Vida e Legado de Lullaby Minus escrita por Laudomir Floriano


Capítulo 2
Primeiro Capítulo


Notas iniciais do capítulo

“(...)
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
(...)
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.”
— T.S. Eliot, Os Homens Ocos.



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Estou na rua agora. O cheiro de tinta queima meus pulmões, mas por algum motivo o sol escaldante do meio-dia é revigorante. Na minha bolsa da escola há dois chaveiros, um a Kitsune me deu, é um urso-panda roxo. E o outro foi Ciel, aquele idiota, me deu um gato-zumbi verde. Esse é bem mais importante, embora eu prefira um panda a um gato morto-vivo com a metade do intestino de plástico para fora. Enquanto eu ando eles balançam, uma dança estranha que eu observo na minha sombra, e o som dos diferentes materiais conflitando é um “tec-tec” bem característico.

 Têm pessoas na rua, muitas delas. Como o caminho de volta para casa é longo eu as observo e me pergunto sobre o que pensam, sobre suas vidas e se elas amam alguém. Eu com certeza amo. Às vezes eu queria abraça-las, fazer essas perguntas, mas elas só andam apressadas de um lado para o outro como se fossem programadas. Isso é confuso e assustador. E eu me pergunto sobre o que fazer para ajuda-las, mas a resposta é sempre a mesma: nada. Eu não posso mudar o mundo, ele está podre e continuará podre até perecer.

Eu só quero chegar em casa logo, e a medida que meu destino vai chegando cada vez mais perto, televisões, rádios, celulares, tudo noticia o Grande Cataclisma. E, quando finalmente alcanço a esquina da rua onde moro e vejo a minha adorável vizinhança inteira, me deixando aliviado por não ter sido levada por nenhum desastre natural enquanto estive fora, ela aparece.

Eu vejo seu cabelo cacheado cor de caramelo primeiro e depois todo o resto. Ela está com uma blusa vermelha que parece um vestido. Na verdade é longo para ser uma blusa e curto para ser um vestido. O importante é que ela está coberta. Uma vez eu disse para ela que essa tiara com orelhas de gato e essas luvas imitando as patas desse mesmo animal a deixavam parecendo uma doida varrida, e em resposta ela grunhiu como um leopardo irritado.

— Oi, Kitsune – digo quando a alcanço.

— Oi, Aby! – sua voz é como um miado preguiçoso – estou entediada. Vou para sua casa.

— Não sei como ajudar, volte amanhã, terei uma resposta – não contenho o riso.

— Eu estou entediada, – ela repete – você é um ser estranho que faz coisas estranhas, você mata o tedio de qualquer um apenas respirando.

— Morra – digo indiferente para minha melhor amiga.

— Depois de você – ela devolve sorrindo docemente.

Quando chegamos em frente à portaria de entrada do prédio onde moro, passo reto, pegando o primeiro elevador disponível. Chegando ao andar certo, sigo até o fim do corredor. Vejo a simpática porta da minha casa e eu a abro gritando alegremente:

— Sobrevivi mais um dia!

Deixo a entrada aberta para que ela entre e a sigo. Clamo pelo meu pai como se estivesse em perigo de morte. Ele aparece na porta da cozinha com um pano de prato no antebraço e uma frigideira na mão. Sem contar o avental com babados que esta cobrindo todo o tórax dele.

— Bela dona de casa! – eu exclamo com um sarcasmo carinhoso e sou bombardeado com o pano húmido que ele estava carregando.

— Mais respeito, rapaz – ele diz com uma cara séria depois desmancha a tromba fingida e se dirige a minha convidada – Kitsune, você vai almoçar conosco?

— Sim, ela vai – respondo por ela e a puxo em direção as escadas, para poupar meus ouvidos do papo que ia se estender por horas entre os dois, e o assunto provavelmente seria eu.

— Claro comandante! – ele exclama fazendo uma saudação militar. – Mas devia deixar as pessoas decidirem por elas mesmas.

— Acabei de fazer uma nota mental, obrigado pelo conselho. – digo já subindo – e a louça é minha! – tive que falar mais alto, já que agora estamos no andar superior.

— Rapaz responsável – Kitsune mia atrás de mim.

— Obrigado – falo fingindo lisonjeio e abro a porta preta que leva ao meu quarto. Ela me segue – Bem, – continuo – eu sei que você não veio aqui só por tédio.

Eu levanto uma sobrancelha e cruzo os braços. Antes de responder ela senta na minha cama, tirando as luvas tenebrosas de patas de gato e entrelaçando os dedos cor de café com leite. Mais leite que café. Ela parece minúscula ali sentada, ela é baixa comparada a mim, que já não sou uma pessoa muito alta. O mais alto de nós é Ciel. Ele é alto para nós, alto para a idade, alto para o resto do mundo. Já Kitsune é o contrário. E eu sou um meio termo entre os dois. Quando andamos juntos formamos uma escadinha. Lamentável.

