corpo inteiro treme de desespero, enquanto coloco a cabeça em seu ombro e choramos, fazendo daquele momento um borrão de promessas, súplicas e garantias que não poderíamos dar um ao outro, mas o fizemos mesmo assim.

Quando me acalmo um pouco e os soluços que sacodem meu corpo arrefecem, ele propõe:

— Eu vou chamar uma ambulância. Você consegue se vestir sozinha?

Assinto e deixo seu abraço, fungando e limpando o rosto lavado de lágrimas.

Mesmo depois de tudo o que passamos, eu nunca havia visto tanta dor em seus olhos.

Ele ama essa criança que está em meu ventre com todas as suas forças. Eu também. E vamos salvá-la.

Mas eu continuo sem saber como salvá-la. Ou, o que é mais desconcertante ainda, sem saber como perdê-la.

Depois que já estou vestida, Peeta me deita em nossa cama e eu fico ali encolhida. Não tenho coragem de me mexer e, com isso, aumentar o fluxo do sangramento.

Os músculos das minhas costas começam a latejar com o esforço de ficar imóvel, mas aguento firme sem me movimentar. Se for preciso, ficarei nessa mesma posição por horas.

— Chamei uma ambulância e tomei a liberdade de telefonar para a sua mãe. – Os dedos de Peeta seguram os meus por alguns segundos e, depois, ele sustenta meu tronco para eu me sentar. — Sua mãe disse que talvez seja preciso fazer uma ultrassonografia de emergência.

Abaixo a cabeça no ombro dele, deixando-o enlaçar os braços em volta de mim.

Não há palavras para descrever o terror que rasteja por todas as veias do meu corpo.

Então, eu me preparo para saber o que aconteceu com o meu bebê, que eu amo desde o momento em que soube de sua existência.

— Por favor, não quero perdê-lo.

— Nada de ruim aconteceu ao nosso bebê – diz ele com absoluta certeza.

— Nada mesmo – respondo, mas minha voz é vacilante e tudo o que consigo é parecer sem esperanças.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸

A ambulância logo chega e Peeta me leva nos braços até ela.

Uma última curva na estrada e a construção imponente e moderna está diante de nós, a fachada coberta de vidros escuros, parecendo ainda mais com espelhos, na ausência de luz natural.

Sou colocada numa cadeira de rodas e Peeta vai sozinho até a recepção da emergência.

A sala de espera, um grande espaço com filas de cadeiras, felizmente não está abarrotada de gente. A enfermeira que empurra a cadeira me posiciona na extremidade oposta à entrada.

Ao retornar, Peeta fica atrás de mim, assumindo a condição de condutor da cadeira de rodas.

Para ser sincera, fico aliviada por isso ter feito a conversa impossível, porque não conseguiria dizer nada coerente.

Um nó lento e apertado está se formando no meu estômago, enquanto olho ao redor da sala.

Um cartaz informa que esta é a área emergencial, mas o sinal não é necessário. Em cada canto, há uma pessoa com a pele pálida e a expressão pesada pela dor e preocupação.

Olho para trás. Peeta está encarando seus pés. Estas últimas horas foram difíceis para mim, mas a angústia se multiplica quando vejo seu semblante.

Eu só preciso tentar acreditar que tudo ficará bem.

— Sra. Mellark.

Peeta levanta os olhos e eu me viro para ver a atendente que anunciou meu nome.

Atravessamos a sala para nos juntarmos a ela, que nos leva ao longo de um corredor até outra sala, onde está sentada uma mulher jovem, de aparência simpática, com cabelos loiros e um jaleco branco impecável.

— Sra. Mellark. Sr. Mellark. Eu sou a Dra. Melissa.

— Pode nos chamar de Peeta e Katniss – sugere Peeta.

Aperto a mão dela e Peeta faz o mesmo, acomodando-se ao meu lado, no assento que lhe é oferecido.

Eu coloco meus dedos sobre os dele.

A Dra. Melissa aclara a garganta.

— Então, o que a traz aqui?

Acho que ela é a primeira pessoa para quem vou conseguir dizer o que eu realmente estou pensando, vocalizar o medo que faz meu peito doer e minhas mãos chacoalharem.

