A Estrada não percorrida escrita por Liv Marie


Capítulo 4
Mais longa do que a noite escura é o despertar


Notas iniciais do capítulo

Hello darlings! Mais uma longa espera ein? Primeiramente já me desculpo pela extrapolação de palavras desse capítulo. E pensar que tive que cortá-lo porque ele parecia não querer acabar... O pior da tempestade ainda não passou, mas estamos chegando lá. Boa leitura e por favor, não deixem de compartilhar suas impressões que são sempre bem vindas demais! xo Liv.



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Henry não saberia dizer em que momento exatamente sua exaustão foi mais forte. Em um instante ele estava sentado na poltrona desconfortável daquela minúscula sala de hospital, os pés firmemente plantados sobre o carpete cinza que cobre o chão e os braços cruzados sobre o peito, lutando contra o peso sob suas pálpebras. No instante seguinte ele está sendo acordado subitamente pelo som da porta sendo escancarada e o rosnar baixinho de Pongo, alertando quanto à aproximação de um intruso.

— Calma, garoto. – Henry, ainda grogue, afaga a cabeça do animal que parece se acalmar ao seu comando. Então, a primeira coisa que ele registra é uma dor horrível na região do pescoço, resultado de algumas horas de sono em uma posição inapropriada.

A segunda é a companhia inesperada. 

Com os olhos escuros grudados em uma pasta enquanto folheia seu conteúdo, entra uma mulher miúda e extremamente magra, usando uma bata de hospital azul, aparentemente alheia a sua presença. Dona de um impressionante cabelo rastafári branco longo o suficiente para cobrir a maior parte de suas costas, ela não se parece com qualquer médico que Henry já tenha visto na antiga Storybrooke ou em qualquer outro lugar, apesar de estar vestida a caráter.   

Levantando-se imediatamente, Henry sente uma leve tontura provocada pelo movimento brusco. A médica, ele observa, anda apoiada em uma bengala rústica e entalhada com símbolos que Henry não consegue discernir, e sua pele negra exibe pouquíssimas rugas e linhas, apesar de sua avançada idade.

— As enfermeiras devem realmente gostar de vocês. – A mulher comenta ao notar a presença do dálmata aos pés de Henry. Após farejar o chão por alguns breves instantes, Pongo deve determinar que a mulher em questão não se trata de uma ameaça uma vez que sua reação final é emitir um leve ganido para então se encolher novamente aos pés do sofá no qual Evan ainda se encontra adormecido.

Tirando os óculos, a doutora encara Henry pela primeira vez, olhos nos olhos, sem parecer intimidada por ter que olhar para cima para fazê-lo. Então, dobrando as hastes dos óculos e os pendurando na gola de sua bata, ela estende a mão, recebendo a sua em um aperto firme.

— Boa noite. Eu sou a Dra. Siddeega Hari. Fui eu quem operou sua mãe. Como você já deve saber, ela chegou ao hospital em um estado muito debilitado. Os relatos são de que você estava em sua companhia, correto? – Henry balança a cabeça em sinal afirmativo e a médica toma o gesto como indicação para prosseguir. – Ela sofreu uma perfuração bilateral que por sorte não atingiu nenhum órgão vital, mas que foi agravada pelo já presente quadro de anemia e astenia graves. Houve perda significativa de sangue, porém fomos capazes de contornar a situação e fechar o ferimento.

Registrando as palavras da médica com sua total atenção, a cabeça de Henry parece funcionar a mil por hora. – Então ela está bem? Já posso vê-la?

Com uma expressão sóbria, a médica acomoda a pasta que tem em mãos embaixo de um dos braços e com a mão agora desocupada indica para que Henry se sente novamente. Ela provavelmente tem a intenção de acalmá-lo, mas por algum motivo, talvez intuição, o garoto sente apenas seu nervosismo e ansiedade aumentarem perante o gesto.

— Rory disse que seu nome é Henry, certo? – Henry engole em seco, as palavras ásperas em sua garganta, mas acena afirmativamente com a cabeça mais uma vez. – Escute Henry, a situação de sua mãe é bastante delicada. Além do ferimento que mencionei, ela também apresentou um quadro de trauma do plexo braquial e concussão cerebral... Você sabe dizer o que poderia ter provocado isso?

