Obscurus escrita por Srta Baiak


Capítulo 4
04.




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"Não tenho medo nem de chuvas tempestivas
nem de grandes ventanias soltas,
pois eu também sou o escuro da noite."

—Clarice Lispector.


Georgia, EUA.
Dezembro, 1997.
6:45 p.m


~.~


— RÁPIDO, CORRAM! O diretor gritava e fazia gestos frenéticos para indicar a saída pela porta de emergência mais próxima, enquanto os alunos espremiam-se uns contra os outros, evitando tocar as chamas.
Havia corpos carbonizados espalhados pelos corredores, o que dificultava ainda mais o avanço das pessoas para além das portas com sinalizadores de emergencia. Motivados pelo pânico, alunos e professores seguiam em frente, deixando a ordem de lado e preocupando-se apenas consigo mesmos. Em contrapartida, o diretor continuava guiando os demais gritando sempre as mesmas palavras e gesticulando, enloquecido, para que todos seguissem o mesmo caminho.
O caos se instalara e ninguém sabia dizer - ou pensar - em um principio lógico para tudo aquilo.
Uma parte do teto desabou devido ao calor intenso, esmagando dois dos alunos que tentavam escapar dos destroços que os prendiam contra o chão. Do outro lado, um menino dava gritos agoniados, pois o fogo irrompera seu corpo por inteiro.
— STELAAA!
A menina virou a cabeça em direção ao garoto queimado que suplicava-lhe por ajuda, mas ela sabia que era o fim e não podia ajudá-lo em nada. Ele a chamou mais duas vezes aos berros e depois seus lamentos sessaram, inesperadamente, junto a sua dor.
A menina conteve a vontade de chorar e continuou avançando. As pessoas estavam confusas, pois tudo acontecera muito rápido, apesar de o tempo ter desacelerado, dando chance para que a destruição se concretizasse por inteiro.
Estava quase alcançando a porta, quando avistou outro menino correndo em sua direção, aterrorizado. Suas roupas estavam em farrapos e haviam queimaduras intensas em seus braços. O garoto tossia desesperadamente, assim como todos ali, e ao chegar perto de Stela, desabou. A menina levantou-o e o colocou sob o apoio de seus ombros, ajudando-o a locomover-se e dessa forma, prosseguiram.
— Foi ele... Foi... Roger quem planejou tudo isso, Stela.
Mesmo arfando e faltando-lhe ar, Mike fazia esforço para manter alto o tom de suas falas, mas os gritos alheios sobressaíam-se sob sua voz.
— Vamos sair daqui primeiro, antes que o prédio todo desabe em cima de nós.

Depois do ocorrido, alunos e funcionários estavam recebendo atendimentos médicos em ambulâncias. O número de mortos estava sob sigilo e a tensão no local só aumentava. Grupos de bombeiros revesavam-se entre conter as chamas e buscar por sobreviventes no prédio, mas a esperança de haver mais alguma vida lá dentro diminuía quanto mais passavam-se os minutos.
Mike, que estava sendo medicado e com ataduras nos braços, saiu de uma das ambulâncias e aproximou-se de Stela, que estava sentada no meio fio, olhos fixos nas cinzas caídas sob o asfalto quente.
— Parece ridículo, mas... como você está? - perguntou o garoto, sentando-se ao lado da menina.
A garota continuou olhando para o chão, aérea.
— Stela... Devemos contar a polícia sobr...
— A polícia não vai ficar sabendo de nada da nossa boca, garoto. Acha mesmo que estão aqui para a nossa segurança? A polícia está com Roger. Não podemos confiar no trabalho deles. Não podemos confiar em ninguém. - havia um tom monocórdico em sua voz.
— Como pode ter tanta certeza, Srta Kuster? - indagou Mike. Como pode afirmar que todos eles estão contra nós?
— Você não entende... -protestou, assolada.
— Eu entendo, sim. E quer que eu responda à minha própria pergunta? Pois bem. - o garoto prosseguiu, consternado. - A verdade é que você não consegue lidar com autoridades por que quando a Rosa e a Susan foram assassinadas, eles investigaram e deram o caso como encerrado logo após. Aqueles trabalhavam para Roger. Ele precisava se safar de algum jeito. - Mike parou por um segundo e baixou ainda mais seu tom de voz. - Mas, nem todos são assim, anjo.
Ele tentou afagar o rosto da menina, porém ela se afastou bruscamente. Era impossível decifrar o que se passava em sua mente, pois sua expressão estava incógnita. Stela apenas levantou-se, encarou-o por algum momento e vociferou, o som quase imperceptível, pesarosa:
— Wesley e Sabrina morreram esmagados por parte daquela construção, na minha frente.
— O quê?
— Leonard - prosseguiu, ainda mais furiosa, de punhos e dentes cerrados. - gritou meu nome antes de morrer dilacerado pelo maldito incêndio. Tudo na minha frente! E aí, ao invés de você calar a boca - havia lágrimas escorrendo por seu rosto - prefere se aproveitar do que aconteceu para dar um de psicólogo bonzinho. Hora da má notícia, colega: você falha sempre que tenta!
Stela saiu, desconsolada e aos tropeços enquanto Mike continuava sentado ao meio fio, apenas a observando.