Forço-me a formular a frase, sentindo o pavor aflorar com um contorcer do estômago.

— Um sangramento. Eu acho que eu perdi meu bebê.

Peeta imediatamente reage. Ele nega com a cabeça, porém eu não retiro o que disse. Apenas estou tentando aceitar os fatos.

— A culpa foi minha – falamos juntos.

A médica arregala os olhos, porém seu espanto não a impede de nos dizer umas verdades:

— Ainda não sabemos o que, de fato, aconteceu. É isso o que vamos descobrir agora... De qualquer modo, se vocês estão aqui, buscando os meios para proteger essa criança, tenho certeza de que a culpa não é de nenhum dos dois. Se é que existem culpados...

A Dra. Melissa abre a porta de uma sala anexa e Peeta me deixa diante de um aparato igual ao que o Dr. Augustus usou em mim no Distrito 4. Ela segura algumas peças e olha para os objetos com um ar de incerteza.

— Quantas semanas de gravidez, Katniss?

— Nove.

— A gravidez ainda é recente, não dá pra usar o ultrassom abdominal... Então, tenho que usar esse aqui – fala ela, mais para si mesma do que para mim e Peeta. — Vocês vão me desculpar, mas eu sou recém-formada e não sei manusear muito bem essa máquina.

Ela parece mesmo um pouco atrapalhada e nada familiarizada com o aparelho, tanto é assim que o início do exame é até um pouco doloroso.

As primeiras horas desde que vi todo aquele sangue foram terríveis, mas o momento de saber a verdade é o pior.

Estou revivendo, de novo e de novo, a lembrança de como Peeta estava feliz quando soube da notícia da gravidez, e acabo comparando com sua imagem agora, com seus olhos suplicantes e ansiosos.

Escuto como sua voz soa – tão profunda, mas ao mesmo tempo tão suave – quando diz que vai ficar tudo bem.

No entanto, estar sobre uma cama, já manchada de sangue, esperando confirmar minhas suspeitas, torna quase impossível convencer a mim mesma de que ainda vou ouvir o coração do meu bebê batendo.

A espera é tormentosa, porém o alívio é infinitamente maior. Esqueço da dor. Qualquer sofrimento é drenado pra fora de mim com o que vejo e ouço.

O coraçãozinho não só está batendo… Está cheio de vida, lutando pra ficar conosco.

Para completar nossa alegria, o feto não é mais como um grãozinho de arroz e, agora, já é possível distinguir os contornos da cabeça e de seus membros.

E como mexe os bracinhos e perninhas numa animação sem fim!

Seus pequenos gestos mexem com minhas entranhas e uma mescla de sentimentos se propaga em cada canto do meu ser, dentre os quais eu distingo perfeitamente um profundo amor.

Ainda sou vida que gera vida. Meu filho se desenvolve em mim e isso me infla o peito de êxtase.

— Olha só. O bebê está muito feliz, acenando para a mamãe! – exclama a médica.

Quando paro de soluçar, Peeta olha pra mim e sorri aquele sorriso que é só meu. Não tão amplo, com seus lábios ligeiramente unidos, seu olhar mais intenso.

Enxugo os olhos e o monitor se apaga, mas aquela imagem fica viva em minha lembrança. É simplesmente inesquecível.

 

 


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Notas finais do capítulo

Bem, pessoal, eu passei por isso que escrevi nessa parte final.

Pelo desespero do sangramento, pela ultra de emergência e pela imensa alegria de ver meu bebê todo animado, balançando os braços e pernas tão pequenininhos sem parar.

A médica era como a que eu descrevi e também toda desajeitada… E ela me disse exatamente aquela frase quando a imagem do meu filho surgiu na tela. 

Todas as outras ultrassonografias que eu fiz na gravidez foram programadas e eu pedi para registrar em DVD.

Essa foi a única em que isso não foi possível, devido às circunstâncias. Mas nem precisava, pois ficou gravada no meu coração e na minha mente e, agora, registrada em palavras.❤

Peço licença para ir ali dar um abraço apertado no meu pequeno e me emocionar mais um pouquinho…

Beijos!

Isabela