— Eu-- – Ele tenta se lembrar do último momento em que viu Regina acordada, com vida.

Foi segundos antes que Henry atravessasse o portal com Evan em seus braços. Ela tinha um sorriso trêmulo em seu rosto, a magia usada para abrir o portal deixando as íris de seus olhos arroxeada. E então sua voz, uma promessa que ainda ecoa ao som de seus ouvidos.

Nos vemos do outro lado, Henry.

Quando Henry encontra sua voz novamente, esta escapa trêmula, oscilante. – E-eu não sei... Quando eu a encontrei, ela já estava ferida.

Pela expressão no rosto da Dra. Hari, Henry percebe que ela ainda tem muitas outras perguntas. No momento, entretanto, o garoto tem apenas uma preocupação. – O que você está dizendo então?

— Nós fizemos uma bateria de exames, e ao que tudo indica, não há sangramento interno. Contudo, pudemos identificar a presença de um edema. – Diante de sua expressão perplexa, a médica acrescente suavemente. – Você sabe o que isso significa?

— Ehm, não. – Henry admite, esfregando os olhos cansados com as duas mãos; mesmo sem conhecer os termos, pelo tom da médica, ele percebe se tratar de algo grave.  A dor em seu pescoço parece se espalhar sobre seus ombros, mas Henry se esforça para se manter focado, alerta.

— O edema cerebral é um inchaço que ocorre no cérebro. No caso da sua mãe, ele está acontecendo em uma região delimitada, provavelmente a zona onde o impacto foi mais forte.

— Você teve que abrir a cabeça dela? – Sua voz escapa mais alta do que o planejado e imediatamente seus olhos buscam Evan, que felizmente permanece adormecido. Captando a tensão no ar, Pongo levanta a cabeça e então caminha até aos pés de Henry, enfiando seu focinho molhado entre suas pernas compridas. Depositando a mão ossuda sobre a sua, a Dra. Hari procura lhe acalmar os ânimos.

Henry nota então o contraste nos tons de suas peles, bem como seus dedos longos e o esmalte alaranjado que lhe parece uma escolha um tanto quanto peculiar para mãos que podem salvar vidas.

É uma cor que sua mãe jamais usaria. Nenhuma de suas mães, na verdade, embora por razões diferentes.

Sua voz o puxa de volta ao presente. – Não foi necessário. Esse é um procedimento que fazemos apenas em último caso. No momento ela recebeu a medicação indicada, e deverá ficar em observação. Entretanto, você deve saber que, como resultado do edema sua mãe está em coma, Henry.

— Coma? – Ele repete em um fio de voz, a palavra soando estranha em sua boca, não porque ele não saiba do que se trata, mas porque algo assim é algo que acontece em filmes e histórias em quadrinhos. Claro que o mesmo ocorre com heróis, vilões e zumbis e não é essa sua vida?

Com algum esforço, Henry se obriga a fazer as perguntas que possam ser importantes. – Mas ela vai acordar?

— Nós temos toda razão para acreditar que sim, mas infelizmente, não temos como dizer ao certo. Tudo depende de como ela irá responder à medicação.

— Mas... Ela tem que acordar! Quando não tiver mais esse inchaço, certo?

— É o que esperamos. – Ela aperta a mão de Henry, e ele mal nota o gesto, sentindo-se nauseado demais pela incerteza contida em suas palavras.

Nos vemos do outro lado, Henry. Ela disse. Mas para isso ela precisa despertar primeiro.

Despertar de um sono que pode muito bem ser eterno. E não escapa a Henry a ironia.

Coma – é o termo utilizando pela médica, mas de onde ele vem, em seu mundo, este poderia muito bem ser o resultado de um encantamento. Henry já caiu em um sono assim. Quando era apenas um menino, só para provar que estava certo. Sem temer pela própria vida, em um gesto inconsequente ele engoliu a sobremesa preparada por Regina sem pensar duas vezes, colocando a própria vida em risco e acreditando que tudo estaria bem no final.