— É... – ela começa – Lullaby, eu queria contar uma coisa para você, quero que seja o primeiro à saber.

— Ciel já sabe? – pergunto.

Ela fica um pouco nervosa.

— Tem a ver com ele. – ela diz, mas não estou entendendo aonde quer chegar.

— Então não sou o primeiro a saber – essa enrolação já está me irritando.

— Aby! – parece que ela também já está impaciente com meu interrogatório – Me deixa falar!

— Desculpe Sune, pode conti... – “Meninos!” meu pai grita interrompendo. Ótimo. Agora nunca vou saber.

— O almoço está pronto! Venham! – ele grita lá de baixo.

— Temos que deixar para depois, eu acho – eu disse levantando-a com um puxão – vamos comer.

Eu passo o braço pelas costas dela e ela faz o mesmo. Descemos e encontramos meu pai pondo a mesa enquanto cantarola uma alegre música sobre outono. Ele sorri quando aparecemos. Ele é alto, mas de uma maneira perfeita. Ele tem dentes brancos e retos (graças a um tenebroso aparelho dental que usou na adolescência. Eu tive o desprazer de ver as fotos.) e um cabelo preto. Ele tem um corpo bronzeado e forte por servir ao exército, e malhar nas horas vagas. Se não fossem os leves pés de galinha quase imperceptíveis, que atribuem a ele um ar de coroa sexy, poderia se dizer tranquilamente que ele está na casa dos vinte anos. Mas na verdade ele é só um quarentão solteiro e amoroso com seu filho único.

Comemos em silêncio, exceto pela conversa constrangedora que eu evitei quando chegamos. Sim. Eles conseguiram ter um tempo para falar sobre mim. Quando terminamos Kitsune vai embora o mais rápido que pode porque, segundo ela, está atrasada para o curso de Mandarim avançado. Curso cujo qual meu pai queria muito que eu me matriculasse. “Esses cursos de línguas são importantes Lullaby, quanto mais um como Mandarim, que é o idioma da potência mundial atual.” Relembro do que ele falou. Relembro também que a China já está decaindo em dívidas, mas ok. Meu pai me ajuda a tirar a mesa e me ponho no meu lugar em frente a pia.

Estou no meu quarto, depois de ter feito todas as lições que deveria, com fones de ouvido organizando meus livros em ordem alfabética. Alguém bate na porta e em seguida a empurra para entrar e eu vejo meu pai passando pela abertura e a fechando em seguida. Ele faz um sinal para que eu tire os fones de ouvido. Eu obedeço e ele senta do meu lado no chão.

— Queria conversar com você faz, algum tempo – ele começa olhando para a minha pilha de livros perfeitamente organizada – de homem para homem.

Todo o meu corpo se enrijece. Estou com medo. Sobre o que ele quer conversar? Será que ele vai ser transferido? Vou ter que me mudar? Ficar longe dos meus únicos amigos? Ele percebe que estou tenso e bagunça meu cabelo carinhosamente.

— Precisa cortar o cabelo, não é? – o que ele disse?

— Todo esse drama para pedir que eu corte meu cabelo? – pergunto incrédulo, aliviado e irritado. Tudo ao mesmo tempo.

— Claro que não comandante. – ele fala apoiando o queixo nos punhos fechados.

— Então conte moço – todos resolveram contar os segredos de suas vidas para mim hoje? – Tem alguma coisa a ver com Kitsune?

— Não, mas tem a ver com o Ciel. – enrijeço de novo – Aby, tem alguma coisa que você queira me contar? Sobre ele?

— Não. – Nego com o olhar perdido. Conto tudo para o meu pai, mas não vou contar isso.

— Lullaby, – ele começa, contra minha vontade. Não quero ter essa conversa – se não quer falar para mim, devia falar para ele.

— Falar o que? E para quem? – finjo estar desentendido. Não quero ter essa conversa, Repito mentalmente.

— Você sabe muito bem o que e para quem.

— Não sei não. – Como ele sabe? Ele percebeu? É tão obvio assim?

— Então eu vou lembrar. Existe certa pessoa que te faz estremecer sempre que te toca. Essa pessoa faz sua voz falhar sempre que você fala o nome dela. Que faz seus olhos brilharem. Essa pessoa no seu caso é o...

— Ciel. – Cuspo o nome dele por instinto, interrompendo o discurso dramático do meu pai.

Sinto-me vulnerável. Nu. Tudo que eu sinto e guardo para mim há tanto tempo, escancarado. É vergonhoso.

Corro para longe dele enquanto ainda posso, vejo que a neve rala está caindo lá fora, graças às mudanças repentinas no clima, e corro para o jardim na esperança de que uma pedra de granizo caia na minha cabeça, mas está muito frio. “nem morrer eu consigo direito.” Penso comigo e volto para dentro de casa, mas dou de cara com o meu pai que me abraça com toda força e me leva aos prantos para o sofá. Eu o odeio, ele me fez chorar, agora eu pareço fraco.