~

— Até agora você não me contou nada que eu não saiba.
Havia aborrecimento no rosto de Stela, seu cenho estava franzido e seus lábios, comprimidos. O garoto deu uma risada tímida, olhos fixos na menina.
— O que foi? Perguntou a ele.
— É só que... Você fica ainda mais estranha quando força uma cara de mau. - deu uma piscadela.
— Mike! - protestou stela, mas, estacou de repente. Sussurrou:
— Mike olha para trás, discretamente.
Ela viu que o menino não havia se movimentado ainda e intimou-o:
— Anda logo, poxa.
Mike virou-se, espaventado, e avistou um homem ao longe, com o braço esquerdo enfaixado, olhando freneticamente para os lados enquanto comunicava-se pelo que parecia ser uma escuta. Stela puxou o garoto novamente para sua frente, enfurecida.
— Qual é o seu problema? Eu disse discretamente!
— Vamos sair daqui. Venha!
Os dois apressaram-se e, aproveitando a vantagem de não estarem sob o campo de visão do homem, seguiram para fora do shopping.
— Onde estamos indo? Perguntou, esbaforida.
— Eu conheço um lugar em que podemos nos instalar, pelo menos por agora. Só que precisamos andar bastante.
Houve alguns minutos de silêncio, quando este foi quebrado por Stela:
— Mike... - pigarreou.
— O que foi? - perguntou, desconfiado. - Não venha me dizer que estou tentando te sequestrar, por tentar salvar nossas vidas. - Ele a olhou, enquanto davam passos largos, e sorriu.
— Não... É que... - respondeu com certo receio. - aquele foi um dos caras que me atacaram ontem, enquanto eu voltava para casa, à noite. Você conseguiu ver o braço dele? Eu o esfaqueei enquanto tentava fugir. Não que eu me orgulhe disso. - deu de ombros.
— Eles atacaram você?? - indagou, Mike, atônito.
— Foi exatamente o que eu quis dizer com "aquele foi um dos caras que me atacaram ontem". - revirou os olhos. - Por que tanta surpresa, afinal? - continuou, depois de um tempo.
— Esse cara tentou invadir minha casa, junto a um outro, semanas atrás e... - parou de responder, temendo sua insofismável conclusão.
— E...?
— Foi esse homem que me perseguiu logo depois que saí do local do incêndio aquele ano.


~.~


— Stela, volte aqui.
Mike levantou-se do meio fio e foi de encontro com a garota, mas acabou desistindo, pois ela já estava muito à frente. Decidiu, então, voltar para casa e formular alguma hipótese para montar todo aquele quebra cabeça. Ele ainda não havia aprendido a lidar com coisas perigosas, mesmo convivendo com elas desde a infância.
Tudo começou quando seu tio resolveu cometer suicídio, alegando que coisas terríveis viriam e que o mundo não merecia portar consigo uma humanidade tão tenebrosa e mesquinha. Ninguém nunca o levou a sério, pois, logo que puderam, a família de Mike decidiu interná-lo em uma clínica psiquiátrica. Depois disso, quando o garoto tinha cerca de 10 anos, dois homens abordaram ele e seus pais, enquanto iam fazer compras. Um deles admitiu que trabalhava em uma construtora, a qual seu pai era funcionário, e precisavam esclarecer algumas coisas. Mike achou estranho por que meses antes ouvira seus pais conversando, e seu pai parecia aflito, pois estava desempregado.
Os homens insistiram para que fossem com eles, então seu pai ordenou-lhe que voltasse para casa e buscasse o restante do dinheiro que haviam esquecido e o menino obedeceu. Essa fora a última vez que vira seus pais. Horas depois, quando já estava na casa de sua tia, recebeu a notícia de que um casal teria falecido em um acidente de carro, após entrar em um táxi, cujo taxista teria perdido o controle do veículo e despencado barranco abaixo.
Por várias vezes, o garoto buscou descobrir algo sobre, mas, sempre que desvendada algum mistério, outro surgia em sua mente.
Agora, lá estava ele, caminhando como quem parecia bem, depois de quase ser devorado pelas chamas fulminantes do incêndio. Mas, Mike sabia, isso tornara-se somente mais um trauma que levaria consigo para o resto de sua vida. Mesmo sendo egoísmo de sua parte, preferiu deixar de pensar no fogo, nos amigos mortos e na repercussão que tudo isso geraria. Apenas andou.