E de fato tudo esteve. Pelo menos nos primeiros instantes após ele despertar.

Ele se lembra de abrir os olhos e se deparar com o rosto de Emma, seus olhos inchados e vermelhos, suas faces ainda úmidas pelas lágrimas derramadas, sua expressão incrédula e maravilhada porque um simples beijo o trouxera de volta.

Um beijo de amor verdadeiro.

— Eu tenho que vê-la. – Ele diz em voz alta, para ninguém em particular e ao coçar os olhos novamente encontra lágrimas sem saber ao certo em que momento elas começaram a ser derramadas. – Eu preciso ver a minha mãe.

Somente então a Dra. Hari registra o que ele está dizendo, ainda que não seja capaz de interpretar os reais motivos por traz de sua urgência. – Eu entendo meu rapaz, mas no momento isso não será possível.

Ignorando suas palavras, Henry se levanta de uma vez, ciente do que deve fazer, repetindo os dizeres como em um mantra que parece guiar seus passos. – Eu preciso vê-la!

Os movimentos súbitos, bem como o tom de voz utilizado por Henry são o suficiente para que Pongo perceba a mudança na atmosfera, se colocando em pé e ganindo nervosamente em direção à porta.

Sem pensar claramente, Henry se dirige até a saída do quarto, decidido a não parar diante de nenhum obstáculo, movido pela certeza de que há apenas uma forma de trazer sua mãe de volta.

Essas pessoas não sabem. Não sabem quem eles são, nem de onde eles vêm. Não sabem o que um beijo de amor verdadeiro é capaz de fazer.

E Regina é sua mãe. Não importa quanto tempo tenha passado, quanta mágoa e ressentimento ele ainda sinta, o que ela fez ou deixou de fazer. Não importa se ela é capaz de lançar maldições, destruir corações, abrir portais ou sacrificar a si mesma.

Regina sempre será sua mãe.

Então se existe uma chance, por menor que seja, de que um beijo seu possa salvá-la, Henry irá mover céus e terra para fazê-lo.

Ele sente mãos o puxando pelos braços, procurando detê-lo. Vozes se dirigindo a ele como em um eco distante. Os latidos de Pongo ecoando pelas paredes do hospital. Ele luta de volta, resiste, revida.

— Eu sou o único que pode salvá-la. – Ele tenta explicar em vão.

Alguém o derruba com força, o jogando no chão. Com o rosto pressionado contra o linóleo e as mãos imobilizadas para trás, Henry tenta se livrar, mas está fraco demais, cansado demais.

— Acalme-se garoto. – Ele escuta alguém dizer e a princípio ele pensa que se trata de um comando direcionado ao cachorro, que segue ganindo e latindo, suas patas arranhando uma porta fechada. Mas então, ele escuta novamente, uma voz masculina próxima ao seu ouvido, e lhe parece estranho que mais alguém o chame assim, quando é Emma quem sempre o fez.

Mas Emma não está ali.

Henry escuta o choro então, uma criança repetindo seu nome. Evan, ele se lembra, e seus olhos parecem por um momento registrar sua presença, um borrão de cabelos loiros tentando ir ao seu encontro, os uivos de Pongo ao fundo, ele não pode deixar de pensar então em sua mãe deitada em uma cama, sozinha em algum lugar nesse hospital, mas é tarde demais. Com a adrenalina pulsando em suas veias ele não sente a picada da agulha em seu pescoço, mas não demora a que sua visão fique embaçada e a escuridão o subjugue sem que Henry possa resistir mais.

.::.

Ainda não amanheceu, quando a audição de Ruby capta o som abafado de passos sobre o assoalho de madeira, e em seguida um murmúrio descontente que precede o choro de uma criança.

Os passos são interrompidos, possivelmente pelo mesmo som, e com um bocejo escapando sem o seu consentimento, Ruby esfrega os olhos e reconhece Emma, agora próxima ao berço improvisado, seus olhos fixos em seu interior.