— Eu te odeio! – grito para ele, mas abaixo a cabeça porque sei que é mentira.

— Pois eu te amo. – ele também sabe que é mentira. – Aby, porque você não me contou? Eu sou seu pai! Nós fizemos aquela promessa quando você era criança! Lembra?

À medida que as cachoeiras de água salgada escorrem dos meus olhos eu vou me lembrando. Doze anos atrás, um ano depois da morte da minha mãe, no dia do meu aniversário, meu pai me trouxe um bolo e um presente. Não tinha ninguém além de nós, então meu pai chorou muito porque estava sobrecarregado, sentia falta dela e esqueceu-se de chamar os convidados, então eu chorei junto, e pedi que ele dividisse seus problemas comigo. Eu era uma criança idiota em um mundo apocalíptico e só queria ajudar. Ele disse que tudo bem, mas nós dois tínhamos que contar tudo um ao outro. Nesse dia ele me falou como a minha mãe fazia falta e o quanto ele amava ela, enquanto eu me empanturrava com bolo. Desde então ele me conta tudo e eu faço o mesmo. Mas nunca quis contar sobre Ciel.

— Eu sempre soube que ele era importante para você – ele diz enquanto eu encharco seu peito – eu percebo toda vez que ele chega aqui de surpresa, a sua alegria. Ninguém te faz tão bem quanto ele. Quero que você seja feliz, mas sufocando o que sente nunca vai conseguir.

— Eu tenho medo – finalmente consigo dizer alguma coisa.

— Medo de perder a amizade dele? – pergunta meu pai pensativo – Bem, – ele mesmo começa a responder – É um risco. Mas com certeza vale a pena.

Ele põe a mão na minha cabeça e faz movimentos circulares. Sinto que está pensando em alguma coisa e o ritmo com que as lágrimas escorrem pelas minhas bochechas diminuiu um pouco. Até que tenho a impressão de que ele segurou o riso por uma fração de segundos.

— E, Aby – ele parece segurar o riso de novo – não se preocupe. Se ele não gostar de você ou é idiota ou – ele faz uma pausa – ou ele é idiota ou hétero.

Então ele finalmente começa a rir para valer, e eu enterro meu rosto vermelho de vergonha mais fundo ainda em seu maldito peitoral definido dando socos no braço dele o mais forte que consigo. O que o faz rir mais ainda. Claro que o mais forte que eu consigo não é o suficiente para machuca-lo.

Quando finalmente cansa de rir ele respira fundo, e eu já parei de chorar a essa altura.

— Conta para ele – meu pai insiste. – Amanhã. E se não der certo você tem meu ombro para chorar para sempre. E se der você tem meus abraços de alegria e a sua felicidade pelo tempo que durar.

“Piegas.” Penso em silêncio. Tento sair do seu abraço de urso, mas ele me aperta mais forte.

— Quando você nasceu eu jurei que só iria ser feliz se você fosse. Acho que estou cumprindo mesmo sem querer.

Finalmente eu amoleço. Meu pai me criou sozinho esse tempo todo. Eu sempre o admirei por ser incrível e o tipo de pessoa que eu jamais seria. Ele é bondoso e altruísta. Enquanto eu sou egoísta e insensível. Empatia não é meu forte nem de longe.

— Amanhã será um grande dia – diz meu pai me soltando devagar. – vamos jantar rapaz.

Passei tanto tempo aqui e nem notei, mas olho pela janela aberta e vejo o céu quase escuro, os últimos raios de sol refletindo na rala camada de neve que ficou na rua, nas calçadas e nos telhados das casas vizinhas.

Meu pai me deixa no sofá e caminha em direção à cozinha. Provavelmente vai esquentar as sobras do almoço para o jantar. Eu penso em como agora ele sabe de tudo e me sinto livre. Como se a máscara que eu usava para esconder quem eu sou de todo mundo pesasse toneladas. E agora que meu pai tirou-a delicadamente do meu rosto, eu fiquei liberto. E isso é bom. Se a pessoa que eu mais tinha medo de decepcionar não me ama menos por saber que eu sou gay, então não tenho que ter medo do resto do mundo. Eu já li que antigamente, as pessoas tinham preconceito com cor de pele, mulheres, transexuais e homossexuais – Entre muitas outras coisas, e o único preconceito que permanece, mesmo que em uma pequena porcentagem, é o preconceito com homossexuais. Eu não consigo imaginar uma pessoa destratando outra pela cor da pele. Isso é tão absurdo. Mas parece que nunca irão aceitar os outros totalmente. As porcarias dos seres humanos precisam de algo para odiar. Sempre foi assim e sempre será.

 


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Notas finais do capítulo

Albuns que ouvi enquanto escrevia este capítulo:
Avril Lavigne - Let Go (2002)
Avril Lavigne - Under My Skin (2004)
Avril Lavigne - Avril Lavigne (2013)



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