Andou até a terceira quadra, após ter virado uma esquina quando, de rompante, um homem alto, vestindo um terno surrado, agarrou-o pelo braço, fazendo com que uma onda de dor aguda percorresse por todo o seu corpo. Antes que pudesse reagir, o homem o imobilizou e cobriu violentamente sua cabeça com um saco de tecido preto.
Mike gritava e se debatia desesperadamente, então, sentiu algo o picando pouco abaixo do ombro, fazendo a dor explodir em seu braço novamente, mas mais forte que a primeira, logo sendo substituída por uma sensação tranquilizadora. Por dentro, seu desespero só aumentava, mas seus movimentos não mais correspondiam à seus comandos, seus membros estavam amortecendo cada vez mais. Seus olhos estavam ficando pesados e, finalmente, obrigou-se a deixar-se levar através de um profundo sono.

/.

     - O garoto não irá sobreviver por muito tempo, Lilian. A dose já foi injetada. Não se preocupe.
— Eu espero, sinceramente, que o senhor saiba o que está prestes a...
— Eu tenho consciência do que estou prestes a fazer. Agora, cale a boca, antes que ele recobre a dele, e me auxilie no que for preciso.
As vozes ecoavam tão distantes, que Mike achou que estava sonhando ou simplesmente havia enlouquecido, pois elas não pareciam ser reais. Continuou em silêncio por vários minutos até tomar alguma decisão.
Abriu os olhos.
Olhou ao redor com dificuldade, mas a única coisa que havia no lugar era uma escuridão densa, tão ausente de luz quanto um buraco negro. Percebeu que estava deitado em algo, mas não soube no quê. Não havia senso de direção e Mike estava entrando em histeria, mas manteve-se sob controle.
Inexplicavelmente, sua visão se acostumou com o ambiente e pôde distinguir algumas formas. Cuidadosamente, levantou-se e sentiu que estava estranhamente leve e.... bem. Não se lembrava de nada, mas tinha a sensação horrível de que algo estava muito errado.
Caminhou lentamente pelo quarto, apalpando os cômodos para manter o equilíbrio, mas resolveu se esconder quando voltou a ouvir as vozes, porém mais nítidas, juntamente aos passos que se aproximavam:
— Hãm.. Senhor?
— Pegue as seringas de cima do balcão. Não temos muito tempo. E, pelo amor de Deus, não as deixe cair novamente. Essas merdas custam o meu rim.
— Eu não estou me sentindo bem, doutor Bradley. - confessou a moça, com voz trêmula.
— Não vai demorar muito. Só... não perca o foco, tudo bem?
— Senhor... eu realmente... - Lilian dá uma cambaleada e se segura na parede mais próxima, quase deixando cair novamente a bandeja com seringas com algum liquido escuro, avermelhado. - Algo não está certo...
— Tudo ficará bem. - Sussurrou o doutor, acalmando a assistente ou, talvez, tentando enganar a si mesmo.
Mike estava observando tudo até que um barulho o assustou e alterou sua atenção para a luz que se espalhou por todo o lugar. As duas pessoas estavam de frente para uma maca e pareciam injetar várias doses daquele líquido no corpo de alguém.
— Talvez mais duas seringas... Lilian, ligue os aparelhos para eu poder checar se a cobaia ainda está viva, por que não estou certo de vê-lo respirar.
COBAIA?
O coração do garoto pulsava de maneira acelerada e descompassada. Impulsivamente, voltou para onde havia se levantado e ficou horrorizado com o que viu.
Seu corpo inerte estava sendo utilizado como objeto de alguma experiência? Não. Havia muito mais por trás daquilo, o menino tinha certeza.
O que está acontecendo?
Mike não se lembrava de absolutamente nada. Seu desespero chegou ao ápice e berrou, desvairado e com toda a sua força, entre lágrimas e soluços. Não havia sentido algum em tudo aquilo... ou havia? Seus berros incompreensíveis se intensificaram depois que tentou desesperadamente tocar o corpo na maca, mas apenas o transpassou. Os gritos eram ensurdecedores, mas nada acontecera. Ninguém ao menos o notara.
Foi aí que ele compreendera o que estava acontecendo. Era inútil protestar. Num lampejo, Mike se lembrara de tudo, mas do que adiantava?
Mike estava morto.


***


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