— Acho que era pedir demais que eles dormissem mais do que algumas horas direto, logo em seu primeiro dia de vida. – Ela comenta com um sorriso cansado, sua voz abafada ao notar que há alguns metros, no chão da cozinha, Daniel ainda se encontra adormecido sob um amontoado de peles.

Emma parece surpresa ao encontrá-la acordada, provavelmente julgando ser a única até o presente momento. Um dos bebês resmunga novamente, mais impaciente.

— Acho que ela tá com fome. – Emma sussurra em resposta e prontamente pega a menina no colo, preparando-se para entregá-la a Ruby tão logo esta esteja mais bem acomodada junto aos travesseiros.

Com o bebê em seus braços, Ruby observa suas feições como se estivesse a decorar cada linha em seu rosto, antes de levar a filha ao peito. Em seguida seus olhos observadores recaem sobre a figura da amiga, notando os círculos escuros em volta de seus olhos. – Pelo menos eu consegui algumas horas de descanso. O que aparentemente é mais do que posso dizer por você.

Emma nem mesmo se dá ao trabalho de negar. Seus olhos encarando o bebê que segue adormecido dentro do berço. – Eu até cai no sono por alguns instantes, mas depois acordei com um sentimento ruim pesando no peito. Não sei explicar. Apenas não consegui voltar a pregar o olho.

Por alguns instantes tudo o que se pode ouvir é o som da criança mamando e do lado de fora algumas gotas que ainda caem das folhas das árvores embora o pior da chuva já tenha passado.

Então Ruby busca a mão de Emma, procurando oferecer-lhe alguma palavra de conforto. – Tenho certeza de que foi só um pesadelo, nada mais.

Antes que Emma tenha a chance de responder, um grunhido alto soa do canto oposto da cabana, atraindo a atenção das duas mulheres simultaneamente.

— Argh. – Daniel resmunga, se espreguiçando sonoramente e estalando partes do corpo que Emma não imaginava ser possível e, a julgar pela expressão no rosto de Ruby, ela tampouco. Em um segundo momento, contudo, Emma percebe que o interesse da amiga é mais do que uma mera curiosidade.

Coçando a barba e com os cabelos em completo desalinho, Daniel estica os braços, os músculos bem torneados em contraste com a malha fina de sua camiseta, o gesto fazendo com que seu abdome fique exposto por alguns breves instantes. Emma imediatamente desvia o olhar e ao perceber que Ruby segue a encará-lo descaradamente, dá um cutucão da amiga, sentindo-se compelida a lembrá-la que ela acabou de dar a luz pelo amor de Deus. Daniel, por sua vez, parece não se incomodar com a plateia. Ou sequer tomar nota de sua presença.

— Erh, bom dia. – Emma fala sem jeito enquanto Ruby morde o lábio inferior, se divertindo com a situação.

De fato, com os primeiros raios de sol a entrar pela janela oferecendo uma iluminação melhor, fica muito mais difícil deixar de notar a excelente constituição física de seu 'amigo' ermitão.

Para o alívio de Emma, no entanto, sua personalidade continua a mesma. Ou seja, beirando o limite da civilidade e desprovida de qualquer cortesia.

— Obrigado, mas prefiro os dias em que não tenho que dormir no chão da minha própria cozinha. – Ele responde sem emoção e se dirige a pia, com o intuito de lavar o rosto e despertar de uma vez por todas.

— Desculpe por roubar sua cama. – Ruby tenta apaziguar seus ânimos, mas recebe apenas mais um grunhido como resposta, ao que Emma lança um olhar enfático em sua direção, indicando que o sujeito em questão é um caso perdido.

Tendo terminado de amamentar a filha, Ruby a devolve aos braços de Emma, se preparando para alimentar o menino, que apesar de ter acordado com toda a movimentação, permanece tranquilo no berço, contente em abrir e fechar as mãozinhas.

Se preparando para fazer a menina arrotar, Emma anuncia em alto e bom som. – Bem, não se preocupe. Nós agradecemos a hospitalidade, mas agora que a tempestade passou, nós vamos dar um jeito de sair do seu caminho.

Enxugando o rosto em uma toalha, Daniel parece surpreso com a declaração, embora faça o possível para não demonstrar. Com uma olhada através da janela sobre a pia ele busca confirmação, como se as palavras de Emma somente não fossem suficientes. Então, para sua surpresa ele propõe. – Bem, se a estrada não estiver muito embarrada, eu posso armar a carroça e levá-las até a cidade.

Seu tom é quase casual, e Emma não pode deixar de mais uma vez, se ver intrigada pela dualidade do comportamento desse homem estranho. Ruby não abre a boca, mas lança um olhar significativo na direção de Emma. Não é preciso dizer em voz alta que com dois bebês recém-nascidos, esta se trata de sua melhor chance.

— Isso seria... bacana. – Emma comenta, tentando soar igualmente indiferente.

Algo em sua reação deve apertar os botões certos, pois ao invés de se retrair, retomando a comunicação através de grunhidos e resmungos, Daniel complementa. – Pois é, sua amiga e os bebês parecem bem, mas é melhor que um médico dê uma olhada, pra garantir.

— Tem um hospital por aqui? – As palavras escapam antes que Emma possa se conter, ou ao menos disfarçar seu espanto. Ruby arregala os olhos, igualmente surpresa.

Com um ronco que parece brotar de seu peito – e que Emma sabe agora se tratar de uma espécie de risada – Daniel não parece ofendido pela reação das duas, pelo contrário. – Ora, Storybrooke pode ser uma cidade pequena e até mesmo parada no tempo, mas ainda não estamos completamente isolados da civilização moderna. Embora eu pessoalmente, não me importasse se esse fosse o caso.

O nome pega a ambas de surpresa, Emma pode ver na expressão de choque pintada no rosto da loba, que segura seu bebê como se ele fosse uma âncora, a prendendo a essa realidade.

Quando Regina anunciou que abriria o portal, Emma passou semanas cogitando qual seria seu destino. O País do Espelho, Agrabah, Nárnia, Tatooine... Noites compartilhadas naquele cômodo apertado no navio de Hook, sentindo o calor do corpo de Regina contra o seu, os dedos dela desenhando padrões invisíveis em suas costas nuas enquanto a loira se divertia listando os lugares mais improváveis apenas para irritá-la.

Emma sente novamente a sensação pesada em seu peito, sua cabeça dando voltas com a informação que acaba de receber.

Porque nunca, em nenhum momento, Emma acreditou que Storybrooke, Maine fosse uma opção.

Porque a Storybrooke que Emma conheceu, deixou de existir há muito, muito tempo. Enterrada e esquecida com lágrimas, amigos queridos e um passado para o qual já não era possível retornar.

Assim, se é em Storybrooke que eles se encontram, Emma verdadeiramente não sabe o que esperar.

.::.

Em seus dezessete anos de vida, Henry Mills só tomou um porre uma vez.

Aconteceu na véspera de seu aniversário de 15 anos. Como presente, Hook lhe deu um de seus cantis contendo rum de procedência duvidosa. Isto é claro, longe dos olhos de sua mãe e avó.

Naquele dia, como em seus dois aniversários anteriores – e os dois que viriam depois – Henry não teve bolo de aniversário ou balões. Sua pilha de presentes consistiu em objetos como uma bussola feita com agulha e uma rolha, uma pasta de ervas caseira feita por sua avó para protegê-lo do sol, uma bainha de couro para sua faca de caça e o canivete suíço que um dia pertencera ao seu pai e que Emma guardara, planejando dar de presente ao filho em uma ocasião especial.  

Sentado junto ao deque, com as pernas balançando no ar e o cantil que ganhou em uma das mãos, Henry engasgou com seu primeiro trago, despreparado para o gosto forte e desagradável da bebida, mas esperançoso de que o álcool tivesse mesmo o poder de fazê-lo esquecer-se da melancolia que o assombrava em datas como essa, quando ele quase podia sentir o cheiro das panquecas que Regina costumava preparar nas manhãs de seu aniversário. 

Quando Emma o encontrou, horas mais tarde, ele já havia esvaziado metade do cantil e para sua surpresa ela não lhe deu um sermão, apenas pegou o objeto de suas mãos, levando-o à boca e fazendo uma careta ao sentir o gosto amargo da bebida.

— Você vai se arrepender disso mais tarde. – Ela comentou com os olhos fixos no horizonte e juntos, mãe e filho permaneceram sentados, lado a lado, observando o sol se pôr.

Henry não se lembra de muito após isso, apenas de acordar com uma terrível ressaca na manhã seguinte, suas têmporas latejando, a boca e a garganta secas e o olhar de reprovação de sua avó para sua mãe e ele durante o café.

Sem abrir os olhos completamente – a claridade mais intensa do que ele é capaz de tolerar no momento, Henry sente os mesmos sintomas, embora não tenha qualquer recordação de ter bebido na noite anterior. O que resta de suas memórias são fragmentos dispersos e desencontrados; um portal, Evan chorando, Regina deitada sem vida, o cheiro nauseante de hospital e os latidos de Pongo ao fundo.

Se lembrando então das palavras da médica, Henry levanta de uma vez, o mundo girando à sua volta, as paredes que o cercam familiares e estranhas ao mesmo tempo.

Através das grades ele enxerga o escritório que já foi de Emma, e então é como se um turbilhão de sinapses acontecesse ao mesmo tempo, seu cérebro fazendo as conexões mais rápido do que ele é capaz de acompanhar: algo sendo injetado em seu pescoço, alguém maior e mais forte o mantendo imobilizado, falando algo sobre como Henry não lhe deixou outra opção e os olhos assustados de Evan, acompanhando toda a cena à distância, as mãos firmes da enfermeira pesando sobre seus ombros.

Inspirando profundamente, Henry tenta se acalmar para então raciocinar. Este é o departamento de policia de Storybrooke. Mas não a Storybrooke de seu passado. Emma não é a xerife, ninguém no hospital reconheceu Regina e em algum lugar, Evan se encontra sozinho agora, provavelmente assustado e desamparado. Sentindo o coração bater agitado em seu peito e ainda zonzo, o garoto se arrasta até a cela, pressionando o rosto contra as grades.

— Alô! Tem alguém aí? – Sua voz escapa rouca, mais grave do que o normal. Ele daria qualquer coisa por um copo d’água. Ou um litro. – Hey!

Seu chamado é atendido pelo homem que Henry reconhece como o vice-xerife. Ele sai de dentro do banheiro ajustando o cós da calça, a barba por fazer ainda mais acentuada e olheiras fundas de quem não dorme há um tempo considerável. O alarde feito por Henry não parece afetá-lo; ele se move sem pressa.

— Ora, bom dia para você também. – O homem fala com um sorriso cansado e imediatamente se dirige à máquina de café. – Não imagino que você tenha tido uma noite muito confortável em nossas humildes acomodações, mas hey, pelo menos você conseguiu algumas horas de descanso.

— O que aconteceu com a minha mãe? Cadê o Evan? – Henry pergunta impaciente; as palavras parecendo se arrastar por sua garganta ressecada. Sua preocupação, contudo, é maior que seu desconforto.

O vice-xerife toma um longo gole de seu café antes de lhe oferecer qualquer resposta. – Não se preocupe, o garotinho está em boas mãos. Já a sua mãe, até onde eu sei, continua na mesma.

— Como assim ‘boas mãos’? Ele não conhece ninguém nessa cidade! Ele provavelmente tá aterrorizado!

— Hey, não esquenta, cara! O Dr. Hopper ficou com ele. Ele é o psiquiatra da cidade. Acredite, se tem alguém capacitado pra tomar conta de um menino assustado, Archie é o cara. – O nome faz com que Henry congele, o que quer que o homem esteja lhe dizendo em seguida soando distante e abafado, como se Henry estivesse de repente debaixo d’água.

Tudo o que o garoto consegue pensar é que em seu mundo Archie Hopper morreu duas vezes, deixando para trás nada além de um relógio de bolso com o visor rachado e Pongo. Evan era pequeno demais para se lembrar, o que talvez seja uma coisa boa, dadas as circunstâncias.

A última coisa que o menino precisa é se deparar com alguém que morreu andando por aí, especialmente depois de Henry ter garantido que ele não precisava mais se preocupar com a presença de zumbis.

— Quer alguma coisa pra beber? – O vice-xerife repete, uma expressão de estranhamento em seu rosto, provavelmente sem entender o que se passa com Henry ou o motivo de sua súbita distração.

— Água. – Henry responde tendo ouvido apenas as últimas palavras, seus olhos ainda fixos em um ponto distante.

Sem demora Phillips enche um copo descartável e entrega ao garoto que esvazia seu conteúdo de uma vez, obrigando o oficial a repetir a ação mais duas vezes até que sua sede seja saciada por completo, o que o homem faz sem reclamar, embora aproveite a situação para observar Henry de perto, como se esperasse desvendar algum mistério através de seus menores gestos.

— Obrigado. – Henry agradece sem desviar o olhar, sentindo-se um pouco melhor, ou pelo menos melhor o suficiente para tentar escapar da situação em que se encontra usando uma abordagem mais racional. – Sabe, ontem eu estava bem cansado, e toda a situação com a minha mãe me pegou de surpresa. Mas eu to bem agora, e se você me deixar ir posso tomar conta do Evan e então você teria dois problemas a menos em suas mãos.

O vice-xerife parece considerar seriamente suas palavras, e por um momento Henry ousa acreditar que sua tática funcionou, mas a ilusão se desfaz tão logo ele se depara com um sorriso cansado no rosto do homem. – Bela tentativa, garoto. Mas mesmo com seu tamanho e essa penugem se insinuando no seu queixo, eu sou capaz de adivinhar que temos alguns computadores aqui na delegacia mais velhos do que você. Então se você quiser realmente me ajudar, que tal me dar o contato de algum parente ou responsável?

De cara fechada, Henry não disfarça sua frustração, respondendo emburrado. – Tenho certeza de que a minha mãe já está a caminho.

O sorriso de Phillips se desfaz de imediato e Henry está quase certo de que pode identificar pena em seus olhos quando ele fala. – Cara, lamento ter que te dizer isso, mas pelo que a Dra. Sid falou, sua mãe não deve ir a lugar nenhum tão cedo.

— Eu estava falando sobre minha outra mãe. – Henry clarifica e um lapso de compreensão parece cruzar as feições do vice-xerife, mas antes que ele possa fazer mais perguntas, o som de vozes se aproximando os interrompe.

A familiaridade de uma das vozes é o que Henry nota de primeiro, sua atenção imediatamente capturada pela conversa entre as duas pessoas que se aproximam. Uma mulher e uma criança, ele é capaz de identificar antes mesmo que elas adentrem o recinto. Então, leva um segundo, talvez dois para que Henry faça a conexão. Sua improbabilidade fazendo com que ele questione seus instintos mais básicos até que seus olhos não possam negar a imagem diante deles.

Como uma figura extraída de um antigo álbum de fotografias, ela aparece vestindo um cardigã azul-marinho sobre os ombros, uma blusa floral com a gola rendada e uma saia lisa, na altura dos joelhos.

Mary Margaret Blanchard, sua professora do ensino fundamental. A mulher que o ensinou a montar casas para passarinhos e que uma vez, há muito tempo atrás, lhe deu como presente um fatídico livro de contos de fadas. 

Hipnotizado, Henry observa cada um de seus passos com indisfarçada comoção.

Tomando nota de cada mínimo detalhe, ele se surpreende com seu rosto, liso de rugas como se nem um dia tivesse passado nos últimos 8 anos – ou mesmo 28; seus cabelos escuros – sem nenhum fio de cabelo branco –  mantidos curtos, mas mais longos do que o estilo que ela viria a adotar depois que a maldição foi quebrada. E a maior diferença, talvez, presente no tom de sua voz, mais suave do que ele se recordava, de uma forma que só poderia pertencer a persona que lhe foi concedida pela maldição, mas que nunca de fato competiu à verdadeira Snow White, sua avó.

É desconcertante para Henry se deparar não apenas com alguém de quem ele julgava ter se despedido para sempre, mas a versão que pertencia apenas as suas memórias mais antigas.

A Srta. Blanchard chega acompanhada por uma menina miúda de cabelos longos e escuros, cuja eloquência figura uma idade aparentemente superior. Nenhuma das duas parece notar sua presença a princípio, imersas em uma discussão acalorada a qual Henry não pode deixar de escutar.

— Por favor senhorita Blanchard, não me obrigue a voltar! – A garota suplica, ao que parece não pela primeira vez.

— Cordelia, nós já conversamos sobre isso. Você não pode seguir agindo dessa forma. Não é justo. Você faz ideia de o quão preocupada ela deve estar nesse exato momento? Imagine o que não passou pela cabeça dela com você desaparecida em plena tempestade!

— Ela não se importa comigo! Ela só quer saber de si mesma! – Cordelia cruza os braços diante do peito, obstinada.

— Bem, eu não acredito nisso. – Mary Margaret insiste com suavidade e colocando a mão sobre seu ombro, faz com que a menina pare de andar para ouvir o que ela tem a dizer. – Querida, eu sei que a prefeita nem sempre sabe como demonstrar seus sentimentos, mas isso não significa que ela não os tenha.

O título acerta Henry como um golpe no estômago, toda a conversa parecendo dolorosamente familiar. Sem conseguir desviar os olhos, o garoto se vê dividido entre a presente cena e uma inundação de recordações de uma parte de sua infância que ele julgava esquecida.

Quando os olhos de Mary Margaret encontram os seus, por um breve instante Henry espera encontrar ali algum sinal de reconhecimento. Mas então ela os desvia, aparentemente apenas envergonhada ao perceber que um estranho acompanha de perto a discussão de um assunto pessoal.

Se apressando para dar o tópico por encerrado, ela acrescenta em tom definitivo. – Por isso escute bem mocinha: você já a fez passar por maus bocados agindo de forma tão inconsequente mais uma vez. Então, por favor, tente se comportar quando ela chegar, combinado?

Antes que a menina possa argumentar, Mary Margaret desconversa – o que Henry reconhece como uma tática que lhe é costumeira, independente de qual seja o nome ao qual ela atenda. – Agora, por que você não espera sentadinha aqui, enquanto eu converso com o vice-xerife Phillips, sim?

Suspirando profundamente, Cordelia arrasta a botas de montaria até uma das cadeiras da sala de espera, passando por Phillips em seu trajeto. O vice-xerife até lhe oferece um sorriso conspiratório, mas o gesto somente não parece suficiente para elevar os espíritos da garotinha.

Com um sutil meneio, Phillips indica para que Mary Margaret se dirija ao escritório da xerife, e a última coisa que Henry escuta antes que ele feche a porta, é a sua voz de barítono comentando algo sobre como a madame prefeita ficará aliviada em saber que a menina foi localizada.

Sendo capaz de enxergar os dois através do vidro que divide o escritório do restante da delegacia, Henry deseja, não pela primeira vez, que leitura labial fosse uma de suas habilidades.

Apesar de seus esforços é impossível saber sobre o que os dois estão conversando, ainda que não seja difícil adivinhar qual seja o tema. O que faz com que Henry se lembre da garotinha. Automaticamente seus olhos buscam sua presença junto à sala de espera somente para se deparar com as cadeiras vazias.

Confuso, o último lugar em que Henry espera encontrar a menina é bem diante de si, e ele não saberia dizer se o que o surpreende mais é sua capacidade de se mover tão silenciosamente ou o par de intensos olhos castanhos analisando sua figura assim tão de perto.

Ele está prestes a enunciar seu espanto quando as palavras morrem em sua boca, interrompidas pela familiaridade que ele encontra em seu franzir de testa e na forma como ela exige uma resposta tão logo a pergunta escapa seus lábios.

— E você? Quem é?

.::.

Continua...


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